quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Em carne viva XVI !




Minhas mãos estavam encharcadas. Eu não conseguia controlar isso quando estava nervoso. Secava continuamente nas laterais da calça.

Uma densa cerração impedia de visualizar completamente a casa. Tive a impressão de ver um vulto se mexer à minha direita. Procurei não fazer movimento algum e suspendi a respiração. Era um arbusto disforme que balançou os galhos com a leve brisa que não era suficiente para dissipar o nevoeiro.

O que me arrancou da cama em uma noite feia como aquela foi um pensamento repentino e que me deixou apavorado. Eu havia deixado o relógio de bolso de meu pai na casa dos Polozzi, ou melhor, na peça que servira de cativeiro para Cecília.

O delegado estava por vir de Santo Ângelo para vistoriar o local e buscar pistas sobre o paradeiro dela. Era para ter vindo no dia anterior, mas a chuva deixou a estrada intransitável.

Droga. Droga. Como eu pude ser tão bisonho a ponto de deixar um objeto com as iniciais do dono entalhada atrás. Eu estava perdido caso o policial viesse na manhã seguinte. Eu havia largado ao lado do catre de Cecília, junto à parede.

Um pânico crescente me acometeu e o ar parecia ficar mais rarefeito a cada movimento que fazia para vestir um velho pulôver marrom. Coloquei o chapéu de feltro que fora de meu avô.

Calcei um velho sapato que usava nas tarefas de limpeza e que era muito confortável.

Mamãe ouviu o rangir das tábuas do assoalho e gritou do quarto:
- O que se passa, Lázaro?

- Nada. Acho que o cachorro se enroscou com a corrente. Vou ver o que é.

- Passa o trinco na porta quando voltar.

Quando ganhei a rua, empreendi uma corrida frenética, buscando abrigo nas sombras das árvores. Os cachorros faziam uma enorme alarido por onde eu ia passando. Olhei para trás e notei que em algumas casas as pessoas iam acendendo os lampiões para ver o que estava ocorrendo.

Em certo ponto, atrapalhado pela neblina e a pressa, tropecei em uma enorme raiz de cinamomo e caí, batendo meu rosto em um toco pontiagudo. Imediatamente senti o líquido quente escorrer pelo meu rosto. Peguei meu lenço e fiz uma espécie de bandana, para estancar a hemorragia.

Andei mais uns trinta metros, agora com mais cuidado e logo estava em frente à casa dos Polozzi, que estava parcialmente coberta pela cerração.

O coração parecia que ia sair pela boca. Era pouco provável que alguém alguém estivesse ali, mas nunca se sabia. O arbusto parou de mexer e o vento cessou. Pulei a cerca e avancei costeando a lateral da casa, rumo à pequena peça onde outrora Cecília havia sido enclausurada.

Ouvi algo. Tipo folhas sendo pisoteadas. Não era possível. Talvez meus nervos estavam sendo traídos. Para piorar as coisas, a porta e as janelas haviam sido lacradas com ripas de madeiras. Eu havia levado um talhadeira, mas não ia ser fácil arrancar as ripas. Os barulhos cessaram. Talvez algum gato.

Foi menos trabalhoso que imaginei e logo consegui desbloquear a porta da frente.

Havia um cheiro desagradável e acre no ar. As coisas se encontravam da mesma maneira que eu havia visto alguns dias antes. Andei até a cama de Cecília e a afastei da parede. Para minha surpresa o relógio não se encontrava mais ali. Mil pensamentos e possibilidades passaram pela minha cabeça. Talvez eu houvesse perdido em outro lugar. Não. Foi ali que eu havia deixado.

Ouvi a barulhenta porta ser aberta. Polozzi surgiu bloqueando a entrada da escassa luz da noite e logo em seguido apareceu o Neco da Merência.

domingo, 1 de agosto de 2010

Em carne viva XV !




Os olhos de minha mãe estavam maiores que de costume, e segurava minhas mãos como que para eu não fugir.

-Por favor, filho. Diz que não tens nada a ver com essa coisa toda.

Ela era provavelmente a única pessoa que eu poderia me abrir e contar tudo, mas eu não tinha a menor vontade de fazer isso. Não falar talvez fosse a melhor resposta que eu poderia dar a ela. Não consegui mais ficar ali e fui tentando me desvencilhar enquanto ela ficava cada vez mais alterada.

- Tu vais estragar a tua vida. A polícia vai aparecer amanhã aqui e com certeza vão te procurar. Tu achas que eles são burros? Que não vão saber da tua ligação com essa mulher?

Eu estava realmente preocupado. A sensação inicial de uma aventura, agora era de medo. Mas nada me faria falar, eu havia decidido isso durante toda a madrugada em claro, junto a janela da cozinha. Os barulhos dos grilos e corujas pareciam mais que nunca amigáveis. Um vaga-lume voava nas proximidades do pé de bergamota. Ali era meu porto seguro, mas isso agora estava ameaçado, quem sabe se eu fugisse? Ouvi falar que em Ijuí, pequenas indústrias estão em ritmo acelerado de crescimento e sempre precisando de gente. Mas se saísse dali fugido seria como assinar minha culpa.
O alvoroço na vila era total. Quando Polozzi voltou para casa depois de dois dias na casa da amante, deu por falta de Cecília. Inicialmente deve ter imaginado que a mulher se rebelara mais uma vez e saído da clausura. Ao final da tarde e início da noite ele começou a procurá-la nas redondezas. Buscou informações nos vizinhos, e esteve até aqui em casa. Ouvi tudo de meu quarto. Meu pai foi seco com ele e Polozzi me acusou de estar envolvido nisso. Papai rebateu mandando que se retirasse do nosso pátio.

Faltou coragem para sair do quarto, de encarar meu pai. Não demorou e ele foi até a porta e me perguntou do seu jeito, muito objetivo:

- O que está acontecendo?

Eu podia tentar enrolar, mas sabia que era como provocá-lo.

-É loucura desse gringo. - menti.

Ele me olhou por longos segundos, como que a esperar que alguma expressão me traísse. Depois virou as costas e saiu. Ele sempre fazia isso quando se incomodava com algo. Ia para junto da horta e acendia o cigarrão de palha.

Eu tinha dois problemas imediatos. A polícia com certeza era um deles. Mamãe tinha razão. Os últimos fatos certamente os conduziriam a mim. Iriam pressionar para que eu falasse algo que os levasse ao paradeiro da mulher. Havia também a possibilidade do Polozzi armar outra emboscada junto a seus alcaides.

O círculo começou a se fechar.