terça-feira, 29 de setembro de 2009

O fim do mundo!



A notícia se espalhou como fogo em um rastro de pólvora.
No início, boataria, alguém, um primo de longe, em passeio, havia comentado, que em sua região, era o assunto em voga. Dessa forma, chegou até o padeiro, que contou para o Antônio da venda, que por sua vez, passou para a Gertrudes do seu Adamastor, de onde toda a cidade tomou conhecimento. Mas era boato, coisa de gente desocupada.
Quando o fato se confirmou, através de um noticioso da capital, o restrito e limitadíssimo universo da interiorana Santo Ângelo, entrou em colapso total. O empório esvaziou suas prateleiras e o alfaiate não vencia a demanda de encomendas de ternos pretos. Seus Malaquias, o alfaiate, conhecido pela avareza e ganância, tinha sentimentos contraditórios. Nunca vira tanto dinheiro na gaveta do velho balcão. Viveria para usufruir a presença reconfortante dos mil réis embaixo do colchão?
Todos queriam estar bem trajados, afinal um evento cósmico, que poderia varrer a cidade dos mapas não era algo comum. A grande maioria dava como certa o fim de sua jornada na vermelha terra missioneira. Além dos ternos, a sapataria do Cosme teve um movimento nunca antes registrado, e o velho mulato obrigou-se a contratar e ensinar o ofício a dois magrelas que residiam na vizinhança. Os munícipes queriam aguardar a chegada do terrível cometa,com nome gringo, elegentemente trajados.
Seu Sá, para descargo de consciência, confessou ao padre o assassínio de três cães, que embora não primassem pela robustez, ladravam a noite inteira na rua da Redução.
Dorival dos Santos, proprietário de uma loja de secos e molhados resolveu contar à devota esposa, que nas noites que saía para "fazer o balanço", na verdade, acabava caindo no porão do Chico Feio, onde andava perdendo muito dinheiro no carteado.
Etérea Fagundes tinha uma missão ainda mais penosa. Contar ao esposo a origem da alvura da pele do caçula Pedrinho.
Antoninho das Dores, o sacristão, vinha escutando o sibilar de um açoite e gemidos de dor, ao passar pela porta do aposento do padre Lara.
Bartolomeu Rezende, que junto com Floriano Bezerra e Nicolau Cortez representavam a "nova intelectualidade", também assíduos das boêmias mesas das casas mal-faladas e ateus fervorosos, foi visto rondando a casa paroquial durante vários dias, até que em um rompante adentrou com uma maçaroca de dinheiro nas mãos, atropelando as palavras e anunciando que queria comprar três rosários "para uma velha tia".
Bonifácio Gomes, funcionário do correio, de compleição magra, escasso de carnes e olhos de rato assustado, tirou as roupas, dobrou-as meticulosamente, e colocou-as sobre uma pedra. Em seguida, entrou nas águas frias do rio Ijuí, e foi caminhando até submergir totalmente, ignorando o fato de nunca ter aprendido a nadar.
Juvêncio Dias, pequeno criador de porcos no extremo leste da cidade, resolveu não mais matar os animais, iria a partir dali consumir só o que havia na despensa.
Antero Pitta, notório negador de contas, abriu o cofre escondido abaixo do assoalho do seu quarto,e retirou uma grande quantia. Iria, na tarde seguinte, fazer "um acerto,mulher!" com a imensa lista de credores.
Seu Gideão Varella,octagenário plantador de verduras, juntou os pertences mais necessários e os colocou na carroça junto à sua velha. Iria passar "uns dias!" na pequena propriedade rural para os lados do Comandaí, que se localizava em uma baixada. Talvez "o rabo do bicho não conseguisse atingí-los com rabetiada fatal".
E assim, as abnegadas almas, que residiam em Santo Ângelo Custódio, daquele inicio de século XX, esperavam ansiosos e tementes o seu fim do mundo...

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Soldados do ódio!



Seu reinado se consolidou pela força do ódio.
Iniciou como mero soldado da causa. Tarefas simples a princípio. Acompanhar as moças nos passeios pelos bairros de grande movimentação e atrair jovens que por ali perambulavam. Elas geralmente com suas roupas de couro pretas com reluzentes tachinhas, a maquiagem pesada, piercings e uma conversa a princípio agradável que em nada denunciava seus verdadeiros intuítos.
Ficou dois anos nessa função. Pouco falando e representando o papel de irmão nerd. As moças eram regularmente trocadas para não ficarem "manjadas" na área. Passou a ser um detalhista observador e notou a falta de comprometimento de muitos militantes, que pareciam mais interessados nas orgias promovidas em grandes galpões abandonados na orla da cidade.
Muitos o estranhavam. Não bebia, não fumava e não ficava com as vagabundas.
Resolveu pedir a seu sargento interceder em seu favor junto ao comandante geral. Queria uma chance de ir para a frente de combate. Havia de mostrar seu valor. Seis meses foi cozinhado em banho-maria até ser designado junto a mais cinco soldados para o ataque a rapazes que estavam buscando seus carros no estacionamento de uma boate gay.
