quarta-feira, 22 de julho de 2009

A Longa Marcha!


(Partida da Coluna Prestes,na Rua 25 de Julho, outubro de 1924.)

Não conseguiu dormir. Não foi aquele fato em si. Aquela era apenas mais uma das muitas desfeitas que o pai e toda a vila vinham lhe direcionando há algum tempo. No início sofreu muito, mas já cansara disso. Afinal, que mal tinha em gostar de ler e não ter aptidão para o trabalho braçal?
Adorava Machado de Assis e sua Capitu com os olhos de ressaca, na obra de Aluísio de Azevedo identificou-se com o personagem principal de "O Mulato". Que ironia, ele branco que nem papel solidarizando-se com um negro, ou mulato, sabe-se lá. Aliás, qual era diferença entre um negro e um mulato? Só sabia que eram perfeitos para o trabalho brutal. Mas e ele? Não era isso que toda a colônia esperava dele? Que fosse praticamente um animal de tração?
Seus pais quase sempre o ignoravam, a não ser para corrigi-lo ou apontar seus defeitos. O pior que essa perseguição que começara ali, na própria casa, já havia se estendido pelas redondezas. Quase todos já o tratavam como uma espécie de bobo da corte, com brincadeiras de mau-gosto, chacotas a respeito de sua virgindade e o pior, o pouco caso que a filha do padeiro Jurchen e da Frau Elfriede, a graciosa Helga dedicava a ele.
Seu irmão mais velho era o esteio da família. Forte como um touro, os trabalhos na terra eram brincadeira para ele, que manuseava as ferramentas usadas no plantio com grande destreza. Como ele nascera naquela família de plantadores de batatas? Os livros eram sua fuga daquele mundo de pessoas embrutecidas pela labuta de sol a sol.
A maior felicidade de sua desgraçada vida foi sem dúvida tomar para si a amizade do professor Paulus, este vendo seu interesse pela leitura, coisa rara entre as crianças da colônia que mais se interessavam pelas operações matemáticas básicas, o incentivou a entrar em contato com obras clássicas da literatura brasileira e mais, emprestava suas valiosas obras para ele se deleitar à tênue luz dos tocos de vela. Muitas vezes só parava de ler quando a vela se desmanchava por completo, lutando contra o sono e o corpo dolorido.
A devoção quase religiosa ao trabalho era uma virtude de sua raça. Definitivamente era a ovelha fora do rebanho. O corpo magro e franzino, os cabelos loiros desgrenhados e a barba rala e escura, destoavam dos avantajados descendentes de alemães que ha muito haviam se fixado no local.
Estava farto. Tinha certeza que seu intelecto era superior a todos ali, mas como fazer para se redimir perante essa gente? Um ato heróico e talvez Helga voltasse a cumprimentá-lo. Sim, mas o que? Quem sabe uma briga na quermesse ou algo do tipo. Não. As chances de ser massacrado em um duelo assim eram enormes, além disso, odiava violência.
Quando seu primo Ilo comentou em um almoço na sua casa que no dia seguinte sairia da Viação Férrea de Santo Ângelo uma espécie de expedição revolucionária comandadas por um tal capitão Prestis ou Prestes, com o objetivo de arregimentar militantes para confrontar o Presidente Artur Bernardes e seu famigerado republicanismo oligárquico. Segundo Ilo, os voluntários que se encontravam na cidade eram uma horda de bandidos e saqueadores, alguns inclusive criminosos fugidos da Argentina. Ele particularmente não acreditava nisso, pois não ouvira nada a respeito de saques em Santo Ângelo.
O problema era que o pai não o deixaria seguir em uma aventura dessas. Aliás, o pai não o deixaria se aventurar em nada que o fizesse ser feliz. Milhares de vezes imaginara ser a voz definitiva nas quastões da família, todos o abordando e respeitosamente saber sua opinião. Mas ali estava, sofrendo na plantação de batatas. Nem na cidade o pai e o irmão o levavam mais. Era o retrato da derrota. O pai dera o golpe final. Quando pedira a ele para interceder junto ao padeiro Jurchen para atar compromisso com Helga, o pai caíra na risada. Com tantos alemães fortes e trabalhadores, com certeza não seria ele que a moça escolheria, ele que se enxergasse.
Precisava reagir e mostrar que tinha brio. Iria junto com esse que já começava a ser chamado "Cavaleiro da Esperança" nessa tal marcha. Quando voltasse (e se não voltasse?) toda colônia o olharia como um verdadeiro herói de guerra. Pois que seja! Iria em busca de respeito!
Naquela madrugada de ar frio de outubro de 1924, juntou meia dúzia de roupas, um bom número de salsichas, uma cuca inteira, enrolou tudo em um grande pedaço de tecido que lhe servia de coberta e atou. Buscando não fazer nenhum barulho no assoalho barulhento da casa pulou a janela. Iria precisar de um dos cavalos que selou e montou. Em um trotear lento para não alvoroçar a bicharada, pensou em olhar para trás, mas desistiu. Sua redenção estava em Santo Ângelo e na figura enigmática do Capitão Luis Carlos Prestes.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Acerto de contas! (II)



