domingo, 30 de maio de 2010

Em carne viva XI!





Quando se ama, confia-se na pessoa. Tem de ser assim. Confiamo-lhes o que é nosso. Senão, para que amar?

Eu tinha decidido que amava dona Cecília, aliás, Cecília (ainda é difícil chamá-la só de Cecília). Farei algo... alguma coisa para ajudá-la. Ela está cada vez mais isolada de todos.

O patife do Polozzi aplicou uma surra na coitada pelo episódio da igreja. Prevalecido. Parece que machucou-a bastante, segundo o doutor Braatz contou por aí. Senti ganas de matá-lo, quando soube, mas desta vez, por mais que o sangue fervesse nas veias, consegui me controlar. Eu confiava na Cecília, na sua postura de enfrentar todas as desfeitas que o povo daqui vinha lhe inflingindo. Ela não havia pedido ajuda a ninguém, buscando resistir sozinha a uma situação onde poucos não sucumbiriam. Eu confiava nela. Em sua casa, ela olhou nos meus olhos e disse: você é um homem de valor. Eu me sentia menino, mas passei dias pensando nessas palavras. Será que somente uma mulher que enxerga o mundo de longe, hostil a si, poderia ter uma visão mais privilegiada das coisas que a rodeiam?

Resolvi amá-la por isso. O Júlio diz que é fácil comprar meu amor, só que o sentimento já estava em mim há muito tempo, talvez desde quando era criança.

Meu amigo diz que sou louco, mas quem não enlouquece com as incoerências diárias do nosso distrito? Aqui, a maioria das pessoas pensam somente em seu bem-estar, o que não está de todo errado, acho eu. Só que não há resquícios de generosidade nelas. Vou ser injusto dizendo que é só aqui. Sei que o egoísmo é um sentimento universal, embora eu pouco conheça, além das fronteiras do município.

O Polozzi bebe muito, aliás, a maioria dos homens daqui tem esse problema. Geralmente, uma garrafa de canha os acompanha durante o dia. Alguns escondem, mas o bafo, ao falar, os denuncia. O vinho é muito consumido também pela gringaiada. Eu gosto do vinho, bebo de pouco, quando íamos à cascata. Os guris até exageram e começam a fazer estripulias na água. Mamãe briga com meu pai quando ele compra caninha, mas dias desses encontrei uma garrafa escondida no galpão.

O Neco da Merência anda rondando a ferraria, passa como quem não quer nada. Ele me olha de canto de olho, empurrando um carrinho de mão, vazio. Acho que pode estar a mando do Polozzi, para me assustar, na melhor das hipóteses. Já circulam boatos que freqüento a casa, quando aquele traste sai. Aqui, as notícias correm rapidamente, algumas verdadeiras, outras aumentadas no boca a boca. Bom, de qualquer forma, acho que o Neco quer me pegar de jeito, em alguma situação, para me bater. Se for isso, provavelmente em minha próxima viagem à cidade, amanhã, ele vai agir. O Júlio diz que estou paranóico, mas o coitado não enxerga maldade nas pessoas.

Vou comprar um presente para Cecília, raspei minhas economias, as quais junto a algum tempo, e vou em uma casa de comércio forte.

Ela ainda desconhece, mas não está sozinha.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Última parada!





