terça-feira, 30 de março de 2010

Em carne viva! VII




Tenho um primo que é louco,ao menos, todos pensam que é, inclusive eu. Até o instante que me vi rondando a morada dos Polozzi. Eu estava mais louco que ele.
Toinho, filho do seu João, da marcenaria, esteve em minha casa, ontem à tardinha. O "vagal", em vez de descansar após o trabalho, vai jogar conversa fiada de casa em casa e tomar chimarrão. Ele trabalha na manutenção dos prédios do município e é zelador da escola, onde mora com a família. Não simpatizo muito com ele, pois tem o olhar desviado, não fixa o olhar em ninguém. Mamãe diz que pessoas assim são falsas. Contou dos boatos que correm pela vila. Polozzi teria construído uma peça, anexa à casa, para isolar dona Cecília. Além disso, vendeu toda a mercadoria e desativou o bolicho. Dizem, que anda enrabichado por uma chinoca, que mora no Mato Grande.Os vizinhos acham que o safado deixa a esposa enferma, sozinha, e inclusive com pouca comida. Meu Deus! Até onde vai a insensibilidade humana?
A infeliz foi afastada dos filhos, e agora, o marido arrumou outra. Imagino como a próxima está sofrendo. O bolicho deve ter sido fechado, provavelmente por falta de freguesia. Ninguém iria arriscar uma proximidade maior, com a ameaça que ela representa.
Não consegui dormir direito. Um ódio tomou conta de mim. Eu não sabia o que era isso, até então. Era um ódio contra Polozzi, contra uma doença que afasta as pessoas, e contra mim mesmo, por ter dezoito anos e não saber nada da vida.
A noite foi interminável. O que eu poderia fazer? Eu não tinha nada a ver com isso, eu não queria ter. Dona Cecília era uma pessoa boa, por isso que eu me indignava tanto com o sofrimento dela. Mentira. O que eu queria era outra coisa. Uma coisa que eu desejava, desde que a vi se banhando, nos fins de semana na cascata. Isso é normal. Eu quero que seja. Qualquer um desejaria uma mulher bonita como ela. Deus me perdoe. Como eu poderia desejar uma mulher, portadora de uma enfermidade dessas? Embora ela ainda não apresente maiores sinais, eu sei que a doença está ali, a lhe corroer lentamente a pele.
Poderia sugerir a minha mãe, ir até lá. Não sei se ela teria coragem ,mas seria um desencargo de consciência. Mas não é isso que quero.
O grande relógio marcava cinco horas, quando finalmente tomei o caminho da casa dos Polozzi, com uma sacola. Eu levava uma cambuca com o que havia sobrado da galinhada, que mamãe havia preparado na noite anterior (que, aliás, não comi muito), duas pernas de salame e broas de milho.
Dobrei minhas calças até os joelhos, pois havia ainda alguma lama, na ruazinha que levava até o final da vila, onde ficava o bolicho. A Estação Férrea estava iluminada por um resto de luz que emanava do lampião, quase sem combustível. O prefeito disse que voltaria a funcionar em quinze dias, assim que os trilhos defeituosos fossem removidos.
Eu contava com a escuridão, quando cheguei lá. Os cachorros ficaram agitados e resolvi me esconder no capoeiral, em frente às casas. Seria um desastre se algum cusco resolvesse me desentocar dali. O que poderia alegar,a uma hora daquelas? Caçar? Com uma sacola cheia de comida?
Havia realmente uma peça construída, junto à casa. E luz dentro dela. Uma coruja piou perto e me arrepiei. Mau-agouro? Eu ainda poderia dar meia-volta e regressar para a segurança do meu quarto. Minhas pernas pareciam fracas. Notei uma movimentação na lateral da casa. Um vulto indefinido. Pouco tempo depois, Polozzi saiu, com sua carroça e sumiu, dobrando na esquina da última casa. Meu coração disparou. Eu queria e não queria. Era contraditório. Eu sabia que as coisas não seriam mais as mesmas quando avancei. Os cachorros ,estranhamente pararam de latir. Olhei para as casas vizinhas, algumas ainda estavam com as luzes acesas. Tomara que ninguém tenha me visto. Senti as minhas pernas discordando da cabeça, e elas foram me conduzindo em direção à casa de Cecília Polozzi.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

sábado, 27 de março de 2010

Em carne viva VI !