Rincão dos Bugres, interior de São Borja, 1937.

A mulher despertou com o cantar dos galos. Devia ser cinco horas da madrugada. O marido já havia saído. Correu com o olhar o interior do humilde rancho de chão batido e avistou somente os pés de João por trás da cortina de chita estampada. Pelo jeito o menino dormia a sono alto.
O marido era cuidadoso para não acordá-la. Ainda mais agora que estava prenhe. Seria o segundo filho. João contava três anos e era uma criança agitada. Puxara fisicamente a ela. O rosto ovalado, os olhos puxados e a pele cor de cuia. O filho que trazia no bucho, segundo suas contas (ajudada pela experiente parteira Minduca) seria para meados de março. A gravidez correra tranqüila até ali. Era boa parideira, tradição e orgulho de sua família, as mulheres tinham enorme facilidade para pegar barriga e parirem sem maiores complicações. Levantou-se com certa dificuldade devido à protuberância do ventre. Despiu-se e logo vestiu o surrado vestido que ganhara dois anos antes, em uma das idas do marido à cidade. Lavou o rosto na bacia, na água já usada pelo companheiro.
Havia casado há três anos, aos dezesseis de idade. O marido era vizinho de pouca distância. Senhor distinto e trabalhador diziam nas redondezas, uma pena viuvar tão cedo. A esposa morrera de nó nas tripas, uma desgraça visto que haviam ficado sete filhos, idades entre dois e catorze anos. Mas o rodeio no Neco Paranhos fez seus caminhos se cruzarem.
Homem sério e fechado, apesar dos olhares furtivos que dirigia a ela não a abordou sem antes pedir licença a seu irmão mais velho. Econômico nas palavras foi quase direto ao ponto. Lhe observava a algum tempo, sabia da seriedade e honradez da sua família e queria fazê-la esposa e mãe de seus filhos, inclusive os órfãos.Isso a assustou. Era muita responsabilidade para uma menina assumir uma casa e criar tantas crianças, afora os seus que sem dúvida logo viriam. Sabia que os pais a pressionariam para aceitar. Afinal, ali naquele fim de mundo onde ela arrumaria esposo assim? O medo que as meninas que demorassem a casar fossem desvirtuadas pelos peões das vizinhanças ou os tropeiros que por ali cruzassem tornava comum o casamento a partir dos treze anos. Também havia notado o viúvo no velório da esposa. Porte altivo, estatura elevada e um semblante sereno para enfrentar tão difícil situação. Resolveu ser polida, mas não demonstrou interesse pelo homem, o que o fez recuar e abreviar a conversa. Ele reagiu demonstrando uma falsa indiferença, ela que pensasse, pois da parte dele não correria atrás de outra.
As semanas passaram, como ela previra os pais fizeram muito gosto pelo interesse do viúvo e perguntaram por que ela não o havia convidado a aparecer para tomar um mate com eles. Ela desconversava, não admitia largar uma vida sem muitas obrigações para assumir um compromisso pesado para sua pouca idade.
Finalmente quinze dias depois, ele apareceu em sua casa, muito bem vestido. Pediu para ter um particular com seu pai, coisa de poucos minutos, logo o velho lhe dera licença para conversar diretamente com ela. Estava perdida, não sabia o que fazer, não queria decepcionar os pais.
Mas o destino a ajudou. O viúvo contou que sua sogra reivindicara os netos para ela, pois a filha mais nova havia casado e se mudara a pouco e a casa estava “um silêncio só”. A coisa se ajeitou e em poucas semanas, numa cerimônia simples onde o padre viera para celebrar mais três casamentos, se uniram em matrimônio.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Acerto de contas!