Nessa espécie de batismo ele teve noção da sua verdadeira natureza. Ele era um predador, uma besta que desconhecia a piedade. Chegou a assustar os próprios parceiros com a insandecido ataque contra os indefesos rapazes. Com o soco inglês desfigurou o rosto de dois deles, um terceiro teve várias costelas quebradas a pontapés.
O comandante ficou feliz. Seu primeiro ajudante vinha dando sinais de estar pouco engajado, mais preocupado com as mulheres que comandar os soldados, e nenhum de seus sargentos mostrara o perfil que procurava. Achou o substituto. Observou-o durante um ano. Calado, discreto e letalmente eficiente, talvez um pouco exagerado em suas investidas. Chamou-o para uma discreta conversa e o incumbiu de organizar a própria sucessão. Uma fajuta missão em um balneário deserto foi a última missão do antigo capitão que não foi mais visto.
A partir daí verdadeiras blitzkriegs eram comuns nas madrugadas, colorindo com o rubro sangue de gays, nordestinos e negros as calçadas e o asfalto da capital.
Sua fúria se tornou lendária. Temido até pelos poderosos traficantes de drogas, que evitavam ao máximo conflitos por território. Se tornou o capitão mais sedento por destruição desde que o movimento se organizou dez anos antes, a partir de um tímido estudante de paisagismo.
Dois anos de terror se seguiram. Massacres,estudantes confundidos com as minorias perseguidas seguidamente caiam em suas mãos. Ele precisava limpar a cidade daquelas "raças inferiores". Nisso já havia lido o Mein Kampf, sua bíblia. Já discordava de seu general, achando-o muito estratégico. A causa precisava de ações mais incisivas, chamando a atenção da mídia e insuflando o medo na população. Sem o conhecimento do chefe arregimentou um grupo diretamente fiel a ele e que evitavam maiores contatos com o general. Ações secretas eram efetuadas.
Sua ascensão ao posto maior foi algo até certo ponto normal visto da imposição do horror ao restante do grupo. Tivera que cortar na própria carne. Muitos soldados que não conseguiu subjugar foram eliminados. Sua imposição brutal teve seu momento máximo quando convocou uma secreta reunião com os sargentos responsáveis por vários setores na cidade. Todos já previamente coagidos, claro.
A deposição do chefe maior e sua elevação ao posto foi aprovada pela grande maioria, receosa de retaliações. Acompanhado de dois enormes e ferozes soldados foi pessoalmente levar a notícia ao ex comandante, que nada pode fazer a não ser se resignar. Lhe foi dado uma chance de viver. Não poderia amanhecer o dia naquela cidade e que saísse do estado também.
Finalmente o movimento decolaria e o sul do país ainda seria uma nação independente e livre das influências corruptas daquelas raças menores.
Aquela vitória era sua, mas era apenas uma. Precisava ser mais forte ainda e vencer a maior de suas batalhas- aquela irresístivel atração que os homens negros exerciam sobre sua sexualidade...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O início do fim!




O padre Ramon caminhou manquitolando até a grande árvore que ficava junto ao cotiguaçu e com dificuldade sentou-se em uma grande ramificação na raíz da centenária árvore.Era um hábito de muitos anos ficar ali após o almoço,tendo uma ampla visão de toda a movimentação da redução.
Naquele dia particularmente seu peito era um verdadeiro turbilhão de angústia e ansiedade.
Tomara consciência que a velhice chegara.Estava com sessenta e um anos, mas aparentava muito mais. Com certeza o sentimento de debilidade e impotência iniciou a partir do fatídico aviso de desocupação da redução.
Era um total desprezo ao trabalho abnegado dos irmãos da Companhia de Jesus.Haviam sacrificado suas confortáveis vidas na Europa para desbravarem esse inóspito território ao sul da América,fazendo seu trabalho catequizador, enfrentando feras, pestes e índios selvagens.Haviam superado todas as dificuldades e eregido aquele sonho utópico.
Os índios finalmente entenderam, e melhor, acostumaram-se à proposta dos padres. Alguns tinham um talento impressionante com as mãos e produziam peças fantásticas,com um detalhe curioso-os santos tinham os traços indiáticos. Outros se revelarem músicos talentosos, reproduzindo fielmente grandes composições da música clássica.
Estavam domados.. A promiscuidade inicial havia sido banida a pajelança idem,embora fosse praticamente impossível extirpar certas superstições deles.Eram por demais místicos.O padre deu um suspiro profundo e alto,chamando a atenção de um grupo de jovens índias que por ali passavam, o que resultou em risadinhas e cutucões.
O que seria daquela gente agora que sua essência primitiva lhe havia sido arrancada?
Será que todo o hercúleo esforço dos padres para humanizar aquelas longinquas paisagens iria acabar com um retumbante fracasso? Que tinham eles a ver com as escusas tramóias entre Espanha e Portugal?