Um sabiá-laranjeira pousou na cerca, a poucos metros de onde meu pai(que pitava um cigarrão de palha) e eu, estávamos sentados, após o almoço.
O bichinho logo alçou voo. Como eu queria ser como ele. Poderia ir onde quisesse, sem destino, ou poderia, então, contemplar tudo, do alto de uma árvore. Santo Ângelo, quem sabe? Ou uma migração maior. Porto Alegre. Sim! Porto Alegre. Ganhar a vida seria fácil,lá. As firmas que anunciavam na rádio, eram muitas. Só não trabalha, quem não quer.
Papai tem o olhar perdido no horizonte. O que deve passar na cabeça, de um homem como ele? Dizem ser cabeça dura, mas na verdade, é muito prático, e isso é algo negativo. Não gosta de estender situações, e por isso, resolve-nas logo, mesmo que não seja da forma correta. Talvez tenha adquirido isso com as judiarias do trabalho brutal, na lavoura, quando era criança. Alfonso, meu vô, que era tropeiro, viuvou e acabou indo embora. Levou quatro filhos, no entanto, três ficaram com alguns tios. Papai, só saiu da lavoura quando tinha vinte e poucos anos, com o auxílio de um irmão mais velho, lá dos lados de Cacequi, e então montaram a ferraria. O irmão foi vitimado pela meningite, e assim, meu pai assumiu sozinho o negócio. Daí o casamento com minha mãe, que era moça criada por uma família da Restinga. Teve complicações quando nasci e não pode ter mais filhos.
Ser filho único é um problema. Eles decidem por mim. São bons pais e eu os amo. Não os decepciono. Ajudo em tudo, fui o melhor na escola e ainda participo do coral da Igreja.
Papai cochila sentado. Uma mosca caminha em seu nariz. O cigarro, apagado no canto da boca. Coitado. Como sonhar com coisas diferentes, se só conheceu o universo limitado da vila? Enxergo mamãe, caminhando de um lado para outro, na cozinha, sempre limpando.
Ultimamente, tenho sentido algo diferente, uma expectativa para algo... não sei o quê exatamente, algo que está para acontecer, ou mudar. Espero que os planos de mamãe, de arranjar compromisso para mim, com as meninas da vizinhança, não se concretizem. Elas não são bonitas. Ouvi meus pais cochichando, a respeito do baile,no mês que vem. Quem sabe até lá, eu não esteja mais aqui. É uma ilusão. Sei que mudar esse destino, que me espera aqui, é muito difícil.

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* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Em carne viva V!




