domingo, 20 de junho de 2010

Em carne viva XIII !




O homenzarrão andava impaciente, de um lado a outro da sala, com as mãos para trás, em postura marcial.

-Impossível que não tenha reconhecido nenhum deles... – indagou.

-Já disse que estavam com lenços na cara. – respondi.

O lábio superior doía muito e parecia um balão, de tão inchado. Eu havia decidido que não contaria nada ao homem parado na minha frente. Fiz o Júlio jurar que não abriria o bico. Não havia por que eu conturbar ainda mais toda aquela situação. Deixaria o Neco e seu mandante acreditando que estava com medo, o que não era de todo mentira.

-Acho que pode ter sido o Chico Laçador... – jogou verde.

-Não era. Eu o reconheceria.

Não podia deixar o Laçador em apuros, mesmo ele sendo estúpido daquele jeito.

-Ele poderia querer se vingar da tua agressão na igreja. – ele era insistente, disso não havia dúvida. Seu nome era Vitão Lazzari, era da Brigada, e estava ali, na sala da nossa casa, a pedido de meu pai, que aproveitou a visita do gringo ao seu irmão, que estava de aniversário.

-Mas com que intuito iriam te atacar?

-Acho que para roubar. –falei.

Ele olhou para papai, que fumava seu palheiro junto à janela, para a fumaça esvanecer. Fez um sinal negativo com a cabeça e chamou o velho para conversar na cozinha, não se preocupando se eu ouviria ou não.

-Teu piá está mentindo. Ele sabe exatamente por que apanhou, só não quer falar. Como estou licenciado, não tenho como ir muito a fundo nessa história. Se quiser posso falar com o sargento Elpídio. Tenho certeza que ele resolveria rapidamente a questão.

Papai recusou e agradeceu ao soldado, para minha sorte. Esquecido o episódio eu teria como planejar alguma contra-ofensiva.

Aquele misto de medo e ansiedade era muito bom, por incrível que pareça. Eu nunca havia sentido algo assim, uma espécie de turbilhão de sentimentos. Eu teria que superar toda os dificuldades que minha pouca idade impunham se quisesse ajudar Cecília e a mim mesmo.

Eu passara as últimas duas noites imaginando alguma coisa que resolvesse, ou ao menos diminuisse o sofrimento dela. Embora me sentisse emocionalmente envolvido, já tinha decidido que após solucionar o problema, me mudaria para Santo Ângelo. Não havia como nosso amor se concretizar. Aliás, talvez esse amor seja só meu, pois ela em nenhum momento externou o que sente por mim

Amanhã irei verificar qual sua real situação, ver se está em condições dignas para uma pessoa acometida por uma enfermidade tão grave. Pensei em falar com o doutor Braatz, talvez o velho alemão possa cooperar em alguma coisa, além dos seus emplastos.

Papai veio até a sala para me proibir de sair pelos próximos dias, que eu era um encrenqueiro e "sossegasse o facho”. Ele era ruim em juntar fatos, mamãe também. Era tão fácil decifrar aquilo tudo. Eram elementos explosivos envolvidos:
doença, amor, ciúme e honra. Acho que esses livros que o professor João me empresta aguçam o pensamento.

Até demais.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Em carne viva XII !




O Júlio arregalou os olhos, incrédulo. O próximo deve ter imaginado que se tratava de um assalto, embora pouco se ouvisse falar por estas bandas, ainda mais o que tinha para roubar na carroça eram sacos de açúcar, banha, algumas rapaduras e uma pá, que papai havia me encomendado, além, claro, do presente de Cecília, um bonito vestido cor de vinho com alguns adornos nas mangas.Ainda fiquei devendo alguns réis que embuti na conta.

Meu amigo não prima pelo raciocínio rápido, e provavelmente não deve ter lembrado que comentei com ele, um dia antes, das prováveis intenções do Neco.

Na quebrada da curva, umas duas léguas do Comandai, no capão que a gente chama de floresta negra, dois sujeitos, com aquelas boinas de inverno, que são abotoadas abaixo do queixo, e um lenço a lhes tapar a boca e o nariz, empurraram um enorme tronco de ipê para o meio da estrada, bloqueando totalmente nossa passagem.

O Neco é tão relaxado, que estava usando a mesma camisa listrada de todo dia. Mandaram parar a carroça e o outro parceiro dele tinha um chimitão na cintura. Não consegui identificar quem era. Esse provavelmente era da cidade, algum alcaide da laia do Neco.

Não falamos nada e paramos.

- Tu... desce e vem aqui. – apontou para mim o Neco.

Desci e me aproximei com cautela.

- O que vocês querem? A carga? – perguntei.

- Cala essa boca, piá de merda, e não me interrompa enquanto eu estiver falando.

Tive impressão que o Júlio chorava baixinho, atrás de mim. Tive vontade de bater nele. Era sempre assim, na escola era eu quem sempre o defendia dos valentões. Era meu amigo, mas não passava de um medroso chorão.

- Hoje tu vais aprender a não mexer com a mulher dos outros, guri.

- Do que tu está falando? – me parei de bobo.

- Não te faz de louco que não és.

Apesar do lenço nas fuças, dava para sentir o bafo de canha do Neco. Ele estava uma das mãos para trás, e achei que também tinha uma pistola. Eu estava com medo de morrer, mas não ia dar o prazer ao cachorro de pedir piedade.

- Tu estás enganado. Não estou mexendo com mulher nenhuma. –tentei ser firme.

- Ah é? Continua te parando?

Ele levantou a mão que tinha escondida atrás das costas, com um trançado de oito, e baixou sem dó. O primeiro estouro me pegou no ombro. Coisa pavorosa a dor. Ajoelhei na hora. Ele continuou falando alguma coisa que não entendi. A sensação do estouro deve ser como uma facada. Até a respiração é cortada por algum tempo. Olhei e vi que ele baixava novamente a mão, e tentei me defender levando o braço. Foi pior, pois desviou a trajetória e pegou transversalmente no rosto. Parecia que eu queimava, que minha cabeça estava em chamas. Não sei como, se de pé, ou engatinhando, procurei me proteger debaixo da carroça, mas não evitei o ultimo laçasso, que me acertou a paleta. Aí não enxerguei mais nada, nem dor senti mais.

As lágrimas que escorriam pelo meu rosto marcado não eram de medo, mas uma reação fisiológica a dor. Tudo já não importava mais, e se eu levasse um tiro, a coisa não seria tão terrível assim, naquele momento. É curioso. É um momento tão extremo, que a morte se torna secundária. Eu já tinha lido algo a respeito.

Quando meu cérebro começou a se reorganizar novamente já estávamos entrando na vila, eu havia vomitado nas minhas pernas e as pessoas paravam para olhar nossa chegada, como a pressentir que algo estava errado.