O prazo havia sido estipulado, as ameaças não foram nem um pouco veladas. Alguns padres mais jovens e voluntariosos andavam de conluio com os líderes indígenas a fomentar idéias bélicas de resistência.Sacrilégio!! Eles,os homens escolhidos para levar a palavra de Deus aos homens,pensando em táticas de guerrilha.Era o fim do mundo.
Um indiozinho o puxava insistente pela batina,o rostinho moreno aparentava uma serenidade a muito esquecida pelo padre.Queria ouvir uma história.
-Venha cá menino,padre Ramon vai contar uma história muito antiga.A história de Davi e Golias...
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* Para os visitantes de outros estados,moro em Santo Ângelo, região das Missões, parte noroeste do Rio Grande do Sul e próximo à divisa com a Argentina. Minha cidade foi a última redução das sete eregidas pelos padres da Companhia de Jesus no no processo de demarcação de território pela Espanha e catequização dos indíos guaranis,reais donos desse território em meados do Século XVIII.No século XVIII a região estava sob disputa entre Espanha e Portugal. O Tratado de Madri de 1750 havia posto a área à disposição de Portugal em troca da Colônia do Sacramento, e a saída dos Jesuítas espanhóis ali ficou decretada. Mas este Tratado gerou conflitos: nem padres nem índios queriam abandonar suas reduções, nem os portugueses queriam abandonar Sacramento. Houve uma série de confrontos armados que culminaram na Guerra Guaranítica, que deixou um rastro de destruição e sangue,um verdadeiro massacre visto da disparidade de forças entre as tropas armadas e os índios e padres com lanças e flechas.
Os Sete Povos fazem parte de um importante capítulo da história do Rio Grande do Sul. Deram origem a cidades, auxiliaram na delimitação de fronteiras, e foram tema para a formação de um grande folclore regionalista de tom heróico em torno das figuras dos padres e dos índios, dentre os quais em especial Sepé Tiaraju. A cultura desenvolvida nestes centros chegou a alto nível de complexidade em termos de arte, urbanismo e harmonia social, e suas relíquias ainda podem ser vistas nos sítios arqueológicos e nos museus regionais. Sua importância é tamanha que foi digna da atenção da UNESCO, e o acervo de estatuária que se preservou e está espalhado em coleções privadas e públicas é hoje patrimônio nacional tombado pela UNESCO.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A complexa arte de amar!



- Vida, cada vez que passas na frente da tevê estou sujeito a levar um gol se não der tempo de apertar o start.
- Desculpa Benhê, eu nem lembrei que estava jogando videogame.
- Tá desculpada, só cuida para não passar de novo,tá?
- Claro. Só uma coisinha-olha este arranjo...ele fica melhor aqui ou aqui?
- Humm!Acho que em qualquer dos dois...
- Como assim?
- Qualquer dos dois lugares.
- Ah,tá.
(10 segundos)
- Me alcança essa revista que está aí do teu lado?
- ...!
- Obrigado. Se eu soubesse que ia fazer cara feia não teria pedido.
- Eu não fiz cara feia, Vida. Só que estou na semifinal e preciso me concentrar no jogo.
- Não sei que graça vocês(homens) acham nesses bonequinhos correndo atrás de uma bola.
- Esse jogo é muito real, amor. Ele simula todas as situações de uma partida de futebol.
- Hummpf! Pra mim continua não tendo graça...
(12 segundos)
- Eu te contei que a Rosália brigou lá na firma?
- Acho que sim...
- Então por que foi?
- Por que foi o quê?
- A briga. Se já te contei deves saber.
- Acho que foi...uhhhhh!Quase meti um golaço. Acho que foi fofoca.
- Da parte de quem?
- Como assim, Vida? Quem inic...rrrrrrr! Agora escapei de levar um. Quem iniciou a briga, é isso que queres saber?
- É!
- Para falar a verdade eu não lembro não!
- Taí, ó! Tu estás chutando. Sabes que noventa e nove por cento das brigas lá na firma são por fofoca. E eu nem havia te contado do barraco da Rosália.
- Então teve uma briga parecida semana passada, não teve?
- Tu deleta a maioria das coisas que eu te conto.
- Que besteira. Tá tudo guardadinho aqui, ó!
- Cínico.
(15 segundos devido à irritação)
- Benhê, comprei aquela lingerie do catálogo.
- Que catálogo?
- Aquele que olhamos juntos e tu gostou daquele conjunto rendado vermelho...
- Ah, tá. E quando chega?
- Eu tô com ele!!!
- Que merda tomei um gol! Eu disse "quando chega, chega arrasando!"
- Bobo!
- Tolinha! Vem cá!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O homem que odiava espelhos!



Era a terceira cidade em um ano. Gostava dessa última. Tinha opções de divertimento embora não mais soubesse o que era isso. Pessoas alegres e de aparência saudável com suas crianças pelas alamedas ensolaradas, shoppings movimentados, cores, odores e sabores nas mesas postas nas calçadas das ruas principais, onde tagarelantes e semi-embriagados amigos curtiam um happy hour sem compromisso de falarem verdades embalados por shopp gelado.