O sol finalmente apareceu, depois de quase uma semana. Até o ânimo e o humor das pessoas melhoraram. O Júlio me convidou para ir até Santo Ângelo.Ele foi fazer as compras do mês e queria ter com quem conversar. Para minha sorte, papai me liberou da ferraria.
Saímos cedo e tivemos que ir a cavalo, devido à estrada lamacenta. O Júlio é bom de conversa, ao contrário de mim. Fiquei sabendo da morte do seu Aparício, dono do Mercadinho onde comprávamos doces e balas, ali na Marechal Floriano. É uma pena, ele conhecia todo mundo na vila, pois a esposa é natural do Rincão dos Bugres, aqui ao lado. Não sei se a mulher vai assumir sozinha o mercado. O pai do Júlio está de olho, para fazer uma proposta, mas vai aguardar uns dias, de modo que não fique feio. Tomara que compre, pois comentou certa vez, que precisaria de mais alguém atendendo,além do filho. Quem sabe assim não consigo a terceira do quartel.
Ficamos o dia todo na cidade. As compras ocuparam a maior parte do tempo, e o Júlio é um negociante complicado. Exige descontos em tudo que compra, e em alguns lugares o impasse com os vendedores, arrasta-se por um tempo considerável. Aproveitei para esperá-lo, ao lado de fora. O ar dessa cidade me fez sonhar. Como ela é grande. Moças bonitas pelas ruas, os automóveis são um perigo. Atravessar essas ruas centrais é uma aventura. Até cinema tem. Seria incrível se eu conseguisse sair lá de fora e morar ali.
O Júlio frequenta a zona, que fica na parte oeste da cidade. Fui lá uma vez com ele. É uma casa ao lado da outra. As chinas ficam sentadas nos pátios, debaixo das árvores a tomar chimarrão. O Júlio vai sempre na mesma. Eu não entendo e nem ele explica. Fidelidade na zona, essa é boa!
Quando fui junto, fiquei do lado de fora, conversando com uma chinoquinha bem nova, que após se insinuar bastante, viu que eu estava sem dinheiro e resolveu prosear. Me passei por experiente, e disse a ela que frequentava uma casa famosa, em Giruá. Ela pareceu ficar impressionada. Como é fácil enganar as pessoas. Eu nunca estive com uma mulher.
Marisa era o nome dela. Sobrinha da dona da casa, a Doraldina. Veio lá das bandas da Atafona. O pai morreu há dois anos, e a mãe não conseguia manter os oito filhos, de idades vizinhas. Faz seis meses que está ali. Diz que gosta da vida que leva, mas seus olhos miúdos, dizem o contrário. Contou que figurões da política comparecem ali,toda semana. Deixam os carros na rua de cima, e descem se esgueirando, até ali. Um certo edil, só aparece para conversar, mas paga.
Houve uma morte la na rua, há cerca de dois meses. Dois sujeitos desentenderam-se, por causa da Lurdinha, que faz ponto na casa da Tereza Louca. Um deles baleou o outro, na altura do pescoço, e o infeliz morreu pouco depois.
O Júlio não demorou muito no quarto, aparecendo altivo no pátio, ao lado da acompanhante. Durante todo o trajeto de volta, veio se gabando. É um palhaço.
Mamãe já preparava a janta, quando cheguei. Sopa de galinha com pouca carne. Odeio. Só a cabeça, os pés e pescoço. Parece que o bicho fica olhando a gente, de dentro do prato. Papai se lambuza. Desconfio, que ele é capaz de comer qualquer coisa, com banha e sal. Preferi tomar um copo de leite e comer um naco de pão com nata.
Fui cedo me deitar e meu corpo todo doía, devido à cavalgada. Deitei e adormeci rapidamente, porém, meu sono foi agitado. Sonhei que entrava nu, debaixo da cascata e a água ardia de tão gelada. Depois, ouvi alguém chamando ao longe. Avistei, então, dona Cecília, na margem, totalmente despida. O corpo, muito branco e voluptuoso, os seios balançavam, ao fazer sinal para que eu fosse até ela. Meu corpo tinha urgência em possuí-la. Mergulhei,mas meus braços pareciam muito pesados para nadar e demorei até chegar à margem. Quando saí da água, quem me esperava de braços abertos, era a Tereza Louca. O corpo estava mutilado pela lepra. Os dedos haviam caído e no lugar dos olhos, dois buracos pustulentos. Acho que gritei. Acordei encharcado de suor e com as primeiras luzes do alvorecer, entrando pela janela.

