segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

3 minutos!




- Joe, o que tu faz aqui, amigão?
Não era possível, vinte e tantos anos e lá estava, na janela do Corolla preto que eu havia roubado em Cachoeirinha, o Acácio, sim, o Acácio, o CDF da minha turma do ensino médio.O fracassado do Acácio. Chutado diariamente por toda a ala masculina, e ridicularizado pelas meninas e professores. Talvez a chance desse encontro ocorrer fosse de uma em milhão. Digo isso por que já não era para mim estar vivo e o Nestor estar trabalhando de diretor da NASA. Como ele me reconheceu, é um caso de estudo, já que estamos falando de escola. Eu estava usava barba, tinha um boné de beisebol enterrado na cabeça, e um enorme rayban, além de estar uns vinte quilos mais gordo. Vai ver que é o olho clínico do filho da mãe, que fazia professores de física, biologia e matemática suportarem sua presença grudenta, com notas máximas em todos os quesitos possíveis. Ele era o Babalu, por que grudava na sola do tênis de qualquer um. Os óculos só mudaram os aros, agora infinitamente mais finos que aquela época. No mais, a roupa, um terno provavelmente sob medida, ainda parecia não se assentar em seu corpo desengonçado.
Bem, fosse outra ocasião eu poderia perfeitamente zoar com ele, afinal, era muito prazeiroso humilhá-lo e mostrar que sua superioridade intelectual era absolutamente ineficaz, aqui,nesse mundo cão, onde eu era perito em guerrilhas de sobrevivência. O problema é que eu estava ali, parado naquela esquina, esperando o Tide e o Nestor, que estavam empenhados em roubar tudo que encontrassem no posto avançado do Banco do Estado, que ficava na metade da quadra. Era daqueles onde se paga quase tudo, luz, água, faturas em geral, além de oferecerem até jogo do bicho. Estudávamos o local há um mês. Era perfeito. A câmera estava com defeito, o Tide descobriu, ouviu uma atendente comentando com a gerente, o alarme ficava embaixo da gaveta do último caixa, à direita. O da moça de óculos, que estava sempre com um pacote de Rufless ao lado da tela do PC. A guarda da policia militar fazia rondas ao redor da quadra, de meia em meia hora, às vezes paravam no canteiro central e ficavam mais tempo. Era esse tempo, quando estivessem exatamente no lado oposto da quadra, paralelo ao banco, que agiríamos. Tudo em três minutos, nada mais que isso. O dinheiro do caixa e um arrastão em celulares e carteiras dos clientes. Havia novas roupas para eles no banco de trás. Eu arrancaria com o Corolla, e seguiriamos até as margens da BR,onde um discreto carro popular 1.0 , com um senhor grisalho ao volante, nos aguardava. Perfeito, não havia como dar errado. Até surgir o fator Acácio.
- Acho que está me confundindo...
-Ah, o velho Joe, sempre querendo pregar uma peça...
E se desmanchou todo em um gargalhada que parecia a tosse da hiena. Ele era todo errado. Era uma presença que poluía todo o cenário, inconveniente e masoquista. Eu sempre fui quem mais o sacaneou, na escola. Roubava seu material, enfiava sua cabeça dentro do vaso e o massacrava, sempre que podia, e ele sempre atrás de mim, me idolatrando.
- Desculpe, mas não sei quem é você.
- Joe, a gente foi colega na escola. Não lembra? Sou o Acácio...
Uma das poucas coisas que aprendi, no segundo grau, foi que o Acácio era insistente.
O Tide e o Nestor entraram no postinho. Eu tinha três minutos para me livrar do meu ex-colega.
- Cara, meu nome não é Joe e não te conheço.
- Entendo que você tenha se magoado com alguma coisa, naquela época, Joe. Mas o tempo passa, inclusive dia desses encontrei o Antero...
Ah, não! O Antero era demais para mim. O melhor amigo do Acácio, e um pé no saco pior que o sujeito na janela do carro.
- O Antero sugeriu que fizéssemos uma reuniãozinha para comemorar os quinze anos de formatura do colegial. - anunciou o Acácio.
Cheguei à conclusão que o desgraçado estava me tirando. Que formatura se fui para a FEBEM quando estava ainda no primeiro ano? Filho da puta.
- Olha, Acácio. Gostaria de ser esse seu amigo, o Joe. Você deve gostar muito dele. Mas infelizmente não sou.
Cinquenta e sete segundos. No meu relógio.
Algumas pessoas que passavam em frente ao posto, pararam e olhavam para dentro da porta.
- Tá bom, tá bom. -ele ajeitava a borboletinha dos óculos, em uma posição mais confortável, no narigão.
Uma mulher de idade e mais um guri de boné do Lakers, que olhavam para dentro do posto, começaram a correr. Putz! Agora a coisa teria que se resolver em pouquíssimo tempo.
- Vamos fazer assim, Joe. Estaciona direito teu carro, eu vou ligar para minha mulher e dizer que me atrasarei um pouco. Aí vamos tomar uma cerveja bem gelada e relembrar os velhos tempos.
O cara era masoquista mesmo. Eram coisas que a brutalidade das ruas não me permitiu compreender. A cabeça das pessoas. Eu fui um pesadelo na vida do Acácio, e agora ele ali, com sua digníssima cara de paspalho, me convidando para tomar uma cerveja.
Quando olhei para o cronômetro do relógio, vi que haviam se passado dois minutos e dois. Ouvi três estampidos da automática do Nestor. Que merda. Melou. Algo errado aconteceu. O Acácio falou alguma coisa, mas não entendi.
Vi o Tide e o Nestor, com as toucas ninjas e uma sacola sairem correndo porta afora e vindo na direção do carro. Arranquei e fui ao encontro deles.
Entraram gritando.
- Joe, o Nestor teve que atirar em um policial à paisana. O cara reagiu...
- Merda! merda! A coisa vai feder. Vai virar uma caçada. Logo um policial, Nestor?
-Vamos, vamos, toca essa porra aí...
Agora precisávamos de uma carta na manga. Um refém. Engatei a ré e raspei a lataria de dois carros, até chegar onde o Ácacio observava tudo, embasbacado.
- Acácio, amigão. Entra aí, que hoje vamos relembrar os velhos tempos... - e o puxei pelo colarinho, janela adentro.
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**Conto originalmente postado no site Esquina do Escritor/Beco do Crime, em 04/04/2010.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Romeu e os pombos!