Iria ficar. Desta vez iria ficar.
Bobagem! Não ia e sabia disso. A fuga continuaria como vinha sendo nos últimos anos. Exatamente igual. Acordaria encharcado de suar no meio da madrugada com o coração prestes a sair pela boca, inundado daquela terrível sensação de abandono completo, de não pertencer àquele lugar,ao contexto e a absolutamente tudo que ali estivesse. Sentiria falta falta de algo que nunca lhe pertenceu. Não reconheceria a companheira de cama que dormia um sono plácido ao seu lado. Aí teria que partir imediatamente.
Desta vez seria muito difícil. Gostava realmente da mulher que trabalhava no mesmo restaurante em que era lavador de pratos. Haviam saído algumas vezes e ela o levara até sua casa onde mostrou sua antiga coleção de vinis e K-7´s .Algo nela o tocou. Algo profundo e doloroso. Uma solidão quase palpável. Ela representava perigo.
Por que tinha de ser assim? Se fizera essa pergunta centenas de vezes. Que tipo de sina o acompanhava naqueles últimos anos? Fatalidades aconteciam com todo mundo. Teria de vencer os fantasmas. Mas era fraco, fraco demais.
Já não sabia mais se o medo era de ser encontrado ou encontrar. Mudara o estilo de vestir, o cabelo e até o jeito de caminhar para não se reconhecer. Nada adiantou. Ainda teria que fugir muitas vezes...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Encontro Marcado II



Mesmo sem nenhum movimento, senti a presença forte aos pés da cama. Meus batimentos se alteraram imediatamente. Tateei às cegas para localizar a pistola no criado mudo. Nesse processo derrubei o despertador, um copo dágua e a caixa de remédios que tomava para dormir.
- Nem se incomode, amigo. Não vai precisar disso.-Era uma voz rascante e curtida por centenas de anos de cigarro.
- Vou te furar filho da mãe!-bravateei ainda procurando a arma.
- Está aqui! -me mostrando a pistola e o pente.
- Achei melhor recolher isto antes que prejudicasse meu trabalho.
- Olha cara, tudo é negociável, tenho dinheiro guardado em outro lugar. -eu havia pego uma quantia considerável com um agiota que já vinha me ameaçando há semanas.
- Estás enganado. Nem tudo é negociável.
Que merda! Os desgraçados tinham me achado. Eu tinha uma vaga esperança que fosse só espancado.
- Olha, eu falei com o Cheique que ia pagar, é só uma questão de tempo, dias talvez.
- Especificamente no teu caso, o dinheiro não faz mais diferença alguma.
Era o fim. Acabava ali trinta e cinco anos de pilantragem. Restava agir com dignidade naqueles últimos momentos.
- Tudo bem, acaba logo com isso seu puto!
- Eu não tenho pressa, ainda restam alguns minutos. -meteu a mão no colete e puxou um relógio de bolso. Eu já não entendia mais nada. Será que queria me torturar psicologicamente?
Meus olhos já começavam a se acostumar com a penumbra. O velho tinha algo de familiar. De onde eu o conhecia? O cabelo grande e desalinhado, o rosto miudo e muito, mas muito enrugado era ornado por dois olhos de um preto reluzente e vivo, que lançava chispas de presunção, indolência e autosuficiência. Usava uma bandana e um inacreditável anel da caveira em um dos deformados dedos.
Keith Richards estava aos pés do meu leito prontinho para me matar. Definitivamente não era uma coisa corriqueira.
Antes que eu falasse ele disse.
- Escolhi esse personagem para parecer mais acolhedor ao amigo! Ele é um dos teus grandes ídolos,não é?
Surreal. Salvador Dali brincando de pintar minha vida em uma nuance desvairada.- ele continuou.
- Teu tempo esgotou. Sou quem vocês chamam de morte, mas acho simpático aquelas bobagens de ceifador com capuz e tudo.
- Quer saber de uma coisa, se veio realmente me matar, esta se saindo um grande canastrão. Vai te foder.
- Foder...foder... Sabe, em um certo onze de setembro eu tive que me desdobrar em muitos e estava realmente estressado. Quase não consegui cumprir minha missão e ainda pela tardinha teria que recolher um famoso cineasta. Antes de abordá-lo, espreitei atrás de uma cortina no suntuoso apartamento de Manhattan. Ele estava a conceder uma entrevista para um canal de tevê e fez um equiparação hilária entre o sexo e eu-"a diferença entre o sexo e a morte é que com a morte você pode faze-lo sozinho sem ninguém para rir de você!"- achei o máximo e resolvi poupá-lo. Ele anda até hoje por aí. Mas não se anime, ele se salvou pelo talento!
Se fosse realmente a morte, era um puxa saco de primeira.
- Está enganado.-conseguia ler meus pensamentos!- Estou nesse negócio desde o início dos tempos e aprendi a distinguir homens de valor da escória, não que faça diferença, pois sempre vencerei.
- E eu com certeza estou no rol dos abjetos?
- Preciso te responder? Ladrão, gigolô, dedo duro e o pior...tão sem graça!
