sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Em carne viva XVIII !




Era a primeira vez que eu ouvia o padre Lara falar em um tom tão alto.

- Delegado, isso é uma arbitrariedade, além de ser ilegal manter o menino preso.

Eu não os enxergava. A cela ficava no fim de um escuro corredor. O cheiro de urina e mofo era quase insuportável.

Quando o policial Valdemar me jogou no interior da cela, eu estava tão assustado que não percebi, de início, uma forma amontoada em um dos cantos, na penumbra. Era um sujeito chamado Perereca, tipo miúdo, encardido, a barba rala e sebosa. Pelo jeito se tratava de um andarilho. Durante a manhã inteira ele tentou engrenar algum assunto, o bisbilhoteiro. Eu não queria falar, e embora deixasse claro isso, ele parecia não se importar.

- Deixa eu adivinhar o que um rapazinho tão alinhado poderia ter feito para vir parar nesta pocilga...matou alguém? Não. Pouco provável. Aposto meu velho cachorro Napoleão que não foi isso. Então o que será? Hum...mulher! Isso. Acertei, não foi? Tem rabo de saia no meio disso. Só uma mulher pode virar a cabeça de um homem a ponto de cometer uma loucura. Mas me diga, rapaz, como faço para um padre intervir por mim também?

A matraca e o catinga do homem eram equivalentes em grandiosidade e só se aquietou para mim poder ouvir a conversa do padre com o delegado depois que ameacei chutar seus dentes, se é que ainda tinha alguns, coisa que o coitado provavelmente era acostumado. Após alguns resmungos voltou sua atenção para o dedão do pé, onde passou a cutucar com um pequeno palito.

O padre continuava inflexível.

-Serei obrigado a acionar instâncias superiores. O menino Lázaro cresceu freqüentando nossa igreja e seria incapaz de cometer qualquer atrocidade.

- Padre, o senhor não se lembra do crime do sacristão em Cruz Alta? Ele também vivia dentro da igreja. Só descobrimos o corpo do homem que ele matou várias semanas depois, em uma cova rasa.

- O senhor não está sendo razoável, delegado Nogueira. Não há corpo nenhum, não há crime. A coitada da Cecília cansou dos maus tratos do Polozzi e foi embora. Apenas isso. Não havia nada que a segurasse aqui. Até os filhos lhe foram tirados.

- Não quero blasfemar, mas não entendo como esse guri conseguia... hum hum...o senhor mesmo como homem de Deus, me entende, não é?

- Cecília ainda não apresentava sinais tão visíveis da lepra. E era, ou melhor, é, por que ela ainda está viva,eu tenho certeza, uma mulher bonita. O único a não ver isso é esse perdido do Polozzi.

- Calma lá. – disse o delegado – o Polozzi tem esse problema com a bebida, mas é um trabalhador de sol a sol, sempre foi.

O padre foi mais direto ainda.

- Ele está preso fora das leis que regem esse tipo de caso, e embora eu não entenda muito sobre isso, amanhã mesmo trarei um advogado e vou levar ele para os pais. Além de representar contra o senhor no Estado.

- Padre, o senhor me perdoe, mas não vou liberar o guri antes de averiguar uma pista quente que um morador das redondezas trouxe até mim agora pouco. Até chamei ajuda de um homem lá de Entre-Ijuís e que estará nos acompanhando amanhã...e não me pergunte mais nada, pois não vai adiantar!

O mendigo Perereca não se conteve.

- Xiii! Agora cagou...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Em carne viva XVII !




Sem reação. Eu não pensava em fugir, até por que era impossível.

O Polozzi e o Neco bloqueavam completamente a porta. Vislumbrei a janela, quem sabe um ato desesperado, mas até abrir o postigo eles me picariam a facão.

Estava em um beco sem saída e havia grande chance de não sair vivo dali. Não haveria final feliz para aquela história. Muitas coisas passam pela nossa cabeça em momentos assim. Eu não teria sido egoísta com minha família, me expondo daquele jeito e metendo os pés pelas mãos?

Os dois apenas me olhavam, calados, como a cercar uma rês perdida no campo. O cabo do revólver do Neco a pontear a camisa de sempre.

Encarei os dois. Papai se orgulharia de mim. Não frouxaria. Estava realmente disposto a me jogar contra eles, mesmo desarmado.

Achei estranha a postura pouco agressiva dos dois e logo descobri o porquê daquilo.
O delegado Nogueira entrou acompanhado de mais um policial. Polozzi e Neco abriram caminho e o delegado já estava tão perto de mim que podia sentir o hálito de álcool em meu rosto.

- Eu tinha certeza que tu voltarias aqui. Era uma questão de tempo. Entrou em uma grande encrenca, rapaz. O Polozzi registrou o sumiço de dona Cecília e tenho fortes razões para achar que ela foi morta.

Ele só podia estar brincando, ou melhor, blefando. Como não respondi, ele prosseguiu:

- Os rumos da investigação foram para um lado que te colocam como único suspeito do desaparecimento dela.

Finalmente minha voz saiu.

- Espero que não seja baseado na conversa desses dois animais aí atrás.

Polozzi estava mais vermelho que nunca.

- Filho da puta! Fala o que tu fizeste da minha mulher...

Ia avançar contra o desgraçado, mas o delegado foi enérgico mandando os dois canalhas esperarem no lado de fora.

- Ah, Polozzi, me passa esse troço aí. –disse, apontando para a mão direita do gringo, que contrariado alcançou o relógio de bolso ao policial e se retirou, resmungando algo incompreensível.

Nogueira pigarreou e teve um acesso de tosse antes de continuar:

- Este relógio tem as iniciais do nome do teu pai, e tenho certeza que ele, correto como é, reconheceria como de sua propriedade.

- Um relógio é o bastante para me colocar como suspeito de um fato obscuro como esse, delegado? E se dona Cecília estiver viva e aparecer de repente? – perguntei.

Ele passou o objeto para o opulento parceiro que estava dois passos ao lado.

- Achamos algumas peças de roupas em um matagal próximo ao rio. O Polozzi reconheceu como sendo dela. Estavam rasgadas e com manchas de sangue.

Eu já não tinha tanta certeza que ele blefava. Talvez o próprio Polozzi tivesse plantado aquelas provas e o policial caído feito um patinho.

Ele continuou:

-Tenho uma linha de pensamento que casou muito bem com as provas materiais que temos por enquanto.

- E posso saber qual é? - me encorajei a perguntar.

- Tu e dona Cecília se tornaram amantes – diminuiu o tom da voz para Polozzi não escutar de fora- Sei que Polozzi abandonou um pouco sua responsabilidade de cuidar da mulher doente, foi aí que tu entrou na história, bancando o caridoso. Acho que ela foi tua primeira mulher e te apaixonaste. Ela deve ter percebido o quanto errou quando os boatos sobre as tuas visitas noturnas se tornaram mais fortes até que essa doença escabrosa que a próxima foi acometida. Ela te rejeitou e tu perdeste a cabeça e fez essa barbaridade.

- Que barbaridade é esta, delegado? –desafiei.

-Ainda não sei ao certo, piá de bosta, mas te garanto que na gaiola arranco uma confissão. Valdemar, leva esse estrume para dentro do carro.