Nada que eu fizer vai remediar o que aconteceu. O que fiz é fato consumado, irreversível e doloroso. Absolutamente necessário.
Se me arrependo? Adianta? Acho que não. Os fatos turvilíneos que assomaram minha vida naquele verão de 1980, quando tinha nove anos não amenizaram somente por que eu era uma criança. não fiz terapia por falta de grana. A solução mais plausível e prática é afirmar-tu fizeste o melhor... pra ti mesmo!
Achar que foi um ato egoísta é masoquismo, mas como culpar uma criança por tentar se defender? Impossível. Eu não era o Oliver Twist do meu livro predileto. Minha mãe ainda se culpa achando que tomou a atitude errada. Se ela soubesse que manipulei tudo para a coisa se desenrolar de acordo com o que eu queria...
Bem, talvez a solução seja sobreviver com isso dia após dia, como aquela dorzinha de dente persistente, que se vai levando para evitar de ir ao dentista. Não que eu pense nisso sempre. Esporadicamente chega sem avisar, em forma de lembrança e indagação.
Melhor. Se chegasse em pesadelos, como ocorre na maioria dos casos traumáticos eu estaria fodido.
Na verdade hoje, vinte e quatro anos após a morte dele, acho que sonhei duas ou três vezes no máximo. Ele apareceu muito alinhado, sério e sóbrio. O conteúdo do sonho não lembro. Talvez tudo ficasse mais fácil se a semelhança física que tenho com ele não fosse tanta. É um gene forte, sangue guarani em porcentagem baixa mas o suficiente para eu e meus irmãos sairmos como de uma forma única.
Bom, o melhor é pensar que era destino, aliás, o destino é uma lousa em branco que podemos jogar para ele qualquer insucesso ou fracasso. Prático realmente. O problema começa onde essa eventual “facilidade” entra em conflito com o que penso hoje aos trinta e cinco anos. Já comecei a encontrar o caminho, pelo menos para passar ao largo de problemas que para muitas pessoas soam intransponíveis. Para mim é fácil. Funciona assim- o meu amanhã é um espelho do que eu fizer hoje. Uma matemática infalível. Mas e aquelas equações insolúveis que vem lá de trás. O que fazer com elas?
Pelo menos hoje sei como tudo começou. A cronologia dos fatos que seguem talvez me ajudem a compreender como a situação chegou naquele ponto...
SEGUE

