segunda-feira, 8 de março de 2010

Em carne viva! (III)




Os dias que se seguiram,após a volta de dona Cecília, foram de chuva incessante.
A viagem de volta foi tranquila. O sol ainda não tinha se posto quando avistamos a casa. Com muito esforço, consegui vencer minha timidez e distraí-la. O assunto sobre as novidades da vizinhança, quebrou o silêncio, que nos acompanhou desde a saída de Santo Ângelo. Achou muita graça da infelicidade do Vitão, no rodeio do Paranhos. O borracho bebeu tanto, que ao utilizar a latrina, que ficava atrás do silo,não se sabe como, derrubou a guaiaca dentro,com dinheiro e documentos,além de uma faca de prata. O homem chorava como uma criança.
Acho que cometi um erro.Frouxei um pouco em relação aos cuidados, para evitar o contato com dona Cecília. Claro, não comentei nada com meus pais, pois tenho certeza que me xingariam. Não consigo, por mais que tente, vê-la como uma ameaça.
Ela me contou um episódio que eu não lembrava. Foi quando eu tinha três anos. Fomos visitar os Polozzi e todos se sentaram embaixo da sombra de uma enorme figueira. Muita conversa e risadas, lá pelas tantas, mamãe deu por minha falta. Encontraram-me, sentado no chão da cozinha, com o rosto todo lambuzado por geleia de uva, que dona Cecília usava para rechear as cucas. Quando a deixei em casa, já não parecia tão depressiva.
As tarefas rotineiras estão sendo adiadas, devido ao tempo. A quantidade de água que está caindo é estranha, para esta época do ano. As pessoas só saem por necessidade mesmo.
Quiqui Flores, nosso vizinho de cerca, esteve aqui em casa ontem.Veio devolver algumas ferramentas que havia pedido emprestado. Acho graça do jeito que o velho conta seus causos.Sabe tudo sobre o que acontece pelo mundo afora, graças ao potente rádio, que tem na sua sala. -"Uma novilha,vizinho,uma novilha!"-dizia, referindo-se ao quanto havia custado o aparelho. Nem desconfia que o Gringo nos contou que, na verdade, ele havia ganho o rádio do doutor Braatz, pois mandou vir um modelo novo,da capital. Ele gesticula muito e repete as palavras de modo a fortalecer seu relato. -"O mundo não tem mais jeito,não tem mais jeito...". Gosto dele, embora isso seja raro por aqui. Por ser muito espontâneo, e dizer o que deve ser dito, sempre, muita gente o detesta. Contou-nos que Polozzi só voltou para casa na tarde do dia seguinte. Cachorro. Está com medo.
Imagino o quanto D. Cecília deve ter sofrido após a chegada. A casa vazia, a ausência dos filhos e a falta de apoio do marido.
Que porcaria!Chove já hà três dias. Não tem serviço na ferraria e eu resolvi ficar em casa. Minha mãe também procura o que fazer dentro de casa,mas não acha. Já limpou tudo, duas ou três vezes. Tenta iniciar uma conversa sobre o quartel,mas não respondo.
Não veem perspectiva de futuro para mim, aqui,na vila.Acham que seguindo a carreira militar estarei quebrando a tendência de vida humilde que acompanha minha família. Tento me distrair, lendo alguns livros que o professor João emprestou para meu primo."O Príncipe Valente" é muito bom,mas meus pensamentos estão em outra coisa.
Fui envolvido contra minha vontade, quando fui buscar dona Cecília na cidade, agora não consigo tirar os Polozzi da cabeça. O que a mulher estaria fazendo? Teria sido isolada em alguma peça da casa? O bolicho continuaria com as portas abertas? Eram questões que não deveriam me afligir...

* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agradeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido, junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

9 comentários:

Amanda Salvador disse...

você escreve muito bem e escolheu felizmente o nome dos personagens.

sucesso.

Unknown disse...

parabens , concordo com amiga aí de cima,
escrever é um dom
não é qualquer pessoa que tem essa facilidade.
eu mesmo só preciso de uma cante e eum papel.

um abraço

Tatiane disse...

É cedo pra eu fazer alguma espécie de comentário pertinente, afinal já está na III parte.. Se me permite, gostaria que vc fizesse uma sinopse antes de iniciar o próximo capitulo, ajuda a pessoa a se interessar pela história e dá uma visão mais ampla a quem vem ler postagens do tipo já encaminhadas..
Mas parece ser legal a história..simples, rural.. eu gosto de histórias calmas assim

Anônimo disse...

Nossa esqueci da postagem, aliás, todas, pois com esta trilha sonora do seu blog, parceiro deu show ótimo gosto musical!

Lou Marciano James disse...

Olá, bom dia. Gostei da essência bucólica e dos termos citados no texto. Traz a peculiar regionalidade gaúcha ao leitor. Abç.

Thunderbirdsampa disse...

Zen,é arriscado optar por continuações na blogosfera pois a galera que visita de vez em quando talvez não leia os capitulos anteriores.Mas aqui pela qualidade que voce tem como escritor isso transcende.É um caso a parte que acompanho vidrado.A estoria é muito legal,o clima meio bucolico que voce criou caiu como uma luva na trama.Estou curioso pelo que vai vir.

Unknown disse...

muito bom...a escrita nos prende...mas tenho que ler as outras partes...mas achei muito interessante essa parte....

roberyk disse...

Estou acompanhando desde o início esta história (ou estória) e me surpreendo a cada capítulo. Com soberba fico esperando o próximo, dando asas à imaginação. Como disse o amigo aí de cima, continuações são complicadas, mas para quem sabe exatamente o que está fazendo, é brincadeira de criança, e, em termos de textos, você brinca com desenvoltura. Ótima sequência.

Leonardo Pradella dos Santos disse...

está praticamente publicando um livro em seu blog, meu velho... Muito bom... alguma coisa me diz que gosta de érico veríssimo, estou enganado?
abç!

http://www.deixaajanelaaberta.blogspot.com/