segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Banquete com mendigos ! (II)




Merda!
Era surpreendente, mas havia merda na escadaria da Catedral. O Bispo já fora avisado por um padre assustado. O inferno de Dante pintado em cores berrantes e sujas no centro histórico da cidade. O vigia recebeu ordens de fechar imediatamente as portas à visitação.
A Brigada fora avisada, mas como prender mais de duzentas pessoas por vadiagem? As autoridades estavam assustadas, afinal havia sido gasto muito dinheiro na reforma do entorno da Igreja. Dantesco, diriam as damas e cavalheiros que foram impedidos de entrar para a missa dominical.
O cheiro fétido dos excrementos por sobre a escadaria aumentava a medida que o sol ia centralizando.
Os mendigos haviam chegado na calada da noite, como um bando de morcegos sedentos, bebendo e comendo restos de comidas catados nas lixeiras do centro.
O primeiro ato seria ali, para o horror das entidades. Briefings já começaram a se elaborar ali em meio a platéia que fora barrada do culto. Velhas canções de amor insatisfeito eram entoadas pelos mendigos,o acompanhamento por batidas nas latas que serviram de recepiente para a comida já azeda.
Em meio à confusão geral,o mendigo Perereca, falastrão, a voz arrastada e chata, dono de um extenso vocabulário das mais baixas impropéries assumiu o comando.
- Hoje vamos mostrar a todos o que realmente (hic) somos! Todos, mesmo vocês, filhos da puta engomados. Somos todos a mesma merda!(hic)
O chato homenzinho do rádio apareceu do nada ao lado do bêbado maltrapilho.
- Perereca, qual a intenção desse movimento?
Perereca olhou demoradamente ao baixinho e após vários soluços, respondeu.
- Ora, que intenção! Incomodar. O que mais seria? (hic) Vamos primeiro demarcar com nossa hepática urina esse território, para que a cada evento organizado com grandiosidade, lembrem que podemos realmente perturbar e chegar de uma hora para outra.
- Pretendem invadir outro local?
- Claro! (hic) Fevereiro está aí e queremos colocar nosso bloco na rua. Mas com isenção, pois não podemos pagar. Iremos fantasiados de nós mesmos.(hic). Depois mais adiante voltaremos para a Cidade dos Doces, pois vamos comer muito e jogar glacê na cara dos concidadãos, como uma legítima comédia pastelão que isso realmente é.(hic)
O homenzinho do rádio não se deu por vencido.
-Perereca, você não morreu de frio no último inverno? Acho que noticiei sua morte...
- Não! Estou mais vivo do que estava em julho.(hic) Na consciência de cada cidadão da cidade dos anjos.Agora me deixa que eu estou louco de fome, putaquepariu!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O grande olho!




Escondido atrás de indeléveis e antigos pragmatismos,nas sombras eu observava. Não por ânsia ou desejo, apenas por ser inerente a mim.
Quem eram ou suas intenções, pouco me importava. Menos mal que minha presença era propositalmente ignorada. Eu era como um velho vaso que fazia parte daquele contexto há muito tempo. Apenas estava, imparcial e esquivo.
A verdade é que eu fora absorvido por toda aquela engrenagem e acabei gostando disso, mesmo não interferindo em nada. Quebraria as regras se fizesse isso, além da coisa perder toda sua graça. O deslumbramento inicial com a fauna humana, toda sua inaptidão pela convivência consentida me deliciava.
O gosto pelo caos institucionalizado por vezes me fazia sentar no banco dos réus, condenado antes do veredito de um juiz previsível, mas sempre havia a possibilidade de um acordo.
É absoluto que estou em posição confortável e seria hipócrita se afirmasse o contrário.Muito tempo transcorreu desde a descoberta que gostam desse joguinho. São péssimos atores, mas sempre gostei de filmes B. Da minha mesa junto a vidraça, a fumaça que evapora da minha xícara de café é uma protetora e transparente cortina. Orwell simpatizaria comigo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Coisas para fazer nas Missões quando se está morto!