domingo, 5 de julho de 2009

O Início do Fim II-A Trilha



O menino caminhou muito. Atravessou enormes capões e matas cerradas. O pé doía e sangrava desde o pisão em um toco semi-enterrado. O pai havia dito para não parar por nada e só indicou o caminho apontando na direção em que o sol se põe.
Precisava ter tenacidade, pois aquela era a primeira prova que tinha para mostrar que poderia ser um grande guerreiro. Já havia muito tempo que caminhava. A coxilha onde achara o pai agonizante há muito desaparecera. Será que o pai ainda estaria vivo? Ainda não entendia muito sobre gravidade de ferimentos, coisa que na Missão de São Miguel ficava a cargo do velho curandeiro que tratava tudo à base de ervas e emplastos e em casos mais graves, os padres eram avisados e o ferido transportado para uma mesa que ficava em uma peça vizinha ao cômodo onde os padres se reuniam para orar e decidir a rotina diária.
Por intuição, um sentimento de ansiedade que sempre possuiu e lhe alertava para situações ruins ou boas, tinha quase certeza que o pai não escaparia com vida.
Eles haviam saído antes do sol nascer e adentrado uma velha trilha que os padres usavam para as longas excursões à redução de Santo Ângelo. O pai achara que ele, aos onze anos precisava de treinamento em caça e manuseio da lança, além de ser capaz de se localizar em meio ao mato.
Havia ficado chateado na noite anterior quando o pai lhe comunicou que passariam o dia seguinte fora. Já havia avisado ao padre Juanito que iriam caçar, embora o velho desse pouca atenção ao comunicado. Toda a agitação dos últimos meses com a provável chegada das tropas portuguesas para expulsá-los dali tornou o controle dos padres menos rígido.
O menino achava que já manejava muito bem o tacape e a lança. Era difícil não retornar para casa quando lhe era permitido brincar um pouco mais longe, sem um lebrão ou um tatu. O pai o subestimava.
Se embrenharam na trilha muito embarrada e escorregadia devido à grande chuva da noite anterior. O dia ainda não clareara totalmente e os pássaros faziam um enorme alvoroço. O cheiro do mato era maravilhoso. Sentia que pela primeira vez estava participando de algo importante. Mas o que seria? Qual o intuito do pai em treiná-lo com a lança? Ou não estariam fugindo e abandonando a redução? Não. Seu pai não seria capaz de deixar a esposa e seu amado povo para trás. Talvez fosse o que desconfiara. Iria ser treinado para se tornar um líder como o capitão Sepé.
Uma vez vira, escondido em um macegal o capitão Sepé treinando com mais três guerreiros uma espécie de ataque surpresa. Um dos índios representava o inimigo, que cansado apeava do cavalo para beber água. Quando se agachava, Sepé e seus guerreiros saiam do mato e em um rápido ataque simulavam abater o inimigo.
Por onde andaria o capitão Sepé? Fazia muito tempo que não aparecia em São Miguel. Ouviu o pai conversando com outros que o capitão estava empenhado em proteger as reduções e patrulhava na região em pontos estratégicos, mas que não enviava notícias há muito tempo. Estaria o capitão morto? Impossível. Com toda sua destreza e inteligência ele não se deixaria pegar. Era um dos únicos capazes de discutir assuntos mais complexos com os padres. Sua presença emanava uma sensação de proteção a todos ali. O porte altivo, a casaca azul com detalhes em metal e a atenção que dedicava a todos sejam crianças, idosos ou a quem o interpelasse faziam de seus retornos a São Miguel uma festa. Seu sonho era ser treinado pelo próprio Sepé. Daí também seria um guerreiro invencível.
Não notara que o pai havia se afastado propositalmente para testar seu senso de localização e quando deu por si estava sozinho. Olhou em todas as direções e não via nem rastro do pai. Ele saíra da trilha e se embrenhou mata adentro. Procurou pegadas na lama vermelha e ramos quebrados. Após andar em círculos, ouviu ao longe um trotear de cavalo. Seria o capitão Sepé voltando à redução? Resolveu ir em direção ao som. Se encontrasse Sepé este com certeza o ajudaria e aplicariam uma peça no pai. Desviou de alguns troncos caidos com a forte ventania da noite.
Escutou um grito. Era a voz do pai. Talvez o estivesse testando, mas seu instinto dizia que não. Algo ruim havia acontecido. Começou a sentir um medo profundo que tornava seu estômago gelado e os braços amortecidos. Precisava se controlar. O pai sempre dizia isso. Esperou agachado entre arbustos um tempo que não saberia dizer. O barulho de cascos começou a se afastar. Era só um cavaleiro. Teria que vencer aquela sensação de fraqueza e ver o que que tinha ocorrido. Recomeçou a andar e subiu uma íngreme coxilha onde avistou o pai caído. O índio segurava as entranhas com as mãos, o rosto estava lívido e os olhos lacrimejantes e arregalados. Com certeza havia levado um golpe de baioneta. Já vira outro índio ser ferido assim em uma briga com um soldado.
O pai em um esforço brutal ,conseguiu sussurrante lhe passar orientações. Que fosse na direção em que o sol se põe que chegaria a SãO Miguel, fora ferido por um batedor das tropas portuguesas e que em breve aquela horda de assassinos devastaria o que encontrasse pela frente. Ele que não parasse por nada, nem olhasse para trás, apenas corresse muito e avisasse os padres. O menino tentou argumentar que não o deixaria, mas o índio foi firme e exerceu sua autoridade de pai mesmo morimbundo. Disse que aquela era sua primeira missão para se tornar um valoroso guerreiro. Partiu com o peito apertado duvidando se veria aquele valente homem novamente.
Mas precisava cumprir aquela prova de fogo, precisava voltar à redução logo ou os asssassinos pegariam seu povo desavisado.
O pé doía muito. A noite começava a se aproximar e a sensação de medo e frio no estômago virou fome. Ao pular uma enorme pedra reencontrou a trilha. Pela paisagem estava perto. Estava perto de sua primeira vitória. A sua frente surgiu uma clareira e ele avistou a redução de São Miguel na penumbra,com algumas tochas na rua principal.
Ouviu o som melancólico e calmo das flautas e do coral guarani...

