terça-feira, 16 de novembro de 2010

Em carne viva XXIV ("Tudo se expia, tanto o bem como o mal, cedo ou tarde se pagam. O bem é mais caro, forçosamente !" Louis Céline)




A sucessão de fatos estranhos que antecederam aquele 1959 não parou por aí.

Uma peste se abateu sobre a criação. O curioso foi a indistinção de raça. Desde galinhas, porcos, até ovelhas, muitos animais morreram. Alguns agrônomos do governo chegaram a colher amostras e levaram a Porto Alegre, mas não fiquei sabendo o resultado.

Também as águas da cascata adquiriram uma coloração azulada. Era exótico e assustador embora fosse um belo espetáculo. Foi como se houvessem jogado centenas de pedras de anil na água. Passamos um bom tempo sem tomar banho lá.

Tivemos também o suicídio do Jorge Arão. A pobre da Tereza achou o corpo pendurado em um matagal nos fundos da propriedade. Dizem que ele estava com uma dívida junto ao banco.

O início do verão foi infernal. Um calor abrasador parecia fritar os miolos de quem se expusesse ao sol. Depois a estiagem de cinqüenta e sete dias fez com que os produtores buscassem ajuda da prefeitura para transportar água até a plantação.

O calor pareceu secar até as relações entre as pessoas. Muitas brigas feias ocorreram entre os moradores. Outros reagiam de maneira passiva, como bonecos articulados e muitos se cumprimentavam só por obrigação.

Foi um fenômeno interessante. Aquilo tudo parecia castigar só a nossa gente. Localidades próximas não sofreram tanto com a adversidade climática.
Nesse ínterim, um grupo de mais ou menos cinqüenta ciganos acampou na orla da cidade. Não entendemos o porquê, pois ninguém no povoado tinha dinheiro naquela época e poucas pessoas compravam as quinquilharias que eram vendidas de porta em porta.

Duas semanas após chegada dos andarilhos, o doutor Braatz foi chamado as pressas ao acampamento. Um dos homens da tribo apresentava os sinais na pele da doença que se tornou minha companhia até hoje, se não no corpo, impregnada na alma.

sábado, 13 de novembro de 2010

Em carne viva XXIII ! "A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência; a inteligência tem seus limites a estupidez não." C. Chabrol





Neco acabou voltando outra e outra e muitas vezes mais. Também era estúpido, mas pelo menos me enxergava como mulher. Minha vida continuou naquele ritmo, as cucas, a venda e minhas gurias crescendo. A Irene muito parecida com a gente do Polozzi, grandona, a pele muito branca e com o gênio forte. A Veridiana doce e inteligente.

A comunidade era muito fechada e unida, todos se ajudavam muito. Quando fiquei doente pela primeira vez, passei duas semanas no hospital em Santo Ângelo. O doutor Braatz não descobriu o que eu tinha. Era febre altíssima, dores pelo corpo e a pele em brasa, parecia que eu iria incendiar. O Antônio apareceu três vezes, tinha que cuidar do armazém. Sua irmã e algumas vizinhas que eram minhas amigas se revezavam na vigília. Pensei realmente que iria morrer. No décimo terceiro dia, assim como a doença apareceu repentinamente, ela sumiu. Amanheci me sentindo bem disposta e no dia seguinte voltei para casa. Foi o primeiro anúncio.

Retomei minha vida normal, o atendimento no bolicho, o mate cedo com a clientela. O Neco se afastou. Ele tinha se envolvido com outra mulher casada e talvez estivesse com medo que o Antônio descobrisse algo. Foi melhor para todo mundo, cheguei a essa conclusão na época. Mas o que eu não sabia é que tudo estava escorregando para um abismo sem volta.

As coisas foram acontecendo em uma rapidez surpreendente para o lugar onde morávamos.
Primeiro duas mortes pertinho do Comandaí. Pessoas conhecidas e bem relacionadas com a comunidade brigaram a faca por causa de uma divisa de cerca. O Toninho Moura e o seu Tenório. Uma facada e um tiro e os dois morreram. Uma desgraça enorme, pois suas esposas eram irmãs e tinham um punhado de filhos cada. Foi o assunto para muito tempo.

Depois uma tormenta que até hoje não vi igual. A tarde iniciou com muito calor, o ar parecia sólido de tão pesado. Ali pelas quatro da tarde o céu começou a ficar cor de chumbo. Na linha do horizonte, onde apareciam duas coxilhas que ficavam dois quilômetros distantes, logo foram engolidas por uma chuva e ventos que parecia ser algo da providência divina para punir todos os pecados que estavam ali, no nosso povoado, alguns de conhecimento geral, outros, inconfessáveis.

Noventa por cento das casas foram destruídas. Duas pessoas que pescavam foram surpreendidas pela enxurrada que se misturou à correnteza do rio. O telhado da nossa casa levantou vôo e sumiu girando em uma dança tenebrosa junto a pedaços do caibro. A fúria do tempo que se abateu sobre nós foi tanta, que árvores seculares foram arrancadas e jogadas a vários metros de distância.

O que foi uma tragédia natural para a maioria dos moradores, para mim era um pequeno alerta do que ainda viria.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Em carne viva XXII ! ("O futuro sempre está começando agora." Mark Strand)




Santo Ângelo, 03 de dezembro de 1980.

Deixo esse relato em forma de carta, para quem algum dia, possa se interessar.

