O portão está aberto. Não é costume ficar trancado. Eu estou
indeciso se entro ou não. O sol é de sonho, de uma luminosidade alaranjada e indecifrável
quanto ao horário.
A casa de material, as grandes portas de madeira com
entalhes tem detalhes característicos da arquitetura portuguesa do século
dezenove. É central e tudo de importante fica próximo: prefeitura, bancos,
farmácias, hospital (não quero lembrar).
Meu receio de entrar deve-se ao fato de ter semi-consciência
de que ela foi destruída há muito tempo, embora estivesse bem sólida e um pouco
sombria diante de mim.
“Não entre aí rapaz!”
Uma voz sensata me aconselha ao ouvido.
”Não precisa disso. Já faz muito tempo...”
Realmente, eu não preciso, mas também não tenho controle.
Quando me dou conta, lá estou parado diante da velha casa e naquele dilema (medo?).
O pátio é enorme. Uma calçada circunda toda a casa. Tem
também um enorme gramado e muitas flores por todos os lados. Coisa da minha avó
paterna, que tem o nome de... Flora!
Entro reticente na porta lateral que dá para a cozinha e
varanda. “Vó, quero pão com açúcar.” Eu não quero dizer isso, mas sempre é meu
anúncio de chegada. Minha mãe tenta em vão corrigir isso, mas vovó cobre-me de mimos:
”Meu filhinho...”. O cheiro de patchouli chega junto com o abraço. É muito
calma, mas escutei dizer que quando fica zangada é fogo. Como ela fala comigo
assim? Tenho quarenta anos e não quatro. Olho para meu corpo e estou vestido
com um macacão infantil.
Meu vô está sentado ao lado do fogão à lenha, não levanta da
cadeira de balanço. Tenho que ir até ele, questão de respeito. Beijo seu rosto
magro. Ele devolve e seu bigode pinica meu rosto. Não é dado a sorrisos fáceis,
mas sei que sou o neto favorito. Depois do almoço eu vou acompanhá-lo em uma
das suas caminhadas ao redor da quadra. Eu o imito. Mãos para trás, postura
marcial, alto, cabelos e bigode brancos, contrastando com a pele morena, o
terno escuro e a camisa alva, o chapéu de feltro preto. A faca com a bainha de
prata, para picar fumo ou qualquer eventualidade (ele ia mesmo degolar o homem passou
por cima de mim com a bicicleta?).
Era na enorme cozinha que todos se reúnem. Muitos. Tios,
primos, vizinhos todos interagindo e conjecturando sobre tudo, desde política,
planos até fofocas da cidade. Era sagrada no domingo à tarde a visita aos
patriarcas. Meus tios não deviam mais estar ali, todos com saúde e novos.
A tia com o caderno de caligrafia me ensina a escrever meu nome
com letra de imprensa. No seu quarto pôsteres dos artistas das novelas. Eu
conheço todos, mas de alguns não lembro o nome. O quarto não tem porta, somente
uma cortina estampada. Minha vó prepara agora bolinhos fritos e o burburinho de
vozes parece aumentar. Reconheço a voz do tio Valdemar. Ele não suportou
conviver as dividas, mas agora estava de volta.
O telefone na pequena ante sala exerce um fascínio sobre mim,
mas ainda não sei mexer. Logo em anexo fica o enorme quarto onde a enorme cama
de casal foi retirada para o velório do meu avô.
Sigo agora e já estou em uma peça central, que serve para
guardar quinquilharias e uma velha máquina de costura e ao fundo, uma porta.
A porta que dá para um enorme e estreito quarto com a
iluminação fraquíssima, três camas antigas, dispostas como em um hospital. Ali
meu pai convalesceu até o fim. Não quero entrar. Será que ele está lá? Quem
sabe uma reconciliação...
Não!
Volto para a cozinha,
todos estão lá. O clima é de alegria. Resolvo sair sem ninguém me notar. Não
quero mudar aquela cena.
Volto para a claridade alaranjada e irreal do pátio e saio pelo
portão.