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* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Em carne viva! (IV)




Hoje, acho que cometi uma bobagem. Menti, em casa, dizendo que iria à casa do Júlio, amigo que também irá se alistar, e fui até o bolicho dos Polozzi. Fiquei com lama até os joelhos, o que causou certa irritação em minha mãe. Queria saber como fiquei naquele estado.
Foi um ato intempestivo, do qual me arrependo. Como havia imaginado, o bolicheiro estava "fulo", e foi ríspido ao responder às perguntas sobre o estado de dona Cecília. Comprei palha para os cigarros de papai, com alguns tostões, que achei nos bolsos de uma calça que ele havia posto para lavar. Vou misturá-los ao estoque dele e torcer para que não note a quantidade. Bom, talvez seria melhor,se eu os jogasse fora.
Havia quatro pessoas no estabelecimento. Vitorino e a esposa, esta quando me viu, beijou-me, como faz desde que me entendo por gente. Um beijo na bochecha, molhado. Arre! Não tenho como escapulir da velha. O Sacolinha, que já estava saindo com uma lata de querosene, e o Neco da dona Merência, de canto, só observando,claro,com o copo da cachaça ao lado. Dizem que o solteirão é o maior linguarudo da cidade, além de ter fama de calaveira. Acompanhou-me com o olhar, desde o momento que entrei, e assim, seguiu todos os meus movimentos. Ele trabalha com construção, e notei um madeirame, ao lado da casa.Será que vão aumentar o bolicho?
O Polozzi não tocou no assunto da viagem de volta, do porquê de não lhe esperarmos,além de ter sido monossilábico sobre a esposa. Estiquei a vista sobre a porta de acesso ao interior da residência,porém a cortina atrapalhou-me e não consegui ver se a mulher estava por ali. Tive a impressão de ver um vulto se movendo. Polozzi, para encerrar o assunto,perguntou-me se era só a palha. Fui saíndo, mas notei um sorriso irônico no rosto do Neco. O que será que o muquirana estava pensando? Boa coisa não era, com certeza. Havia se envolvido em uma briga, em umas carreiras,lá para as bandas de Giruá, há um ano, e acabou esfaqueando um homem. Até o delegado andou por aqui, visto que o pobre diabo acabou morrendo.
Legítima defesa foi alegada, por ele, e confirmada por meia dúzia de gambás que o acompanhavam. Parece que corre um processo,mas ninguém sabe direito, nem ele fala sobre isso. A mãe dele, dona Merência, tem problemas de saude. Teve uma congestão, e uma parte do corpo ficou paralisada. Minha mãe gosta muito dela, e a visita com frequência. Papai não gosta. Tem ciúmes do Neco, e com razão, visto que o traste despe, com os olhos, qualquer mulher que passe na sua frente. Geralmente, as visitas de mamãe à casa de dona Merência, acabam em discussão, e com os dois emburrados.
Devo estar com algum problema,ou falta de vergonha na cara. Com tanta coisa que eu poderia estar fazendo, para ocupar produtivamente meu tempo, estou procurando sarna para me coçar. Mas algo me diz, que há algo errado, em toda essa situação. Ainda não sei exatamente o quê, ou se sei, devo estar enganando a mim mesmo.

* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas, ainda vivas,de suas relações efamiliares que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Em carne viva! (III)




