quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Chico Piau!






Que Chico Piau fosse um lobisomem todo mundo sabia, ou melhor, desconfiava. O homem morava em casebre de madeira e era o vigia da pedreira, que ficava a uns dois quilômetros da cidade. Naqueles tempos não havia o asfalto e as estradas eram de cascalho.
Eu não passava de um menino, tinha onze ou doze anos e a dimensão que as coisas tomaram podem bem ter sido fruto de uma prodigiosa imaginação que me levou mais tarde a ser escritor, embora eu não acredite muito nisso.
Era uma época onde a ditadura militar impunha uma restrição ao pensar, ao imaginar, e isso fazia com que muitos acontecimentos cotidianos tivessem várias versões, escapando por vezes ao controle.
Eram fantasmas que sempre batiam às nossas portas, como uma ameaça invisível, sempre pronta a nos engolir. “Cuidado com a língua, senão esses milicos cortam fora...” meu pai dizia a um irmão desbocado que esbravejava contra tudo e todos.
As coisas começaram a ficar estranhas no inverno de 68, se não me engano. Um andarilho conhecido de todos, chamado Fuinha na cidade sumiu por vários dias. A princípio ninguém deu falta do pobre diabo que sobrevivia de doações de alimentos de porta em porta, ou se deram falta, não atentaram para a gravidade do fato até o corpo ser encontrado mutilado perto dos trilhos do trem, em um matagal.
As autoridades deram por um ataque de leão, visto que um daqueles circos miseráveis que pulam de cidade em cidade abandonou um felino já muito velho e que não conseguia desempenhar os comandos do adestrador. O fato que as autoridades não levaram em conta, ou não quiseram levar, é que o animal nem dentes tinha mais e as unhas haviam sido extraídas em um ato de barbárie.
Os dias posteriores ao ocorrido foram de grande agitação, muitos já querendo formar milícias para ir à caça do velho leão. Os policiais e alguns moradores mais antigos acabaram encontrando a carcaça do animal em adiantado estado de decomposição dois dias após a morte do Fuinha. O delegado preferiu enterrar o bicho e dar por encerrado o caso. Mais tarde entendi que em se tratando de coisas que despertam o medo ancestral da humanidade, o homem prefere achar uma solução fácil e que tenha uma explicação lógica.
Dois meses se passaram e uma criança, que morava na periferia da cidade sumiu e aí sim, o medo entrou em cada casa como uma sombra e transformou as noites dos moradores da cidadezinha um espera silenciosa. A ameaça invisível podia chegar a qualquer momento.
Hoje eu poderia lembrar tudo àquilo com tranqüilidade, pois a maioria dos acontecimentos ruins que nos atingem em criança, a vida adulta e suas responsabilidades tratam de abrandar e transformar isso em uma coisa que cause em certos casos boas gargalhadas. O que me preocupa é que até hoje suo frio quando penso naquele episódio.
O que conto aqui são as impressões de uma criança de doze anos e que insiste em continuar aqui, dentro da minha cabeça, exatamente, detalhe por detalhe como ocorreu naquela noite horrorosa.
Uma tardezinha depois de muito futebol com uma bola feita de jornal dentro de uma velha meia de náilon, eu o Alberto, meu inseparável companheiro de escola e que morava na mesma rua, fizemos uma aposta típica de meninos que precisavam afirmar sua coragem: quem fosse até o barraco do Chico Piau na pedreira e ficasse de tocaia esperando para ver qualquer movimento estranho, como o Chico virar lobisomem, por exemplo, seria o rei da rua. A noite seria aquela, de quinta para sexta. Segundo a lenda era nesse período que os homens atingidos pela maldição se transformavam. Eu convenci meus pais que iria dormir na casa do Alberto (como era fácil enganar as pessoas, eram raros os que tinham telefone, no caso de confirmação para alguma coisa).
Cara ou coroa foi o que acabou decidindo que seria eu quem iria até a casa do Chico Piau e tinha que trazer uma prova, no caso algum pertence, ou peça de roupa. Pensei em desistir, mas seria uma vergonha enorme para minha honra perante os amigos.
Quanto tempo eu levei para chegar até o alto da pedreira, indo pela estrada iluminada somente pela luz da enorme lua cheia eu não saberia dizer. Tudo amplificou perante aquele medo que parecia espremer meu estômago. A lua estava gigantesca, o som dos grilos e corujas parecia ferir meus ouvidos. A cada arbusto eu tinha impressão que alguma fera iria saltar e me fazer em pedaços.
Quando avistei a cabana ela parecia sombria e tinha uma aparência que emitia uma sensação de decadência que eu nunca havia sentido. Eu olhava para a casa que em sua quietude deixava bem claro que estava só adormecida e que um movimento mais brusco da minha parte, que estava escondido atrás de uma enorme pedra, ela despertaria e as conseqüências seriam imprevisíveis.
Respirei fundo e avistei uma camisa vermelha pendurada no varal. Era a prova que eu precisava. Eu levaria a camisa do Chico Piau. Uma prova irrefutável da minha coragem. Não havia cachorros e achei isso estranho. Havia uma nesga de luz inconstante por baixo da porta, provavelmente de um lampião.
Uns dez ou doze metros me separavam do meu alvo, mas esta distância parecia bem maior perante o medo que eu sentia. Avancei receoso e com os olhos fixos na porta e também janela. Meu estômago era como uma geladeira e pesava muito.
Um cheiro de coisa podre invadiu com força minhas narinas. De carne estragada. Uma sombra se movimentou por baixo da porta e eu estanquei. Faltava poucos metros para o varal e resolvi em um último recurso agarrar a camisa e sair correndo em direção à estrada.
Então um barulho de tábuas rangendo e coisas caindo no chão dentro da casa me paralisaram de vez. Todo o casebre começou a tremer e um grito a princípio fino e aos poucos se modificando para um uivo rouco e rascante. Eu queria correr, mas minhas pernas não obedeciam e senti que me mijei. Consegui me virar e acabei tropeçando e caí. Ouvi a porta sendo aberta de forma violenta, mas não quis olhar. Enterrei a cabeça na poeira e a partir daí tudo sumiu da minha lembrança.
Faz muito tempo que luto contra essa amnésia, mas a parte consciente do meu cérebro bloqueou o que aconteceu de verdade na pedreira. Ficou a versão conhecida, que meus pais me contaram.
Fui levado para casa na manhã seguinte em estado apoplético e assim fiquei por cerca de uma semana, com o olhar perdido. Foi o próprio Chico Piau quem me entregou aos meus pais e disse que me encontrou encolhido junto a alguns arbustos.
O Chico Piau morreu uns dois anos depois, devido a um ataque do coração. O casebre foi demolido, mas quem chega nas proximidades da pedreira nas noites de quinta para sexta, quando a lua está completa, jura que escuta um longo uivo, que ecoa longe, em todo o vale.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Décadence avec élégance !