Resolvi endurecer o jogo e provocá-lo com ironia.
-Você é tão previsível...
Checou o relógio, acendeu um cigarro e com uma voz roufenha de bluesman disse.
- Simbora, é agora...
Virou as costas e saiu naquele andar trôpego de velho pirata bêbado ao mesmo tempo em que uma dor lancinante explodiu em meu peito.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Lutador!



O supercílio direito estava aberto e o sangue tornava o olho esquerdo praticamente sem função. Achava que havia fraturado o nariz, pois sentia algo solto cada vez que puxava o ar. Que bela imagem teriam pela manhã os fregueses das barras de gelo.
O rosto estava tomado de equimoses devido aos socos. Aquele mestiço que vinha representando São Borja o havia castigado enormemente. Tinha quase dois metros de altura e era surpreendentemente rápido para o tamanho. Quando sua esquerda passava pela guarda causava um grande estrago. Diziam que treinava o dia todo em uma academia montada em uma fazenda de um dos Vargas, que o tiraram dos brutais trabalhos da lida campeira e investido em seu potencial. O que não era seu caso.
Trabalhava durante o dia entregando barras de gelo.Começava cinco da manhã saindo da fábrica que ficava no extremo sul com a carroça abarrotada de entregas para a cidade inteira. Seu condicionamento era descarregar as enormes barras para as geladeiras dos lares santoangelenses.
A figura corpulenta e simpática o tornaram querido por todos os cantos do município.
Quem descobriu seu talento para a luta foi um capitão carioca que ficara impressionado com o porte físico avantajado e a grande força para aquele serviço braçal. Convidou-o a treinar junto com militares e pouco tempo após pegar as técnicas básicas do boxer já era temido pela potência dos golpes. Quando conseguia encaixar sua direita em um golpe justo dificilmente o adversário ficava em pé.
Logo já representava Santo Ângelo em lutas que se realizavam em ringues montados junto ao Cine Apollo, nos Clubes Gaúcho e 28 de Maio.
A luta daquele dia não estava transcorrendo do jeito que esperava. Acordara as três da manhã e já não se sentia muito bem. Talvez fosse um princípio de resfriado. Os últimos dias vinham sendo de preocupação em razão da proximidade do aniversário do filho de oito anos. O menino dócil e educado nunca reclamara presentes antes. Geralmente ganhava algum agrado em sua data e sempre mostrava-se feliz, fosse qualquer coisa. Desta vez tinha sido diferente. Uma semana antes havia lhe pedido uma réplica de ônibus que era construída por um marceneiro que só construia sob encomenda. O preço era elevado para seus ganhos e despesas com a casa. Era privilégio de meninos abastados. O que o sensibilizara era a determinação do garoto que anunciou resoluto que seria motorista de ônibus, como ele próprio fora há anos.
Aquela luta que definiria o campeão missioneiro talvez possibilitasse a extravagância
da compra da réplica. Não havia falado para esposa. Ela seria contra com certeza. Mas ele sabia da importância daquilo, para o filho e para si próprio.
O que não imaginara era que enfrentaria um lutador profissional e muito bem preparado. Havia apanhado desde o primeiro round. Procurou ziguezaguear e fugir da temível canhota do mestiço, mas em duas oportunidades fora atingido em cheio.
Só ficara em pé por milagre. Sentira uma frouxidão nas penas e sentiu o mundo girar,o gosto de sangue inundando a boca. O supercílio abrira em um talho obsceno e inchara imediatamente, deixando-o somente o olho direito para se esquivar da saraivada de golpes. Sentia vontade de vomitar.
O tempo de descanso o salvou.
Retornou procurando manter uma distância segura do punho esquerdo do mestiço, mas sua mobilidade já não era a mesma. A imagem do filho com o brinquedo na mão e o rostinho de felicidade veio em sua mente. O punho do oponente fez vento perto de sua cabeça. Concentrou. Manter a distância e especular um contra-ataque era sua única chance diante daquela máquina de bater. Quanto mesmo ganharia com a luta? O cérebro já estava ficando confuso e ele sabia que tinha pouco tempo.
O adversário parecia irritado por seus golpes não estarem entrando e descuidava cada vez mais da guarda. Sentia uma dor rascante em uma das costelas. Precisava concentrar e achar o momento certo.
Conseguiu mesmo com o rosto deformado esboçar um sorriso matreiro para o mestiço, que com os olhos inflamados de indignação lançou-se em um ataque desarvorado, desferindo golpes a esmo. Então ela apareceu. Vislumbrou a brecha não muito grande mas suficiente para Domingão penetrar com sua poderosa direita, que entrou de baixo para cima, encontrando a ponta do queixo do mestiço, que tentou firmar as pernas, retrocedeu dois passos, vergou os joelhos e desabou seus cento e dez quilos sobre a lona...