Bem, sempre tive dois básicos e indispensáveis pecados. O primeiro o da luxúria e o segundo menos de uma cabeça atrás, o da gula. O primeiro até saudável, afinal o apetite sexual irrefreável me ajudou a queimar meu dinheiro e também algumas calorias. Já o outro foi acabou sendo o inimigo intimo e mortal do primeiro.
O que vou contar a vocês começou em uma sexta-feira.
Sai antes do trabalho e fui para meu apartamento, o qual vivo (ou vivia) sozinho. Pedi para compensar horas no escritório e o verme do meu supervisor fez um charme enorme para me liberar. Demorou remexendo em uma pilha de documentos, tipo-"como tu queres sair mais cedo se tem uma montanha de serviço para atualizar?". Antes do cu de ferro me dar uma resposta negativa, disse que havia comentado com nosso chefão que estava me sentindo exausto pois tinha ficado na noite anterior até às duas da matina e fora ele que havia sugerido pedir para ir para casa. O sacana levantou a cabeça daquela maçaroca de papéis e me deu uma olhada por sobre aqueles óculos de aro bem fino e mais para fazer charme que para corrigir alguma coisa naqueles olhos de raposa. Suspirou e a contragosto disse como que fazendo um favor- "Ok,vai lá,vou separar algumas coisas que ficaram pendentes e amanhã cedo tu revisa tudo."
Quanta generosidade daquele filho da mãe. Eu havia passado meu horário de almoço cobrindo meu colega que faltou e na minha mesa um mísero pacotinho daquelas rapaduras cortadas em cubinhos que eu havia comprado ali no real da Avenida Brasil para um caso de emergência. Meu Deus como eu ainda estava vivo? Cinco horas da tarde e eu com meu corpanzil de metro e setenta e cento e vinte quilos com apenas aquelas rapadurinhas.
Não me despedi de ninguém peguei meu casaco e me mandei dali com a cabeça dividida. Imagiva o que comer para saciar aquela fome animalesca e também projetava o encontro que havia marcado com a secretária do escritório vizinho, famosa por ter saído com toda a ala masculina do prédio. Embora eu não fosse exatamente o que se pode chamar de “Deus Grego” em uma situação normal diria que não tinha chances com ela, mas levei em conta a seqüência e notei que eu era o último com gametas masculinos naquele logradouro. Investi e em dois dias estava com o encontro marcado.
Cheguei na portaria e o porteiro me passou as correspondências,uma rápida passada de olhos e nada de anormal-cobranças, contas de luz, propagandas de lojas. Olhei para a escadaria e desisti da empreitada. O médico havia me aconselhado a subir e descer fazendo de conta que o elevador fosse um ornamento do prédio. Não. A fome era muita.
Eu chegava estar trêmulo de fome. Uma coisa assustadora realmente. Provavelmente se a encarquilhada senhora do setenta e um entrasse no elevador com a tradicional torta de nozes que seguidamente comprava na padaria ao lado do cartório correria sério risco de ser atacada ali mesmo.Quando as portas se abrissem,lá estaria a megera com o pescoço quebrado e eu afocinhado no glacê.Que horror! Corri com minhas limitações de um homem avolumado até o fim do corredor, abri rapidamente a porta e num rompante desesperado e o cérebro já não lembrando a ordem alfabética folhei a lista telefônica. Mais no instinto que na coordenação achei o telefone de uma famosa pizzaria e calzoneria santoangelense. Falei diretamente com o dono, conhecido de muito tempo e um incentivador dos meus hábitos quase ritualísticos antes de fazer desaparecer um calzone gigante de strogonoff, preferencialmente de frango,especiaria especialmente desenvolvida por ele para saciar meu apetite incontrolável em certas noites. Naquele momento a gula havia superado a luxúria. Em meia-hora já completamente esquecido do encontro romântico que aconteceria em pouco tempo. Comi aquele calzone que devia pesar algo em torno de dois quilos e meio e que havia custado a vida de umas duas bravas e penosas galinhas. Saboreei com luxúria (aquela que eu deveria empreender em breve) e metodicamente e acompanhado de um balde de suco de beterraba de minha própria autoria. Ao final, já vencido o desafio e com uma espécie de rigidez cadavérica na minha cintura de lutador de sumô, ouvi a campainha.
Cacete,como havia esquecido a secretária? Meus instintos mais básicos ali.Latentes e pujantes.Ela estava sensualíssima em um vestido curto e com um decote em V que ia até o umbigo. Entrou sem pedir licença e foi me empurrando aos cutucões em direção ao sofá. Tinha ouvido no escritório comentários sussurrantes pelos cantos acerca da fúria uterina da moça. Mas daí a ela me assaltar daquele jeito havia uma certa distância.
Fui recuando e caí de costas sobre o estofado.Acho que o vizinho de baixo deve ter sentido alguns pontos na escala Richter. Ela em um movimento rápido se despiu. Não havia roupa íntima. Nua em pêlo. Não tive muito tempo para apreciar a visão pois em um salto digno de ginasta olímpica, ela montou sobre meu vistoso e protuberante ventre acavalando-se e prendendo-me em uma chave de pernas. O súbito choque provocou uma sonora e violenta reação flatulenta em cadeia. Minhas entranhas se contorceram de tal maneira que pareciam estar em um liquidificador. Eu comecei a tontear e apaguei.
Só abri os olhos dali a um mês. Acidente vascular cerebral!
Estava em uma cadeira de rodas, meus movimentos se resumiam a piscar os olhos e me encontrava em frente a tevê, o Coyote ainda perseguia o Papa-Léguas.Minha rotina dali em diante foi brutalmente modificada. Em vez dos faraônicos banquetes, papinha ingerida de canudinho. O banho era aplicado em mim uma vez por semana, onde o mecânico da oficina em frente e também Rei Momo do carnaval de rua suava às bicas juntamente com a linda enfermeira para lavar meu suntuoso corpo. Sem falar em fraldas enormes e talquinho polvilhado nas minhas virilhas para não assar.
Bem, como vocês perceberam enfrento uma morte em vida. Não tenho nada para fazer, até por que isso é impossível para mim. A vida se passa somente através de meus olhos, de minha boca semi-aberta escorre uma insistente saliva. Meu único deleite é ironizar mentalmente minha situação. A linda e sensual enfermeira almoça ao meu lado, geralmente um hambúrguer, mas nos dias do pagamento se dá ao luxo de mandar vir o calzone de frango e come sem remorsos na minha frente.
Meus dois pecados preferidos ali diante de meus olhos,a luxúria e a gula...