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Coisas para fazer nas Missões quando se está morto!




Bem, sempre tive dois básicos e indispensáveis pecados. O primeiro o da luxúria e o segundo menos de uma cabeça atrás, o da gula. O primeiro até saudável, afinal o apetite sexual irrefreável me ajudou a queimar meu dinheiro e também algumas calorias. Já o outro foi acabou sendo o inimigo intimo e mortal do primeiro.
O que vou contar a vocês começou em uma sexta-feira.
Sai antes do trabalho e fui para meu apartamento, o qual vivo (ou vivia) sozinho. Pedi para compensar horas no escritório e o verme do meu supervisor fez um charme enorme para me liberar. Demorou remexendo em uma pilha de documentos, tipo-"como tu queres sair mais cedo se tem uma montanha de serviço para atualizar?". Antes do cu de ferro me dar uma resposta negativa, disse que havia comentado com nosso chefão que estava me sentindo exausto pois tinha ficado na noite anterior até às duas da matina e fora ele que havia sugerido pedir para ir para casa. O sacana levantou a cabeça daquela maçaroca de papéis e me deu uma olhada por sobre aqueles óculos de aro bem fino e mais para fazer charme que para corrigir alguma coisa naqueles olhos de raposa. Suspirou e a contragosto disse como que fazendo um favor- "Ok,vai lá,vou separar algumas coisas que ficaram pendentes e amanhã cedo tu revisa tudo."
Quanta generosidade daquele filho da mãe. Eu havia passado meu horário de almoço cobrindo meu colega que faltou e na minha mesa um mísero pacotinho daquelas rapaduras cortadas em cubinhos que eu havia comprado ali no real da Avenida Brasil para um caso de emergência. Meu Deus como eu ainda estava vivo? Cinco horas da tarde e eu com meu corpanzil de metro e setenta e cento e vinte quilos com apenas aquelas rapadurinhas.
Não me despedi de ninguém peguei meu casaco e me mandei dali com a cabeça dividida. Imagiva o que comer para saciar aquela fome animalesca e também projetava o encontro que havia marcado com a secretária do escritório vizinho, famosa por ter saído com toda a ala masculina do prédio. Embora eu não fosse exatamente o que se pode chamar de “Deus Grego” em uma situação normal diria que não tinha chances com ela, mas levei em conta a seqüência e notei que eu era o último com gametas masculinos naquele logradouro. Investi e em dois dias estava com o encontro marcado.
Cheguei na portaria e o porteiro me passou as correspondências,uma rápida passada de olhos e nada de anormal-cobranças, contas de luz, propagandas de lojas. Olhei para a escadaria e desisti da empreitada. O médico havia me aconselhado a subir e descer fazendo de conta que o elevador fosse um ornamento do prédio. Não. A fome era muita.
Eu chegava estar trêmulo de fome. Uma coisa assustadora realmente. Provavelmente se a encarquilhada senhora do setenta e um entrasse no elevador com a tradicional torta de nozes que seguidamente comprava na padaria ao lado do cartório correria sério risco de ser atacada ali mesmo.Quando as portas se abrissem,lá estaria a megera com o pescoço quebrado e eu afocinhado no glacê.Que horror! Corri com minhas limitações de um homem avolumado até o fim do corredor, abri rapidamente a porta e num rompante desesperado