Estou com 68 anos e sempre fui uma mulher forte. Minha ascendência italiana e o trabalho duro, desde a infância, ajudando meus pais nas tarefas comuns do campo, me fizeram resistente às intempéries do tempo e da vida. Até gripe, era raro eu pegar.

Tenho dificuldade de me concentrar. Talvez esteja ficando caduca. Algumas crianças da vizinhança brincam e gritam junto à minha janela. Elas, ao menos, não têm medo de mim. Logo, suas mães, histéricas, se darão conta e começarão a berrar para que se afastem da minha casa.

Já estou acostumada com isso. Essa maldição me acompanha desde 1959.

Eu casei aos vinte anos, com Antônio Polozzi , que tinha um bolicho na entrada do distrito Comandaí. Ele era bem mais velho e foi seu segundo casamento. A primeira esposa, de apelido Dita, conheci. Eu era criança e ela foi amiga da minha mãe. Coitada, morreu de congestão. Eu lembro que tinha medo de chegar perto do caixão, no velório e o pai me obrigou a olhar para a morta. Não tiveram filhos.

Polozzi, em pouco tempo, começou a arrumar algumas mulheres e as levava para morar junto. Ele buscava aqui ou de alguma cidade vizinha. Aquele tipo de mulher as quais tinha predileção, chinas. Elas não ficavam mais que dois ou três meses e após algumas surras, o abandonavam.

Após algumas tentativas frustradas de arrumar uma nova companheira que consentisse com seu jeito brutal, aconselhado por gente da vila, resolveu que teria de ser uma mulher de lá. O pai e a mãe viram nele um bom partido, afinal seu negócio era forte, e nem todos os moradores tinham como ir até a cidade para comprar mantimentos. Eu já os odiei por isso, afinal eu tinha catorze anos, mas depois de algum tempo, vi que não havia como condená-los por isso. Eles atinavam que eu estaria com uma vida garantida, seria dona também do único armazém das redondezas. Minhas duas irmãs mais velhas já tinham se casado, porém, nenhuma com um marido com as condições financeiras de Antônio Polozzi. O casamento com pouca idade era muito comum naquela época. As famílias tinham muito medo que suas moças não arrumassem casamento e ficassem solteironas.

Meu casamento foi um evento que trouxe gente de longe. Polozzi não poupou dinheiro na festa, para me impressionar. Ele sabia que não exercia nenhuma atração física sobre mim. Na verdade, eu tinha sentido algo somente pelo filho do seu Bastião, o Eduardo. Tinha um ou dois anos a mais e sempre me cortejava na escola. Eu ficava sem jeito e não tinha coragem de fitá-lo nos olhos. Provavelmente, se Polozzi não tivesse cismado comigo, eu poderia ter vindo a namorar com Eduardo, que acabou casando com minha prima Neiva.

Foi muito pouco gentil comigo na primeira noite, mas eu já esperava isso. Nos primeiros anos, não deixava que eu atendesse no balcão “esses vadios ficam te cobiçando”, nem aparecer para falar alguma coisa, eu podia.

Em pouco tempo, engravidei da minha primeira filha.

Meus pais morreram em um intervalo de tempo curto. Seis meses. Ele, de infarto e ela de um câncer no estômago. Embora já casada, um sentimento de solidão se abateu sobre mim. Meu marido não era o tipo de homem que escuta o que a gente diz. Nossa relação era um jogo, ele perguntava algo e eu respondia, eu perguntava algo, às vezes, ele respondia, se estivesse disposto.

Era uma vida solitária, embora eu fosse bem relacionada na comunidade. Com o passar do tempo, Antônio não fez mais conta e passei a ajudá-lo no balcão. Até certo ponto, foi bom, pois comecei a ter com quem falar, comentar os fatos ocorridos e o dia a dia da vila. Como meu marido previra, eu notava os olhares de cobiça dos homens que vinham beber e ficavam pelos cantos acompanhando meus movimentos. No começo tive um sentimento de repulsa, afinal não era uma falta de respeito ficar de olho em mulher casada?

Depois que minha segunda filha nasceu Polozzi se tornou ainda mais distante e agressivo. Começou a beber muito, ausentar-se com frequencia,indo para a cidade, de onde só voltava tarde da noite. Geralmente eu estava dormindo e ouvia os barulhos das coisas que ele derrubava pelo caminho. Não tinha com as filhas nenhum gesto de carinho. Comigo, eu já nem sentia falta, ou se sentia, procurava colocar minhas energias em coisas produtivas. Resolvi fazer cucas e pães, que logo caíram no gosto dos moradores que se tornaram meus fregueses assíduos. Eu procurava guardar o que ganhava, pois Polozzi nada comprava de vestimentas para nós. As meninas andariam maltrapilhas se uma tia não trouxesse roupas usadas de uma priminha mais velha para elas. Ele sempre achava e sumia com o dinheiro “usei para comprar produtos na cidade”, dizia.

Alguns homens se insinuavam constantemente, claro, sabendo das ausências do meu marido e um dia, após Polozzi sair para a cidade, o Neco, filho da um sujeito ordinário, me pediu fumo em corda, como não havia mais na prateleira, disse para ele esperar, pois eu iria lá dentro buscar. As meninas ainda dormiam. Quando puxava a mercadoria de cima de um armário na cozinha, senti o hálito morno do homem no meu pescoço. O Neco me agarrou por trás e me levou até o quarto, onde não ofereci resistência, Deus que me perdoe.

CONTINUA