- Mãe, o moço da imobiliária está aqui.
O velho era tão míope que não notou que aquele enorme homem, com um improvável casaco de nylon azul em uma tarde de calor como aquela, um imundo pano de prato enrolado na mão, parado à sua porta, não era exatamente o estereótipo do corretor de imóveis.
Vaso ruim não quebra. A máxima de papai havia se concretizado. O velho depravado tinha razão. Quando Cale caiu como um saco de batatas a seu lado, apostou todas as fichas que também partiria para uma nada agradável viagem ao inferno, afinal tinha um buraco na lateral da barriga e só dois dedos inteiros na mão esquerda.
Após atirar em Cale, sabia que precisava sair dali. Procurar ajuda. Mas precisava estancar a hemorragia. Virou-se com dificuldade e com todas as limitações que a obesidade lhe impunha, notou que havia levado um tiro na transversal. A bala entrou, atravessou a espessa camada de gordura e saído na parte posterior, não atingindo nenhum órgão vital. Engatinhou até a gaveta do balcão da cozinha, arrancou-a espalhando inúmeras coisas pelo chão. Achou o que queria. Uma caixa de lenços umedecidos, álcool e cola Super Bond. Fez duas buchas e trincando os dentes, jogou o álcool, obstruiu os orificios causados pela bala. Em seguida, gastou toda a bisnaga da cola. Pronto. Lacrado. Ia ver no que daria. Oito comprimidos de analgésico e já estava em pé. Amarrou o pano de prato como um torniquete na mão ferida, pegou a arma de Cale e abriu uma fresta na porta para vislumbrar o corredor. Nada.
Estava tonto, a pressão havia baixado devido aos comprimidos. Cambaleando, saiu com a pistola em punho dentro do bolso do velho casaco.
A sorte parecia ajudar. Em frente, caminhões de bebida abasteciam o Gaúcho. Oktober. Bueno, dessa estava fora.
Desceu pela Bento Gonçalves e apertou a campainha da terceira casa.
- Vamos entrar, rapaz. O sol não está sendo amigo.
Caramba, tudo estava conspirando a favor. Imobiliária. Pois sim, seria o moço da imobiliária.
- Liguei para lá e me disseram que mandariam alguém mais a tardinha.
-Estava aqui perto e aproveitei.
-Ah! Sente-se ali. Mãe, traz um cafezinho.
A estreita poltrona praticamente o entalou e os pés de madeira rangiram ameaçadoramente.
-Bom, quero vender esta casa e comprar um apartamento, o pátio é muito grande e somos só eu,a patroa e uma neta..
- O senhor poderia me mostrar a escritura?-precisava ganhar tempo.
-Claro. Só um momento, vou buscar.
Putz. A cabeça estava confusa e não sabia o que fazer. Poderia fazer os velhos de reféns em caso de cerco. Mas a princípio, parecia que ninguém notou sua incursão ali. Então poderia pensar com mais calma.
Vovó trouxe o café e logo foi ajudar a achar a escritura. Menos mal. Visualizou uma chave de carro em cima de uma mesa. Amaldiçoou sua incompetência Nunca fora capaz de aprender a dirigir.
-Aqui está. Note que área construida é enorme, e bláblábláblá.
Era enervante. O casal de velhos começou uma explanação acerca da história, das dificuldades para construírem a casa. Olhou para o chão e notou um filete de sangue correndo no vinco entre as lajotas marrons. Droga, o ferimento estava vazando. Era questão de tempo para notarem. A campainha tocou. Era a polícia, subjetivou. A mão sobre o cabo da pistola, dentro do bolso suava muito. Olhou para o chão e viu um enorme gato persa cinza e com uma gravata borboleta de bolinhas amarelas a lamber com gosto o líquido escarlate. A sorte estava do seu lado, por mais incrível que parecesse. A conversa amigável do velho na sala era com alguém conhecido. Um vizinho talvez. Estavam a se dirigir até ali.
Levantou-se e buscou o banheiro. Era uma casa antiga, mas bem conservada. Ficava no fundo do corredor. As vozes foram ficando mais distantes. Se fosse a polícia, estava fodido. Nem reféns tinha mais. Olhou para a janela do banheiro. Nem pensar, era muito estreita. Porra, e agora? As tripas se retorciam dentro do enorme ventre. Precisava defecar. Sentou-se no vaso e começou a repensar toda a situação. Tinha realmente como escapar? Podia tirotear com a polícia, mas tinha pouca munição, além de ser burrrice. Não!De burro já havia a piranha da Leila. Estava cansado e a possibilidade de se entregar começava a ser simpática. Alguém bateu à porta. O velho perguntando se estava tudo bem. Claro, não podia estar melhor. Havia participado do assalto mais fracassado da história, foi baleado, se viu obrigado a matar o melhor amigo. Bom, era bom o velho a matraquear ali, sinal que não era a polícia. Ou seria blefe para desentocá-lo. Notou que o papel higiênico havia acabado. Apenas mais um detalhe. Teve vontade de rir. Lembrou da chave sobre a mesa. Iria viajar. Isso. Argentina. Como um tango dramático.
Ao abrir a porta já enfiou a pistola na cara do idoso, o cano da arma lançou o óculos fundo de garrafa ao chão, despedaçando-o.
- Quietinho, vovô. Quem estava aí?
O velho, muito pálido gaguejou:
- A vi-vizinha, disse que houve um assa-sinato no sobrado da esquina...
- Ela já foi?
- Si-sim...
-Olha só. Estou armado,sou perigoso e se andar na linha, o senhor,sua velha e o gato canibal não se machucam
- O que você quer?
- Vamos viajar.
-O quê?
- O senhor vai me levar até a Argentina, para qualquer efeito sou seu sobrinho.
-Meu De-us!
Levou o velho até a sala e anunciou a situação à velha, que parecia mais controlada.
-Peguem material de primeiros socorros. A senhora vai junto para refazer um curativo. E analgésicos também.
A operação durou dez minutos.
O velho falou.
-Sinto muito, não posso dirigir...
-Que porra está dizendo?
-Você quebrou meu óculos.
-Merda, merda! Que porra. Bem azar de vocês, já viveram muito mesmo...
A velha intercedeu radiante.
-Nada disso,filho. Eu dirijo.
Após, carregaram todo o material e quando chegou na garagem teve uma surpresa. Um flamejante Maverick V8, laranja e com o capô e o teto pretos. Inacreditável. Será que a velha seria capaz de conduzí-los até a Argentina. Teria que assaltar uns três postos de gasolina até chegar na fronteira, para saciar a sede do velho Ford.
Sentiu um forte cheiro de merda. Era dele mesmo. Entraram no veículo. A velha no volante, o míope no carona, o gato vampiro a se lamber olhando para o pano sujo atado na sua mão, ele no banco de trás, com a pistola em punho.
- Vamos vovó. Pé na tábua.
A primeira puxada do carro devia ter bebido uns três litros de combustível
Saíram da garagem. A velha manobrou a esquerda e roncando grosso o Mavericão entrou na Marquês, atraindo os olhares dos passantes.
Errou duas vezes as marchas e quando acertou, chapou o pé no acelerador fazendo a dianteira se erguer um pouco. O gato cravou as unhas no banco. A velocidade aumentava gradativamente.Olhou para trás.O velho sobrado e o Gaúcho ficavam rapidamente distantes. A velha manobrou novamente e entrou na Sete de Setembro, sem reduzir. Perdeu o controle, subiu a calçada em direção à porta envidraçada da Igreja que ocupava grande espaço na grade televisiva. Uma faixa pendurada acima da porta dizia "Entre e encontre a libertação!"