Os dias que se seguiram,após a volta de dona Cecília, foram de chuva incessante.
A viagem de volta foi tranquila. O sol ainda não tinha se posto quando avistamos a casa. Com muito esforço, consegui vencer minha timidez e distraí-la. O assunto sobre as novidades da vizinhança, quebrou o silêncio, que nos acompanhou desde a saída de Santo Ângelo. Achou muita graça da infelicidade do Vitão, no rodeio do Paranhos. O borracho bebeu tanto, que ao utilizar a latrina, que ficava atrás do silo,não se sabe como, derrubou a guaiaca dentro,com dinheiro e documentos,além de uma faca de prata. O homem chorava como uma criança.
Acho que cometi um erro.Frouxei um pouco em relação aos cuidados, para evitar o contato com dona Cecília. Claro, não comentei nada com meus pais, pois tenho certeza que me xingariam. Não consigo, por mais que tente, vê-la como uma ameaça.
Ela me contou um episódio que eu não lembrava. Foi quando eu tinha três anos. Fomos visitar os Polozzi e todos se sentaram embaixo da sombra de uma enorme figueira. Muita conversa e risadas, lá pelas tantas, mamãe deu por minha falta. Encontraram-me, sentado no chão da cozinha, com o rosto todo lambuzado por geleia de uva, que dona Cecília usava para rechear as cucas. Quando a deixei em casa, já não parecia tão depressiva.
As tarefas rotineiras estão sendo adiadas, devido ao tempo. A quantidade de água que está caindo é estranha, para esta época do ano. As pessoas só saem por necessidade mesmo.
Quiqui Flores, nosso vizinho de cerca, esteve aqui em casa ontem.Veio devolver algumas ferramentas que havia pedido emprestado. Acho graça do jeito que o velho conta seus causos.Sabe tudo sobre o que acontece pelo mundo afora, graças ao potente rádio, que tem na sua sala. -"Uma novilha,vizinho,uma novilha!"-dizia, referindo-se ao quanto havia custado o aparelho. Nem desconfia que o Gringo nos contou que, na verdade, ele havia ganho o rádio do doutor Braatz, pois mandou vir um modelo novo,da capital. Ele gesticula muito e repete as palavras de modo a fortalecer seu relato. -"O mundo não tem mais jeito,não tem mais jeito...". Gosto dele, embora isso seja raro por aqui. Por ser muito espontâneo, e dizer o que deve ser dito, sempre, muita gente o detesta. Contou-nos que Polozzi só voltou para casa na tarde do dia seguinte. Cachorro. Está com medo.
Imagino o quanto D. Cecília deve ter sofrido após a chegada. A casa vazia, a ausência dos filhos e a falta de apoio do marido.
Que porcaria!Chove já hà três dias. Não tem serviço na ferraria e eu resolvi ficar em casa. Minha mãe também procura o que fazer dentro de casa,mas não acha. Já limpou tudo, duas ou três vezes. Tenta iniciar uma conversa sobre o quartel,mas não respondo.
Não veem perspectiva de futuro para mim, aqui,na vila.Acham que seguindo a carreira militar estarei quebrando a tendência de vida humilde que acompanha minha família. Tento me distrair, lendo alguns livros que o professor João emprestou para meu primo."O Príncipe Valente" é muito bom,mas meus pensamentos estão em outra coisa.
Fui envolvido contra minha vontade, quando fui buscar dona Cecília na cidade, agora não consigo tirar os Polozzi da cabeça. O que a mulher estaria fazendo? Teria sido isolada em alguma peça da casa? O bolicho continuaria com as portas abertas? Eram questões que não deveriam me afligir...

* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
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Agradeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido, junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Em carne viva! (II)