domingo, 10 de janeiro de 2010

As flores do mal!



A chuva era incessante. A tela da tevê exibia em preto e branco, "Os Três Patetas no exército". Já havia assistido diversas vezes. Achava muito engraçado, mas se alguém estivesse olhando seu rosto, não diria. Ria somente com o cérebro. O cansaço era absoluto. Cada feixe de músculo parecia retesado, como em constante tensão. Isso o aprisionava na confortável poltrona. Ao lado, várias garrafas de cerveja, já vazias.
A rotina da vida que escolhera, ainda na infãncia, estava cobrando um preço altíssimo. Parecia que queria engolí-lo.
A pouco, fora até a porta do quarto, onde a mulher dormia, a sono solto. Se não fosse por ela,teria abandonado o barco. Quatro da manhã e o sono não se fez amigo.
O apocalipse, que os pais tentaram lhe passar, nos ritos de domingo, parecia finalmente se tornar concreto, sólido e cortante, como um bisturi.
O último plantão tinha apresentado um saldo devastador. Uma criança morta por maus tratos, outra em estado grave devido a queimaduras (bebê assadinho?hahahaha!) e uma jovem mãe, com traumatismo craniano, por espancamento. O mal estar subia até a garganta, em forma de fel amargo. Seu organismo pedia alguma solução.
A garota de treze anos que surgiu a frente, conduzida pelos companheiros, pareceu fechar o círculo dos horrores, que aquelas últimas doze horas haviam lhe apresentado.
O rosto bonito, extremamente anguloso, contrastava com o corpo esquelético e os cabelos volumosos que tornavam a cabeça grande, como a de uma marionete. Os movimentos sensuais, que tentava executar, se faziam necessários para completar a proposta de programa por oito reais. O desespero pela pedra era o fim de qualquer tipo de resistência. Ela faria qualquer coisa pelos oito reais. Ele teve certeza disso quando olhou nos olhos dela. O filho, que estava distante, apareceu na mente. Poderia ser ele.
O estômago se contraiu e teve que abandonar o conforto do assento em que estava instalado e correr até o vaso sanitário, onde vomitou o acre que vinha lhe fazendo muito mal. O corpo doía e uma sensação de incompleição o invadiu com força.
Abriu o armarinho do banheiro e pegou atrás dos produtos de higiene, o frasco de morfina...

