quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O Festim!



De repente, a vontade irrefreável. Iria devorar a vizinha do apartamento em frente. Estava resoluto. Que as convenções e regras fossem às favas. A mulher daria uma belíssima refeição.Uma não.Várias. Poderia armazenar no enorme freezer,e passar muito tempo se deliciando. Bom, para dizer a verdade, não sabia se realmente a carne humana era saborosa. A pesquisa pela Internet aguçou ainda mais sua curiosidade sobre rituais antropofágicos entre os povos indígenas. Alguns meses estudando o assunto e ainda não chegara ao ponto. O seu ponto. O porquê da salivação e a sensação indefinível, que ficava oposicional entre uma atração física e intelectual pela mulher, e uma rejeição por tudo que ela representava.Mas o que mais, especificamente, aquela mulher, que encontrava no elevador, carregada de livros e pastas, significava? Boa pergunta. Estava ficando louco? Talvez. A expressão de curiosidade do vendedor da loja de equipamentos para açougues, quando pediu explicações de como separar membros, evitando cartilagens mais espessas e o uso de vários tipos de facas e cutelos, talvez seu semblante ao imaginar o corpo da mulher sobre sua mesa, totalmente entregue, o denunciasse. Dane-se!Ia assumir para si o risco. Sabia que aquilo não tinha como acabar bem. Poderia, e muito provavelmente, seria preso. Ou não!Existia a possibilidade de fugir. Mas algo lhe dizia que o hábito recém desperto o acompanharia.
Mas havia o acompanhamento. Junto com a carne, consumiria pequenos pedaços de cada página daqueles livros, de autores autônomos de pensamentos -por algum motivo, eles eram uma ameaça- e aquele orgulho dela em mostrar que bebia daquela escrita, o irritava e fascinava. Os cd´s que ela escutava em um volume que invadia o corredor e sua mente. Árias. Teria que moer o acrílico e transformar em pó para consumir.
Convidá-la para um jantar em seu apartamento, foi relativamente fácil. Ele sentiu que algo nele a atraía, talvez algo primal, o fascínio da presa pelo predador.
O ritual estava todo preparado. Talheres de prata, as velas,o vinho e embaixo da mesa, toda a parafernália necessária para a execução do ritual.
A campainha tocou.
Ele ansioso, abriu, e lá estava ela,com um bonito vestido cor de sangue.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Em carne viva!





Tic-tac.Tic-tac. O relógio era uma companhia cruel. Era daqueles enormes,com pêndulo, ocupando um espaço considerável na parede. Artigo de luxo em meio à rústica mobília. Coisa do tio Xirú que foi relojoeiro na cidade.
Quando ele morreu, não lembro quando nem de quê, o relógio, poucos dias depois, apresentou defeito. Meu pai andou ansioso vários dias, pois antes de qualquer atividade que fosse empreender, conferia o objeto. Fez uma viagem à Cruz Alta especialmente para resolver a situação. Ainda lembro dele sofrendo com a enorme caixa.
Quando o relógio retornou houve reclamação, tanto de mamãe, quanto das visitas. O tic-tac estava mais fraco. Não! É só impressão, dizia papai. Deve ser a graxa, própria para lubrificar a engrenagem que o deixou menos barulhento. Tudo bem. Afinal, que diferença faria? Nenhuma. Logo eu teria que atrelar os cavalos e assim que clareasse o dia, ir até à sede buscar a leprosa.
Essa terrível missão foi imposta por meu pai. Política da boa vizinhança, dizia ele. Polozzi, o marido da enferma, havia quebrado a roda da carroça. Papai solícito como sempre, ofereceu carona.
Nos últimos meses o pânico havia se espalhado pela vila. Que raios de médico teria liberado a mulher do leprosário de Porto Alegre? Ou teria fugido? Bem, se ela já estivesse boa, por que os filhos foram removidos para a casa dos tios?
Polozzi, muito vermelho da bebida, apareceu na tarde anterior na ferraria, para confirmar a viagem. Achava que não iria chover, escutou na Guaíba. Diante disso tudo a chuva é o menor dos meus problemas. A devastação que a terrível doença pode trazer à nossa comunidade, isso sim, é aterrador.
Cecília, a leprosa, é uma mãe exemplar de três filhos. Dois meninos e uma mocinha. Bonita, de compleição robusta, era o motivo dos rubores entre nossa turma de amigos nos piqueniques à beira da cascata. O vislumbre dos tornozelos da esposa do bolicheiro Antônio Polozzi durante suas graciosas incursões na água, inflamava nossa imaginação. Ainda mais que o homem bebe tanto vinho, que lá pelas tantas, após o almoço, se embretava mato adentro com um velho pelego e adormecia profundamente, despertando somente pouco tempo antes de as famílias começarem a recolher suas coisas.
Eram nesses momentos que Cecília se liberava. Brincalhona e também solta pelo vinho, brincava com todos e contava piadas maliciosas que causavam certo constrangimento entre as senhoras. Pode ser bobagem, mas acho que no final de cada frase, seus olhares recaiam sobre mim.
Os primeiros boatos coincidiram com o sumiço de dona Cecília do atendimento no estabelecimento dos Polozzi. Angela, a filha, era a encarregada, na ausència do pai.
Em uma pequena comunidade como a nossa é como um rastro de pólvora. Logo era o assunto em toda parte. A mulher de Polozzi estava leprosa. Verdade ou mentira? Ninguém tinha certeza, mas o fato do mutismo do doutor Braatz em relação ao assunto, levou seu Érico a transferir a quermesse. Não queria arriscar. Talvez ela até levasse seus pães para vender.
Pouco tempo depois, tivemos a confirmação. O mal estava instalado no seio da nossa comunidade. O próprio doutor Braatz, veio para levá-la e encaminhar sua internação no leprosário da capital.
Dois meses e agora, ela estava voltando. A doença não tinha cura, diziam os velhos. E eu tinha que ir buscá-la. Meu pai não sabe dizer não. Que Deus me ajude.


* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.