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*Esse conto é muito especial para mim, pois o sr. Domingos de Oliveira Fortes era natural de São Luiz Gonzaga, como eu, e também adotou Santo Ângelo como como cidade do coração. Em seu histórico como lutador registra-se cerca de 38 lutas oficiais da quais perdeu 6, empatou 2 e venceu 30, sendo reconhecido o campeão missioneiro de boxe. Talvez nessas minhas maquinações eu tenha encontrado uma das figuras mais interessantes e emblemáticas da história da cidade. Foi motorista de ônibus e posteriormente entregador de barras de gelo. Seu filho,o menino do texto e meu amigo "seu" Adão Fortes, motorista aposentado da linha Santo Ângelo-Porto Alegre detém o título de Motorista Padrão do Sul do Brasil e hoje desenvolve um abnegado serviço social de conscientização por um trânsito mais seguro.
Domingão, como era conhecido, nasceu em São Luiz Gonzaga em 1913, mas há controvérsias em relação à data.Faleceu em 06/02/1993.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Nelsonrodriguiana!




Quem sou eu?
Ótima pergunta. Até aquela quente manhã de verão eu era uma sombra escondida em uma vida medíocre de servilismo burucrático em um pequeno e sujo escritório de advocacia. Não vou negar que aquele poeirento ambiente me deixava extremamente à vontade. Livros emontoados por cima das três antigas e pesadas mesas de mogno. As crises alérgicas que me causavam eram o ônus de usufruir do lugar. Um antigo e pesado rádio à luz, orgulho da velha múmia Vasconcelos, insuportável dono da firma era o que ornava uma das prateleiras da estante onde os livros mais usados para pesquisa ficavam.
Éramos três funcionários. Eu, o Moreira e a Lurdinha. O Moreira era bem mais antigo que eu, também submisso ao gênio irascível do Vasconcelos. Solteirão, franzino e narigudo me lembrava sempre o Ranulfo,o inimigo do Mickey. Morava em uma pensão antiga e mal cuidada no centro da cidade, era alvo de constantes especulações à respeito de sua sexualidade, talvez culpa de seu temperamento arredio e reservado. Eu particularmente o admirava muito, principalmente por seu senso de organização, coisa rara na minha mesa, onde calhamaços de antigos processos, alguns já amarelados pelo tempo se amontoam em uma profusão absurdamente crescente.A impressão que eu tinha é que cada vez que eu chegava pela manhã, a pilha crescia, inversamente à procura dos clientes pelos nossos serviços.
A Lurdinha era o motivo da minha permanência no escritório. Era o arquétipo da mulher fatal. Morena, alta, olhos que pareciam prometer prazeres indescritíveis a quem com ela conversasse e fosse abduzido por aqueles olhos hipnóticos. Eu a amava com o coração, a mente e todas as minhas gônadas. Ela sabia disso e como boa biscate que era, procurava sempre me provocar, passando sempre rente a mim nos espaços reduzidos da sufocante sala onde atendíamos. Queria que eu sentisse o cheiro do seu perfume, que não era grande coisa comparado com seu formidável cheiro de fêmea. Procurava volta e meia usar o fichário que ficava ao lado de minha mesa, deixando aquele avolumado traseiro quase na minha cara, o que resultava em variadas alterações fisiológicas em mim. Fazia um ano que o Vasconcelos anunciara a chegada da nova secretária, vinda segundo ele de um curso ténico em contabilidade, coisa que dúvido muito, pois sua total inaptidão para outra coisa que não me provocar era causa dos acessos de riso do Moreira que vez por outra largava algum documento que estivesse a ler, baixava os óculos fundo de garrafa até a ponta do nariz e ficava a observar a pouca destreza da moça para com tudo relativo à rotina do lugar. Quando ela derrubava algum livro ou me fazia alguma pergunta sobre gramática aos berros da sala de espera- "Seu Marcos, processo é com dois esses no início ou no fim?"- eu escutava retumbar a risada do Moreira na mesa ao lado.
Eu há muito vinha saturado com todo aquela falta de perspectiva do escritório, que vinha definhando, perdendo antigos clientes para jovens advogados, minhas comissões muitas vezes não pagas e a consciência que tinha potencial para ter meu próprio negócio vinham me impelindo a sair de lá.Até a chegada da Lurdinha!
Eu já estava em um estado de paixão que não aguentava os fins de semana que passava sem vê-lá. O problema maior resumia-se no fato que era amante do Vasconcelos e mais de meia dúzia de funcionários do Fórum os quais ela falava ao telefone. Claro,o Vasconcelos não sabia, afinal era ele que bancava o ótimo apartamento na Bento Gonçalves, roupas caras e comida da melhor. Aliás o caso do Vasconcelos era emblemático,pois em casa era um mão de vaca implacável, a mulher e os filhos só comiam carne aos fins de semana. As roupas eram compradas em saldões de fim de estoque em lojas populares.