domingo, 3 de janeiro de 2010

A lenda do Santo Flautista!




Estava ali, simplesmente.Como se a própria alvorada o tivesse trazido e fosse a única testemunha.
As primeiras pessoas que passaram no entorno da Catedral, olhavam curiosas. O tapete estendido no chão, com pequenas peças de madeira reproduzindo bichos silvestres, como araras e onças. Sua presença, indiferente e tímida, parecia atrair ainda mais atenção sobre si. Os longos cabelos, o rosto ovalado e os olhos puxados não deixavam dúvidas a respeito de sua origem indígena. Vestia uma camisa branca e uma folgada calça, com tons entre o cinza e o marrom. Nos pés, alpargatas de tecido, já muito gastas.
E uma flauta.
Os primeiros dias causaram estupefato geral aos incrédulos transeuntes. Intercalava a produção das pequenas peças, talhadas a canivete, com a execução de melódicas e hipnotizantes canções, que traziam aos ouvintes uma sensação de familiaridade com um tempo que não lembravam.
O passar dos dias trouxe a desconfiança das autoridades. Quem era ele? De onde vinha?
Representava perigo para a população? Resolveram abordá-lo e o conduziram para a delegacia, onde para a surpresa geral, constatou-se que além de não trazer consigo nenhuma espécie de identificação, era totalmente mudo. Ou não queria falar.
Após alguns dias, preso e sem nenhuma acusação formal, algumas pessoas influentes da sociedade, que haviam passado e presenciado com deslumbramento sua música, avalizaram sua soltura.
No dia seguinte, bem cedo, já estava novamente instalado em frente a Catedral, onde por vezes, parava de tocar ou entalhar, e ficava absorto, olhando o frontispício da Igreja.
Quando um certo Antônio da Silva, do meio da plateia anunciou que estava escutando com o ouvido esquerdo, o qual havia estourado o tímpano, a coisa começou a tomar um rumo extraordinário. A notícia correu, e várias pessoas com graus variados de enfermidades, começaram a procurar o índio e buscar sua música. Ele não decepcionava ninguém. Seu mutismo era compensado com a incrível melodicidade que parecia querer transpor as notas musicais.
Logo, o suposto sumiço de um tumor de pulmão, impulsionou a situação para a histeria coletiva. Um santo encontrava-se na praça de Santo Ângelo. Caravanas de outras cidades começaram a chegar constantemente, de vários municípios,alguns longinquos. Foi matéria de jornais locais. O índio da flauta mágica.
Certa manhã, os primeiros esperançosos que chegaram,para mais uma sessão de música milagrosa, não encontraram nem sinal do flautista. Foi montada uma mílicia para achar o santo, pois o povo não podia mais viver sem sua melodia.
Tudo em vão.
Nunca mais foi avistado. As vezes, comentários davam conta de que ele apareceu rapidamente, em alguma outra cidade das Missões.