Um imprevisível pé de vento se formou a alguns metros do banco onde eu esperava a chegada do trem.Eu procurava algo que me distraísse. As coisas, ultimamente, não andavam nada boas.A insistência por parte de meus pais, para eu entrar para o exército era um problema. Eu não queria servir. Ser arrancado da minha pacata vida, das rotinas simples do campo, para seguir normas e ter que vir para a cidade, era uma coisa que me oprimia. Defender a pátria? A minha pátria era a casinha que meu avô levantara com as próprias mãos, há muitos anos, os animais que tinham de ser cuidados, o plantio e a colheita.Já tínhamos adversários suficientes, as pragas que assolavam o cultivo,as pestes na criação. Que droga! A data do alistamento se aproximava. André, do seu Pedro Belotto, andava se vangloriando que moraria em uma pensão na cidade e se tornaria militar. Ele que se dane.
Comecei a suar devido ao casaco. Pensei em tirar,mas lembrei a recomendação de meu pai:"Não aperte a mão dela e procure não respirar perto.Fique de casaco e use o lenço, no nariz e na boca, quando ela falar contigo." Polozzi, desgraçado, me deixou ali, sozinho, e se dirigiu para um boteco, beber. Pelo jeito, caberia a mim dar as boas vindas à leprosa. Coitada. Não iria mais chamá-la assim. Sempre tão gentil e atenciosa comigo. De uma beleza diferente, agressiva até.
Nunca entendi o que ela viu no Polozzi. A diferença de idade é considerável. É um mão de vaca notório. A coitada da dona Cecília, e as crianças, andam mal vestidas. Ouvi dizer que o dinheiro das cucas e pães, ele toma e gasta com chinas.
Veio no caminho, me indagando sobre os namoros das moças que moram nas redondezas, suas anatomias, e outras coisas que me anojam, vindas dele. Safado.
Como estaria dona Cecília? Será que a doença já a deformara?
Senti um frio no estómago quando ouvi o apito do trem. Polozzi, apareça, bêbado miserável. As pessoas parecem ansiosas de alegria, aguardando quem chega. Eu estava com medo.
Espichei a cabeça em direção à rua. Nem sinal de Polozzi. Os passageiros começaram a desembarcar,a maioria, moradores da sede. Com certeza, nem desconfiam do risco que correram. Fosse em outra circunstância,até seria divertido ironizar alguns daqueles cavalheiros empertigados e suas damas. Um homem obeso, com uma enorme mala, se desequilibrou e quase despencou por sobre mim e mais dois rapazes.
Várias pessoas desciam, e eram recebidas por parentes ou conhecidos, um vozerio de alegria e vivas aos recém-chegados. Meu coração acelerou.
Toda de preto, um pouco mais magra, e...mais bonita, dona Cecília surgiu. Primeiro a cabeça à porta, olhando para os lados, provavelmente procurando o marido.
Fui obrigado a fazer um sinal, que ignorou. Chamei a atenção novamente, e então fui notado. Os olhos castanhos pareciam tristes,mas não perderam o vigor. Ela fez um sinal com a cabeça e eu me aproximei,buscando uma naturalidade que não existia. Expliquei que Polozzi estava ali até a pouco, e que não sabia onde fora.
Ela balançou a cabeça.
Resolvi carregar as pesadas malas, com folhas de jornal nas alças, para evitar o contato. Ela baixou o olhar. Não queria magoá-la, mas não consegui estabelecer nenhum diálogo. O que poderia lhe falar? Se a estada no leprosário tinha sido agradável ou se estava ali para ficar? Eu era um completo idiota.
O peso era descomunal, parecia haver pedras dentro da bagagem. A carroça, eu havia deixado debaixo de árvores, em frente à Estação.
Ela guardava certa distãncia,para meu alívio. Erguer as malas na carroça, exigiu toda minha força. Sou forte e desenvolvido para minha idade. De corpo.Sou uma negação para lidar com pessoas. Perguntei se queria que fosse atrás do marido. Ela parecia confusa,pensou e rejeitou a sugestão. Fôssemos embora, não via a hora de estar em sua casa. Eu poderia ter oferecido ajuda para ela subir, mas temi que aceitasse. Decidida, subiu e tomou assento. O rosto estava um pouco vermelho,a mão esquerda tinha uma mancha quase imperceptível,enfim, se eu não soubesse que estava doente,poderia tomá-la como qualquer uma daquelas senhoras que desembarcaram juntas. Só que dona Cecília era muito mais bonita.
Pensei em Polozzi, qual seria sua reação ao descobrir que partimos sem ele. Eu não gostava do sujeito mesmo.. O sol começava a baixar e manobrei a carroça. Ouvi o choro abafado da mulher, ao meu lado,mas não consegui olhar. Seria por causa do afastamento dos filhos? Resolvi tirar o casaco.Com o canto dos olhos, notei que me observava. Não tenho certeza, mas acho que meu gesto a fez parar de chorar.


* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
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