Enquanto subia as escadas naquela sufocante manhã de verão, já tinha todo o plano armado. O filho da mãe do Vasconcelos ia ter uma senhora surpresa comigo. Todos aqueles anos de desmandos e pouco caso comigo iriam acabar naquele dia. Minha sina de perdedor acabaria ali,naquele dia. Mandaria ele à merda,pediria minhas contas e negociaria os encargos trabalhistas me me devia. Com o dinheiro compraria um mobiliário para uma sala que eu vinha namorando há semanas em uma galeria central. Entraria em contato com alguns clientes fiéis que só tratavam comigo e os levaria junto. Às favas a ética, ele que fosse para o inferno. Para arrematar o golpe final- convidaria a Lurdinha para vir comigo e ser minha secretária exclusiva. Provavelmente não aceitaria,nem eu teria condições de bancá-la, mas o gesto corajoso em si provavelmente mudaria minha imagem perante ela. Talvez essa coragem e empreendorismo que a maioria dessas interesseiras do naipe dela gostam, despertaria uma curiosidade que talvez acabasse uma noitada de sexo.
Entrei resoluto na sala de espera e estranhei a ausência dela. O silêncio na sala de atendimento era sepulcral, nem o maldito rádio ligado na estação que tocava vinte e quatro horas de música sertaneja não estava ligado. O Vasconcelos estava em sua mesa, a cabeça entre as mãos, os olhos no vazio. O cofre que ficava atrás do quadro do menino chorando estava escancarado.
- Marcos, tô fodido! Eu tinha quase cinquenta mil nesse cofre entre dinheiro, jóias e títulos...recebi uma ligação da mãe da Lurdinha. Ela arrumou as malas e acompanhada por um homem que pela descrição...ainda não acredito...era o Moreira, que se apresentou como namorado dela, fugiram os desgraçados!
Me dirigi até a estante, liguei o rádio em uma música do Milionário e José Rico, que falava das dores do amor não correspondido, sentei em minha mesa rindo sozinho e comecei a organizar aquela papelada, afinal que mal teria eu trabalhar mais alguns dias e ficar apreciando aquela tragicomédia que se abateu sobre o escritório da Avenida Brasil,526?

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Perto do fogo!



Conheci o Robertinho na época em que comecei meu primeiro emprego em 1988,em um escritório.Ele trabalhava em uma renomada seguradora como office-boy e utilizava nossos serviços.De compleição magra,cabelos cacheados e ruivos,era um clone do Mick Hucknall da banda Simply Red.A fala macia a voz rouca e arrastada aliada ao bom papo o alçaram a condição e Don Juan do pedaço.Motoqueiro apaixonado e habilidoso,gostava de se exibir em duas rodas.Foi pai aos catorze anos(!!!)
Era fruto de uma relação entre um homem casado e uma prostituta.Logo após seu nascimento o pai o levou para ser criado pela esposa que o recebeu e acolheu como se tivesse sido gerado no próprio útero.Mesmo assim carregou sempre consigo,mais por ele mesmo que sempre tocava nesse assunto que pelos amigos,uma estigma dolorida.
A família ofereceu todas as condições para ele crescer com bom colégio e suporte financeiro.Ele preferiu o caminho do risco procurando algo que não sabia o que era exatamente.Conheceu o mundo das drogas aos doze anos.
Me aproximei dele pelo coração gigantesco,capaz de privar-se de algo em prol de ajudar alguém,mesmo que desconhecido.A ânsia de viver e preencher o enorme vazio que lhe corroía era proporcional ao consumo de drogas,álcool e cigarro.
Acabou sendo demitido pela seguradora por não conseguir cumprir horários e foi contratado pelo nosso escritório.Foi aí que conheci essa grande alma.Foram vários anos de convivência e a certeza minha e de todos que conviveram com ele que se tratava de um menino doce perdido na sua angústia.
Aos poucos as drogas leves foram sendo substituídas pelo uso de cocaína,primeiro via nasal e depois intra-venosa.Noitadas intermináveis de porres homéricos,bebedeira e orgias acabaram com dois casamentos, sua empresa(que havia sido bancada pela família)e quase o conduziram à morte em um acidente terrível de moto em que escapou da morte por detalhes.
Na época em que eu estava fora e vinha à Santo Ângelo,buscava informações sobre ele com conhecidos,mas recebia as mais desencontradas-havia morrido,tinha se recuperado e ido embora,ou estava morando com o pai em um bairro longinquo da cidade para fugir dos credores do tráfico.Eu não sabia em que acreditar, mas com um misto de vontade de abraçar aquele querido amigo e o medo de sabê-lo morto.
Em 2007, ao sair de um edifício no lado oeste da cidade, enxerguei aquela chamativa cabeleira ruiva e associei que sua mãe morava à cerca de uma quadra dali.Era ele, em uma velha bicicleta Monark,uma barba rala,a aparência muito envelhecida, para os apenas quarenta anos,vestia camiseta e jeans imundos e ...me reconheu.
O que se sucedeu exatamente não saberia descrever. Eu tive medo de me aproximar e trocar uma palavra.Medo de deixar transparecer meu profundo pesar por vê-lo naquelas condições.Ele provavelmente teve vergonha de se expor naquela estado de quase mendicância. Um breve aceno com a mão,sem um sorriso foi o que restou de um encontro de dois velhos amigos. Ele se foi e eu fiquei ali parado sem ação e com o peito apertado engolindo em seco e procurando razões...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O Livro!



