sexta-feira, 7 de maio de 2010
Em carne viva X !
- Cuidado, rapaz. Tem muita gente te notando. Isso é ruim.
Mamãe confiava muito no seu Pedro. Ela arregalou os olhos, assustada. Eu tinha ido lá para benzer um “cobreiro” que havia surgido na parte interna do meu braço.
- Notando ele? É ruim, seu Pedro?
Ele entendeu a dúvida de minha mãe. Se era um conselho de amigo, ou algo espiritual.
- Os olhos estão sobre ele. Muitas energias agindo, a maioria lançada por pessoas egoístas.
Mamãe deu um longo suspiro, visivelmente contrariada com o rumo que a conversa estava tomando.
- O menino é forte. Deixa-me rezar mais um pouco por ele.
E veio com seus galhos de arruda e água benta. Havia um pequeno altar defronte à cadeira que eu estava sentado. Várias imagens adornavam, possivelmente ordenadas em escala de importância para o velho benzedor: Nossa Senhora, São Jorge com a metade da tinta já descascada, e Santo Antônio. O santo guerreiro me era mais simpático. Lembrava muito meu pai, com sua barba enrolada e a carranca de zangado.
Seu Pedro se empenhava, entoando um misto de Ave Maria com um cântico incompreensível, acima de minha cabeça, que começava a se encharcar com a água benta, jogada pelos ramos. Ele era moreno, cor de cuia, o sobrenome de origem alemã não combinava com a figura mestiça. Seus supostos poderes iam além dos ritos contra “rendimentos”, dores nas juntas e alergias na pele. O povo dizia que ele falava com os espíritos, o que levava muita gente a evitá-lo, com medo que de um momento para o outro,falasse algo incômodo.
- Tu vais ter que se cuidar... o homem com a cicatriz de estrela no peito não gosta de ti... – me falou, parando abruptamente a reza.
- Homem da cicatriz. De quem o senhor está falando?
Mamãe, antes que ele profetizasse algo ruim, foi me puxando pelo braço. Resmungou um breve “adeus” ao curandeiro e logo estávamos a caminho de casa.
- Velho caduco, já não fala coisa com coisa. – decretou. Ri baixinho. As coisas eram tão simples para ela. Bastava tirar uma conclusão definitiva e encerrar a questão.
Me contou que meu pai foi até a casa do Chico Laçador, para tentar “apaziguar”, após o incidente na igreja. Levou duas galinhas, já depenadas para um agrado. Imagino o quanto foi difícil para uma pessoa como ele. Realmente parti o narigão do cachorro em dois, que de tão inchado, parece uma batata. Ele não foi muito hospitaleiro com papai, e perguntou se eu havia enlouquecido, ou andava bebendo.
Não me arrependo. Fiz aquilo de impulso, mas com exagero. Acho que foi a primeira vez que as pessoas da vila me notaram realmente. Antes eu era o piá do ferreiro, agora onde passo, ouço falarem entre dentes “olha o filho do ferreiro”. Sempre detestei violência e é irônico eu estar sentindo essa espécie de regozijo com a agressão ao Laçador. As pessoas andam a falar de mal e de bem. Para mim não importa mesmo.
Logo depois de chegarmos em casa, resolvi fazer uma limpeza ao lado da ferraria e capinar o corredor que dá para nossa casa. O carro com um motorista que não conhecia passou em alta velocidade, jogando barro para os lados, em direção ao final da rua, talvez para a casa dos Polozzi, o que seria um péssimo sinal.
--------FIM DO PRIMEIRO CICLO----------
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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.
** Imagem da obra "Metamorfose de Narciso" de Salvador Dalí.
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10 comentários:
e aí, Fabio. sou muito mais o teu outro blog. entrei aqui e tava rolando um roy orbison. demais!
obrigado pela visita lá no meu blog!
Gostei muito da sua novela. Vou te seguir para acompanhar os proximos capitulos.
abraços
Cada vez que tu escreve nos traz uma nova recordação. Desta vez ressucitaste o cobreiro, a benzedura e o místico benzedor. Histórias inundam a mante. E como sempre, esses finais que você utiliza para deixar nossa curiosidade aguçada, `espera do próximo capítulo. Esse guri ainda vai fazer arte, tenho certeza.
Salve Fábio!
Esse cap. nos remete a uma paisagem bucólica tmb vivida no interior de SP.
Nosso país, apesar d extenso possui às mesmas características, os mesmos elementos. Às crenças são interessantíssimas; uma mistura de paganismo com catolicismo e invocação de espíritos p/ obtenção de 'presságios'.
Inspirador...
Big hug & Rock on!
E ai Fábio legal?Meu,imagino que deva ser difícil(ou não)manter uma trama tão bem encaixada como esta.Seja o que for-romance,novela,roteiro-vejo que conseguiu o que pretendia pelos comentarios da blogosfera. E essa trilha sonora demolidora faz parte do contexto.
Até.
Legal! Cada vez a trama se encaixa mais. O uso de termos antigos agregam muito valor à escrita.
Ficarei no aguardo do XI!
Muito obrigado pela passagem no blog que participo! ótima postagem, você tem fontes muito boas! pessoalmente gosto bastante de teatro. um abraço.
uniaodepalavras.blogspot.com
Como sempre Fábio, ótimos textos e ótimos assuntos.
Eu não conhecia esse texto que fala sobre a lepra, mas já li muitos outros sobre o assunto.
Adorei o blog e principalmente adorei o fato de encontrar aqui um texto tão bom e tão gostoso de ler.
Sucesso!
Vanda Ferreira: http://vanda-ferreira.blogspot.com/
hum adorei o post, juntamente com as fotos das obras de arte de Salvador Dali, deu um charme a mais^_^
ate o proximo post
xau
Tu és um cronista da atualidade, parabéns!
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