e o cérebro já não lembrando a ordem alfabética folhei a lista telefônica. Mais no instinto que na coordenação achei o telefone de uma famosa pizzaria e calzoneria santoangelense. Falei diretamente com o dono, conhecido de muito tempo e um incentivador dos meus hábitos quase ritualísticos antes de fazer desaparecer um calzone gigante de strogonoff, preferencialmente de frango,especiaria especialmente desenvolvida por ele para saciar meu apetite incontrolável em certas noites. Naquele momento a gula havia superado a luxúria. Em meia-hora já completamente esquecido do encontro romântico que aconteceria em pouco tempo. Comi aquele calzone que devia pesar algo em torno de dois quilos e meio e que havia custado a vida de umas duas bravas e penosas galinhas. Saboreei com luxúria (aquela que eu deveria empreender em breve) e metodicamente e acompanhado de um balde de suco de beterraba de minha própria autoria. Ao final, já vencido o desafio e com uma espécie de rigidez cadavérica na minha cintura de lutador de sumô, ouvi a campainha.
Cacete,como havia esquecido a secretária? Meus instintos mais básicos ali.Latentes e pujantes.Ela estava sensualíssima em um vestido curto e com um decote em V que ia até o umbigo. Entrou sem pedir licença e foi me empurrando aos cutucões em direção ao sofá. Tinha ouvido no escritório comentários sussurrantes pelos cantos acerca da fúria uterina da moça. Mas daí a ela me assaltar daquele jeito havia uma certa distância.
Fui recuando e caí de costas sobre o estofado.Acho que o vizinho de baixo deve ter sentido alguns pontos na escala Richter. Ela em um movimento rápido se despiu. Não havia roupa íntima. Nua em pêlo. Não tive muito tempo para apreciar a visão pois em um salto digno de ginasta olímpica, ela montou sobre meu vistoso e protuberante ventre acavalando-se e prendendo-me em uma chave de pernas. O súbito choque provocou uma sonora e violenta reação flatulenta em cadeia. Minhas entranhas se contorceram de tal maneira que pareciam estar em um liquidificador. Eu comecei a tontear e apaguei.
Só abri os olhos dali a um mês. Acidente vascular cerebral!
Estava em uma cadeira de rodas, meus movimentos se resumiam a piscar os olhos e me encontrava em frente a tevê, o Coyote ainda perseguia o Papa-Léguas.Minha rotina dali em diante foi brutalmente modificada. Em vez dos faraônicos banquetes, papinha ingerida de canudinho. O banho era aplicado em mim uma vez por semana, onde o mecânico da oficina em frente e também Rei Momo do carnaval de rua suava às bicas juntamente com a linda enfermeira para lavar meu suntuoso corpo. Sem falar em fraldas enormes e talquinho polvilhado nas minhas virilhas para não assar.
Bem, como vocês perceberam enfrento uma morte em vida. Não tenho nada para fazer, até por que isso é impossível para mim. A vida se passa somente através de meus olhos, de minha boca semi-aberta escorre uma insistente saliva. Meu único deleite é ironizar mentalmente minha situação. A linda e sensual enfermeira almoça ao meu lado, geralmente um hambúrguer, mas nos dias do pagamento se dá ao luxo de mandar vir o calzone de frango e come sem remorsos na minha frente.
Meus dois pecados preferidos ali diante de meus olhos,a luxúria e a gula...