O pacote parecia sobressair naquele cenário.
Talvez porque fosse um daqueles dias típicos do agosto no Rio Grande do Sul, com muita garoa e frio. Isso só o tornava mais melancólico. Não queria estar ali, naquela rodoviária de uma cidade que não lembrava o nome. Tinha descido para respirar um pouco de ar puro nos quinze minutos em que o ônibus parava para que os passageiros comprassem algum lanche ou ir ao banheiro. Escolheu uma mesa que ficava junto a uma grande janela envidraçada, que lhe dava a possibilidade de observar toda a movimentação em volta do veículo, e o momento que começassem a reembarcar.
Resolveu pedir uma dose de uísque, talvez o ajudasse a relaxar e dormir um pouco, na viagem. O sono vinha sendo algo raro nas últimas semanas, desde que recebera a notícia que teria de mudar-se de Belo Horizonte para a região das Missões, no Rio Grande do Sul.
Um buraco no fim do mundo, era para onde o mandaram! Era isso que dava não ser “puxa-saco” do chefão. Nem sabia da existência desse lugar. Levava somente roupas e o laptop, pois faria um processo de transição com o outro supervisor e voltaria para Beagá para os últimos detalhes da transferência e buscar o carro.
Que diabos de lugar seria aquele? Frio, com certeza. Será que a cidade tinha infra-estrutura para oferecer uma vida noturna agitada, como tanto gostava? Pouco provável. Pesquisou alguma coisa na Internet e as informações não eram nada animadoras.
Aquela região era a mais pobre do estado. A formação étnica passava por uma mistura de várias raças, mas o sangue indígena corria forte por lá. Um nome estranho o deixou curioso- pelo duro!! Caramba, será que índios andavam pelas ruas?
Voltou a atenção, novamente, ao pacote em cima da mesa em frente, vazia. Retangular e envolto em um chamativo e brilhoso papel vermelho, bem no centro da mesa branca. O curioso é que as pessoas que passavam o ignoravam categoricamente, como se ali não estivesse.
Um homem alto, de cavanhaque, chegou a sentar-se para amarrar os sapatos. Mas em seguida, levantou-se e saiu, deixando o pacote intacto. Contos da Crypta! Era só o que faltava, bêbado com uma dose de uísque. Começou a rir sozinho. Foi até o banheiro e passou uma água no rosto. Quando retornou, lá estava ele, mais chamativo ainda, naquele cenário desbotado.
Resolveu recolhê-lo e entregá-lo ao rapaz do caixa, que não quis recebê-lo, alegando ser normativa do local. E agora? Deixava na mesa ou levava? E se fosse algo valioso ou tivesse valor sentimental para alguém? Olhou para fora e viu o último passageiro e o motorista entrando no ônibus.
Dane-se! Levaria com ele. Dirigiu-se rapidamente à plataforma de embarque, entrou no veículo e atirou-se na poltrona vinte e três. Desembrulhou com capricho para não rasgar o papel e deparou-se com um grande livro, estilo enciclopédia, capa dura e cuja capa era ilustrada com a imagem de uma igreja em ruínas entalhado em dourado na capa. O título era “A Guerra Guaranítica”. Começou a rir com a ironia do destino. Quem sabe pudesse instruir-se ,até chegar ao destino e saber um pouco mais sobre o lugar. Ignorando os resmungos do passageiro ao lado, acendeu a lanterninha de teto e começou uma leitura, a princípio, tímida e mais contemplativa. O que descobriu, nas horas seguintes, dentro daquele ônibus, foi algo novo e espetacular e que, surpreendentemente, jamais ouvira falar.
Existira,em meados do século dezoito, um sonho de sociedade utópica na região das Missões. Os padres espanhóis em sua cruzada catequizadora na América, conseguiram amansar índios até então selvagens e perigosos, usando... a cultura!Muitos dos índios das Missões tornaram-se artistas talentosos, tanto em esculturas, como na música clássica. Em uma negociata escusa por partilha de terras entre Portugal e Espanha ,essas reduções foram aniquiladas, e os índios massacrados impiedosamente. Ficou impressionado com as ilustrações das esculturas da época, que se encontram no museu de São Miguel das Missões. Era algo “sui generis”. Os santos missioneiros, esculpidos pelos artesãos guaranis tinham os traços de sua raça, com os olhos puxados e o rosto ovalado.
Duas horas de leitura e sua perspectiva em relação ao lugar, mudara completamente. Algo daquele maravilhoso processo cultural devia ainda restar na região.
Cansado, desembarcou na rodoviária de Santo Ângelo, sua nova cidade por tempo indeterminado. Iria pesquisar mais e buscar resquícios que sobreviveram ao tempo.
Alguns metros após sair, quando ia adentrar um táxi, foi abordado por uma índia, em andrajos imundos, segurando um bebê no colo e mais duas crianças com cestos e balaios.
- Me dá um troquinho?