- Como é sua vida? – ela perguntou e colocou a cabeça em seu peito.

Era uma pergunta que inevitavelmente iria surgir, mais dia menos dia.

- Isso é importante?

- Sei lá, é apenas mais uma entre tantas que gostaria de fazer para você.

Aquele trajeto era perigoso. Ficou quieto. Ela continuou:

- Sabe, eu nunca fui uma xereta, não quero que pense isso. Só que estou me sentindo presa a certos princípios.

Agora ele não tinha como sair pela tangente.

- Não estou entendendo...

- Isso soa meio antiquado, né? Essa conversa de princípios...

Ele resolveu arriscar e ver onde ia dar.

- Acho que não. Se todas as pessoas se preocupassem com os princípios o mundo não seria tão complicado.

Ela levantou a cabeça, olhando em seus olhos.

- Você acha mesmo?

- Claro, eu não mentiria para ti.

- Mas omitiria algo importante?

Ele se ajeitou, o banco da praça estava se tornado mais desconfortável que de costume.

- Não.

Ela não se deu por vencida.

- É que existe aquela coisa da balança. O que pode ser importante para mim e não ser para você.

Ele sorriu com o canto da boca.

- É, mas sinceramente não sei onde tu quer chegar...

Ela deu um suspiro e virou o corpo para o lado do chafariz.

- Eu não queria isso, sinceramente. Já saí com muitos homens casados, estou escolada em desculpas, mentiras infantis e até medo por parte de alguns. Medo que eu seja uma psicótica, sei lá. Que os encontre na rua com as esposas e faça um escândalo ou coisa assim. Agora você não se abre comigo. Não fala nada das dificuldades que vem atravessando no casamento, dos filhos, do serviço, as coisas de praxe, que todo homem comprometido diz. Você é uma total incógnita para mim.

Ele ainda tinha o controle.

- Guria, lembra quando eu cheguei para conversar contigo na locadora? Pois bem, eu já te conhecia, como se fosse da minha vida toda. Tu é exatamente o que preciso agora.

Ela sentiu-se confusa.

- Eu poderia ficar lisonjeada e entender que te completo, mas esse “agora” que você falou é muito restrito.

As mulheres gostam muito do “para sempre” ele sabia. Não devia ter usado aquele “agora”.

- Tu entendeu errado. Esse “agora” que falei significa a urgência que eu tenho de ti, que só penso dia e noite em nós dois e acho que isso não vai acabar nunca.

Ela estava satisfeita até lembrar do teor inicial da conversa.

- Pois é, senhor mistério. Você sabe um bocado de mim. Isso me coloca em desvantagem.

Ela estava fechando o cerco.

- Fala como se estivéssemos em uma disputa...

Ela não recuou.

- De certa forma sim. Nos primeiros encontros eu tentei passar o melhor de mim. Agora conhece o lado obscuro, só que eu não tenho nada de você. Apenas o homem que veio até mim na locadora e desde então me proporciona os melhores dias da minha vida. Mas isso é pouco, eu acho. Eu queria dividir contigo. Sejam alegrias, tristezas, você está entendendo?