É realmente estranho quando se tem um band-aid no supercílio (acho que foi ontem à noite, mas não lembro). As pessoas passam e te rotulam: bêbado, brigão, levou um murro, bem feito.

Sorte minha que não estou nem aí com eles.

Acho que o corte está infeccionado, pois arde e coça muito.
O que faço às duas da tarde em um dia de sol abrasador ocupando a mesa no fundo de uma lanchonete que recende à fritura? Eu poderia dizer que é só para tomar um desjejum, mas estaria mentindo e de mentiras todo mundo está de saco cheio.

À minha frente um jornal, palavras cruzadas: ator do filme Titanic, começa com “Le” e no meio tem uma “Ca”. Acho que é de nível intermediário (não colocam coisas muito difíceis, subjugando nosso intelecto). Vi esse filme há muito tempo e ainda lembro-me da mão da mocinha no vidro bafejado do carro.

Minha bexiga pesa, mas não estou nem um pouco a fim de ir até o banheiro de vaso manchado e urina por todo o chão. Dentro dos bolsos do paletó, papéis variados, desde cobranças, receitas de remédios e cartões de apostas, eu preferia era ter dinheiro ou vales alimentação. Isso! Vales alimentação. Acho bonitos os tickets que a empresa generosamente nos oferece. O valor, a logo da empresa e ao fundo linhas representando um homem empurrando um carrinho de compras. Vendidos por comida. Isso é o que nós somos.

Estendem um prato de comida e em troca você dá o melhor de si para eles: simpatia, colaboração, superação. Todos crescem juntos, eles mentem. E nós compramos essa mentira como se já não estivéssemos no prego há muito tempo. Minha garganta está seca, lembro do enorme sapo que fui obrigado a engolir ontem há tardinha e diria que estou me especializando nisso.

O ambiente dentro da lanchonete é pesado, como o enorme atendente. Ele já me conhece, venho aqui quase todos os dias, mas prefere fazer de conta que sou novidade e chega esbanjando uma pegajosa e falsa simpatia ao empurrar um sanduíche de atum. Eu poderia jurar que está estragado mesmo sem dar nenhuma mordida. Tenho medo de vomitar e afasto o prato depois do homem virar as costas.

É uma questão de costume se é que me entendem. Se perguntarem se preciso disso, diria com a cara mais deslavada do mundo que não. O que não vem a ser verdade. Ali eu posso sentir a vida. Não a vida limpinha e sem máculas que seria a preconcebida como ideal e que a maioria das pessoas almeja. Eu já tive isso e afirmo com todas as letras: enjoa. Mentira de novo. Peguei vocês. Eu daria tudo para retomar a vida que tive há algum tempo, onde eu mandava e outros obedeciam. Eu comprava e outros admiravam. Eu podia. Mas deixa para lá, isso é passado.

Então, voltamos ao meu momento ali, naquela pocilga que chamam de lanchonete “Ki-delícia”, acho que é este o nome, mas não tenho certeza, pois o letreiro da parede está descascado.

Aqui não se cobra nada, a não ser o que é consumido. Não há ninguém dizendo o que devo ou não fazer, que faltam quinze minutos para voltar à merda do escritório, que tenho que dar andamento em vários documentos e isso me dá um conforto passageiro.
Olho para o relógio agora: faltam doze minutos. Se eu não levantar a bunda dali, perderei a lotação.

Dos lados do banheiro, um homem com a o rosto lívido e molhado passa por mim. Possivelmente regurgitou um pouco da sua desgraça no vaso. Ele faz um aceno com a cabeça. Isso, amigo! Talvez tenha expiado um pouco por mim também.

Levanto e busco uma nota de dez toda emarfanhada em meio a muitos papéis no bolso.
Avisto na prateleira um vinho de boa marca. Talvez eu mereça um presente apesar de tudo. Seria como resgatar um pouco de classe.Pergunto quanto é ao atendente que se surpreende. Aquela garrafa possivelmente está ali mais para enfeite que para venda. Consulta o grandão, que lasca: cinqüenta paus!

Reviro o fundo das calças e minha maleta e consigo juntar quarenta e seis e cinqüenta. Ele me olha embora eu não peça desconto: pode levar por esse preço.

A caixa é muito grande e minha maleta não fecha direito. Coloco debaixo do braço e tomo rumo da porta.

Talvez não precise voltar ali.