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É realmente estranho quando se tem um band-aid no supercílio (acho que foi ontem à noite, mas não lembro). As pessoas passam e te rotulam: bêbado, brigão, levou um murro, bem feito.
Sorte minha que não estou nem aí com eles.
Acho que o corte está infeccionado, pois arde e coça muito.
O que faço às duas da tarde em um dia de sol abrasador ocupando a mesa no fundo de uma lanchonete que recende à fritura? Eu poderia dizer que é só para tomar um desjejum, mas estaria mentindo e de mentiras todo mundo está de saco cheio.
À minha frente um jornal, palavras cruzadas: ator do filme Titanic, começa com “Le” e no meio tem uma “Ca”. Acho que é de nível intermediário (não colocam coisas muito difíceis, subjugando nosso intelecto). Vi esse filme há muito tempo e ainda lembro-me da mão da mocinha no vidro bafejado do carro.
Minha bexiga pesa, mas não estou nem um pouco a fim de ir até o banheiro de vaso manchado e urina por todo o chão. Dentro dos bolsos do paletó, papéis variados, desde cobranças, receitas de remédios e cartões de apostas, eu preferia era ter dinheiro ou vales alimentação. Isso! Vales alimentação. Acho bonitos os tickets que a empresa generosamente nos oferece. O valor, a logo da empresa e ao fundo linhas representando um homem empurrando um carrinho de compras. Vendidos por comida. Isso é o que nós somos.
Estendem um prato de comida e em troca você dá o melhor de si para eles: simpatia, colaboração, superação. Todos crescem juntos, eles mentem. E nós compramos essa mentira como se já não estivéssemos no prego há muito tempo. Minha garganta está seca, lembro do enorme sapo que fui obrigado a engolir ontem há tardinha e diria que estou me especializando nisso.
O ambiente dentro da lanchonete é pesado, como o enorme atendente. Ele já me conhece, venho aqui quase todos os dias, mas prefere fazer de conta que sou novidade e chega esbanjando uma pegajosa e falsa simpatia ao empurrar um sanduíche de atum. Eu poderia jurar que está estragado mesmo sem dar nenhuma mordida. Tenho medo de vomitar e afasto o prato depois do homem virar as costas.
É uma questão de costume se é que me entendem. Se perguntarem se preciso disso, diria com a cara mais deslavada do mundo que não. O que não vem a ser verdade. Ali eu posso sentir a vida. Não a vida limpinha e sem máculas que seria a preconcebida como ideal e que a maioria das pessoas almeja. Eu já tive isso e afirmo com todas as letras: enjoa. Mentira de novo. Peguei vocês. Eu daria tudo para retomar a vida que tive há algum tempo, onde eu mandava e outros obedeciam. Eu comprava e outros admiravam. Eu podia. Mas deixa para lá, isso é passado.
Então, voltamos ao meu momento ali, naquela pocilga que chamam de lanchonete “Ki-delícia”, acho que é este o nome, mas não tenho certeza, pois o letreiro da parede está descascado.
Aqui não se cobra nada, a não ser o que é consumido. Não há ninguém dizendo o que devo ou não fazer, que faltam quinze minutos para voltar à merda do escritório, que tenho que dar andamento em vários documentos e isso me dá um conforto passageiro.
Olho para o relógio agora: faltam doze minutos. Se eu não levantar a bunda dali, perderei a lotação.
Dos lados do banheiro, um homem com a o rosto lívido e molhado passa por mim. Possivelmente regurgitou um pouco da sua desgraça no vaso. Ele faz um aceno com a cabeça. Isso, amigo! Talvez tenha expiado um pouco por mim também.
Levanto e busco uma nota de dez toda emarfanhada em meio a muitos papéis no bolso.
Avisto na prateleira um vinho de boa marca. Talvez eu mereça um presente apesar de tudo. Seria como resgatar um pouco de classe.Pergunto quanto é ao atendente que se surpreende. Aquela garrafa possivelmente está ali mais para enfeite que para venda. Consulta o grandão, que lasca: cinqüenta paus!
Reviro o fundo das calças e minha maleta e consigo juntar quarenta e seis e cinqüenta. Ele me olha embora eu não peça desconto: pode levar por esse preço.
A caixa é muito grande e minha maleta não fecha direito. Coloco debaixo do braço e tomo rumo da porta.
Talvez não precise voltar ali.
8 comentários:
Muito bom o seu texto!!! Achei super criativo!!! Parabéns pelo blog. Abraço.
Mew, mto legal seu texto. Gostei, de verdade. Parabens...abraços.
Nao pare de escrever.
Salve Fábio!
Essa ansiedade estranha que permeia o texto num simples ato de comprar um vinho nobre deixa o texto muito interessante.
Como dizia o poeta lusitano:
"Nunca gostei de conjugar os verbos na 1ª pessoa. Sofro de uma torpe ansiedade que adora me roubar a tranquilidade que já é-me tão efêmera." Abç.
Muito bom, cara. Você escreve muito bem e tem muita criatividade. Já escreveu um livro? Um abraço (:
Excelente. Adoro seu estilo, cara. É verdadeiro e nu, embora denso e muito bem elaborado.
Grande Fábio! Belo texto! Mas esse vinho de cinquenta contos não o JP, né? hehe!
Um abraço!
Bah, acho que o meu comentário saiu com a identidade secreta! Mas não dá nada! heheh!
Eu acho complicado deixar o passado. Lindo texto! É duro mas não é ácido nem triste, nem cruel. Parabéns!
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