Ele teve um breve sentimento de culpa, que foi embora e logo voltou.

Silêncio.

- Tudo bem, acho que você não merece que eu esconda algo, afinal já estamos juntos há um mês.

Ela segurou o sorriso de triunfo.

- Claro que não. Tudo que eu quero é apenas formar uma imagem mais completa de você. Isso pode não parecer, mas é muito importante para mim.

Ele agora estava nervoso e recomeçou a jogar pipoca aos pombos, que agora eram muitos.

Ela se ajeitou no banco não mais tão desconfortável.

- O fato é que não sou e nunca fui casado e até te encontrar nunca havia nem cogitado essa hipótese. Não tenho filhos e nem sou complicado...

Ela franziu a testa e pelo seu olhar estava incrédula.

- Não acredito...

- Pois pode acreditar. Nenhum probleminha, neurose, vício bem pequenininho e situação financeira estável.

Longos minutos de silêncio. O que estaria acontecendo? Por que ela parecia tão triste?

Finalmente ela se virou e colocou a cabeça dele entre suas mãos.

- Meu bem, acho que ficamos por aqui. Eu adoro você, mas essa situação me pegou totalmente desprevenida. Vou procurar esquecê-lo e sugiro que faça o mesmo.

- ???

Ela levantou-se, colocou os óculos escuros, as lágrimas escorrendo pelo rosto e resistiu à tentação de ficar caminhando em direção à Marquês.

Ele ficou um tempo que depois não saberia precisar, ali, sem saber se ria ou chorava. Um pombo mais ousado pousou no lugar onde ela estava sentada e abocanhou ávido uma pipoca.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Vinte e um!




O japinha da floricultura tinha ido com a minha cara. Havia doze candidatos, a maioria mais apta que eu à função. Pelo menos eu achava. Ele veio cego em mim.

- É você que eu quero. Li seu currículo e gostei muito.

O coitado não sabia que era tudo mentira. Tudo forjado, referências, tudo.
Contei a meu tio que iria sair da sua casa, finalmente.

- Rapaz, acho que você não tem jeito. – decretou o velho.

Talvez ele tivesse razão, mas o fato é que eu não queria apodrecer atrás de um balcão de açougue, mais ensanguentado que a Carrie, a estranha. Ele sim, já fazia parte daquele ambiente. Era como uma peça de carne. A diferença é que não estava pendurado por um gancho.

Há meses eu procurava emprego em lojas do centro. Boutiques, escritórios, farmácias. Alguns lugares cheguei ao contrato experimental, mas não esquentava banco e implacavelmente voltava aos bicos do fim de semana atendendo no açougue de meu velho tio, que no rastro me cedia um quarto provisoriamente até eu me alinhar. O problema é o que o provisoriamente vinha se transformando em definitivamente. Era essa a sensação.

- Já vou indo. Sábado venho buscar a cama e a tevê. Dê um abraço na tia. – ele resmungou um adeus e imediatamente foi abduzido pela notícia de capa do jornal à sua frente.

Avancei pela rua deixando o subúrbio para trás. Iria ao sebo, comprar dois ou três livros para a semana. O ar quente de dezembro pedia urgência. Eu estava mais aceso que um foguete. As vitrines estavam bonitas, as ruas do centro com todos aqueles balagandãs eram atração. Acendi um charuto. As pessoas me olhavam curiosas e eu parecia uma locomotiva soltando as baforadas.

Eu não precisava muito para ser feliz. Algumas peças de roupa legais, um tênis, podia ser surrado, um quarto de pensão e livros. Ah, um pouco de dinheiro, não muito senão eu me estrago. Mas não esquento muito com isso.

Meu tio havia perguntado, referindo-se ao quarto emprego em seis meses:
- Não acha um pouco sintomático?

-Não posso trabalhar em um ambiente que não me seja favorável...

- Se fosse eu o dono da tal floricultura, tu nem começarias. Conheço o malandro pelo andar...

Eu tinha vinte e um anos, nenhum compromisso, a não ser com tentar me sentir bem o tempo todo. É fácil sentir-se bem com vinte e um anos, isso eu garanto.

A esquina se aproximava. Desisti de comprar os livros. Até chegar ao cruzamento eu decidiria para que lado dobraria. Comecei a assobiar um velho folk-rock...

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*Este conto originalmente se chamava "Pequena ode ao inverno que chegou" e escrevi lá por junho, despretensiosamente como exercício de escrita.Enviei ao meu velho amigo Roberto Kusiak para ver se encaixava algo no http://totolunatico.blogspot.com/, blog experimental que participo esporadicamente e gerenciado por ele. Aí ontem achei perdido o rascunho na gaveta e gostei do que li.Fiz algumas adaptações à estação do ano e mandei bala.Taí.