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** Trecho de conto originalmente postado no blog http://totolunatico.blogspot.com/ em parceria com os escritores Roberto Kusiak e Zé Sérgio Bechler e que faz parte da trama "Machado,lona e alvejante...".

**Agradeço ao meu vizinho por ceder a foto do Felpudo,para ilustrar o conto.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Em carne viva X !





- Cuidado, rapaz. Tem muita gente te notando. Isso é ruim.

Mamãe confiava muito no seu Pedro. Ela arregalou os olhos, assustada. Eu tinha ido lá para benzer um “cobreiro” que havia surgido na parte interna do meu braço.

- Notando ele? É ruim, seu Pedro?

Ele entendeu a dúvida de minha mãe. Se era um conselho de amigo, ou algo espiritual.

- Os olhos estão sobre ele. Muitas energias agindo, a maioria lançada por pessoas egoístas.

Mamãe deu um longo suspiro, visivelmente contrariada com o rumo que a conversa estava tomando.

- O menino é forte. Deixa-me rezar mais um pouco por ele.

E veio com seus galhos de arruda e água benta. Havia um pequeno altar defronte à cadeira que eu estava sentado. Várias imagens adornavam, possivelmente ordenadas em escala de importância para o velho benzedor: Nossa Senhora, São Jorge com a metade da tinta já descascada, e Santo Antônio. O santo guerreiro me era mais simpático. Lembrava muito meu pai, com sua barba enrolada e a carranca de zangado.

Seu Pedro se empenhava, entoando um misto de Ave Maria com um cântico incompreensível, acima de minha cabeça, que começava a se encharcar com a água benta, jogada pelos ramos. Ele era moreno, cor de cuia, o sobrenome de origem alemã não combinava com a figura mestiça. Seus supostos poderes iam além dos ritos contra “rendimentos”, dores nas juntas e alergias na pele. O povo dizia que ele falava com os espíritos, o que levava muita gente a evitá-lo, com medo que de um momento para o outro,falasse algo incômodo.

- Tu vais ter que se cuidar... o homem com a cicatriz de estrela no peito não gosta de ti... – me falou, parando abruptamente a reza.

- Homem da cicatriz. De quem o senhor está falando?

Mamãe, antes que ele profetizasse algo ruim, foi me puxando pelo braço. Resmungou um breve “adeus” ao curandeiro e logo estávamos a caminho de casa.

- Velho caduco, já não fala coisa com coisa. – decretou. Ri baixinho. As coisas eram tão simples para ela. Bastava tirar uma conclusão definitiva e encerrar a questão.

Me contou que meu pai foi até a casa do Chico Laçador, para tentar “apaziguar”, após o incidente na igreja. Levou duas galinhas, já depenadas para um agrado. Imagino o quanto foi difícil para uma pessoa como ele. Realmente parti o narigão do cachorro em dois, que de tão inchado, parece uma batata. Ele não foi muito hospitaleiro com papai, e perguntou se eu havia enlouquecido, ou andava bebendo.

Não me arrependo. Fiz aquilo de impulso, mas com exagero. Acho que foi a primeira vez que as pessoas da vila me notaram realmente. Antes eu era o piá do ferreiro, agora onde passo, ouço falarem entre dentes “olha o filho do ferreiro”. Sempre detestei violência e é irônico eu estar sentindo essa espécie de regozijo com a agressão ao Laçador. As pessoas andam a falar de mal e de bem. Para mim não importa mesmo.

Logo depois de chegarmos em casa, resolvi fazer uma limpeza ao lado da ferraria e capinar o corredor que dá para nossa casa. O carro com um motorista que não conhecia passou em alta velocidade, jogando barro para os lados, em direção ao final da rua, talvez para a casa dos Polozzi, o que seria um péssimo sinal.


--------FIM DO PRIMEIRO CICLO----------

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

** Imagem da obra "Metamorfose de Narciso" de Salvador Dalí.