quarta-feira, 30 de março de 2011

Vento só!



Olhava o pampa, a planície aparentava estar “suja”, devida à chuva torrencial do dia anterior e deixava o tapete verde enlameado. Até as vacas pareciam um pouco desbotadas naquele cenário deprimente. O sol vez por outra tentava escapulir por entre nuvens. Não choveria mais, afinal esfriara um bocado e teve que vestir o velho e confortável pulôver. Buscava um pouco de consolo, mas aquela sensação de desamparo continuava.

Será que ele voltaria? Difícil prever, e no fim das contas de que adiantava se martirizar? O que era dela estava reservado, como a mãe sempre opinara. Quanto tinha de razão era um mistério, afinal muitas das previsões que a genitora tinha feito até ali, ela já na beirada dos trinta não tinham se confirmado, aliás, se realmente conseguisse enxergar um pouquinho adiante, não tinha deixado seu pai arrumar uma mulher na cidade e lá deixar parte dos parcos ganhos na lavoura. Tinha ganas de jogar isso na cara quando a mãe vinha com toda aquela balela, uma conversa que sempre convergia para que ela ficasse aprisionada o resto da vida ali.

Quando o médico que fazia a visita mensal ao distrito apareceu, tomou o susto. Não era mais o velho Lauri. Iria sentir saudades do velho e bonachão Lauri, o bigodão acinzentado encobrindo por completo a boca, as reprimendas para que seguissem suas prescrições à risca, quase um ralhaço. Aposentou-se e deixou um grande número de amigos por aquelas bandas, sem dúvida. Muitas vezes voltava para a cidade com o velho Ford abarrotado de abóboras, verduras, salames. Tudo presentes, uma forma, talvez a única de aquele povo agradecer para uma pessoa que fez tanto para a localidade.

Então a surpresa.

O novo médico, aparentando pouco mais de vinte anos (“será que esse piazote resolve as cosas?”-o pai indagou depois). De uma gentileza exacerbada no trato com as gentes, muitos ignorantes e brutos, sempre tendendo a questionar suas observações, coisa inerente ao lugar. O velho Lauri não frouxava:”Te aquieta,animal,ou tua pressão vai subir mais...”, mas o rapaz, com os olhos plácidos e um paciência pouco comum à idade, buscava em uma linguagem acessível, enfiar naquelas cabeças duras que precisavam se vergar ao diagnóstico.

Foi assim que chegou até sua casa. Humilde, explicando que estava temporário atendendo a localidade, até vir um doutor em definitivo e se estava tudo bem. A mãe tagarela, buscando relacionar parentesco para o rapaz, os olhos dele buscando sua presença silenciosa no canto da cozinha enquanto a velha continuava a disparar aquelas coisas insuportáveis. Andava ela amolada com uma ardência no estômago. Veio a calhar e serviu de motivo para ser examinada na sala. Levantou a blusa e deixou que auscultasse e fizesse algumas perguntas. Era esperança que fosse para permanecer junto algum tempo mais. Será que era tão atencioso assim com todas?

No mês seguinte voltou para saber se tinha melhorado e lhe trouxe uma caneta toda trabalhada para que escrevesse seus poemas (ele tinha visto alguns rascunhos na visita anterior). O pai já olhando com simpatia aquela situação, afinal ela já estava passando do tempo, como o velho dizia à mãe, alto para que ouvisse do quarto. Que culpa ela tinha se ali naquele cu do mundo não havia um imprestável que pudesse desviar o pensamento para outras coisas senão plantio, cavalos, arado e essas coisas?
O doutor avisou que talvez fosse a última visita, outro médico já havia sido contratado, mas quem sabe voltaria para um mate. De novo a incerteza, companhia constante e muitas vezes cruel naquelas paragens.

Um vento frio assoviou em seu rosto.

Encolheu-se e relutante fechou a janela de madeira bruta.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Um estranho na multidão!




Os rostos são estranhos. Talvez por eu ser um estranho. Passam rapidamente por mim. Curiosamente procuram um contato visual e encontram o obstáculo do meu impenetrável óculos escuros. A calçada é estreita para o enorme fluxo de pessoas. Workholics apressados fazem malabarismos improváveis para ganhar tempo e dianteira dos demais. Filas quilométricas saem das lotéricas. Máquinas de sorvetes e expressões ansiosas aguardam a vez. Artesãos ambulantes sentados no meio fio exibem suas obras em tapetes estendidos no chão.
O fato de eu não gostar do olho no olho não denota falsidade. A viagem é outra. Observar e estar protegido de um possível intruso. Meu olhar poderia me denunciar? É bom não arriscar.
O velho sentado em uma dessas cadeiras de abrir na esquina do banco me puxa pela camiseta "tenho todo tipo de ervas e chás para qualquer enfermidade, filho!". Sorrio sem responder. E as doenças da alma, o senhor sugere o quê?
Apresso o passo. Os primeiros pingos de chuva na abafada tarde de verão se precipitam sobre a multidão. Me abrigo debaixo de uma marquise da loja de eletrônicos. Sou espremido contra o vidro da vitrine por pessoas tentando não se molhar. O jeito é esperar Olho para dentro da loja e vejo um gestual vendedor fazendo uma explanação provavelmente sobre as vantagens que aquele casal do interior vai ter em adquirir a reluzente máquina de fazer pão. Um corpulento senhor pisa no meu pé direito. Porra! Foi-se a minha unha. "Desculpe!". Resolvo continuar minha andança, mesmo com chuva. Agora os poucos que se aventuram a confrontar os pingos agora gelados me olham com mais curiosidade. Ah, os óculos escuros! Sinto muito, mas não estou preparado para o mundo e suas cores reais. O cabelo gruda na minha testa, a camiseta nas costas.
Quanto vale uma vida normal? A vida como a que essas pessoas que se assustam com uma chuva revigorante dessas? Ou que vivem uma constante disputa contra um adversário que sequer conhecem? Bem, eu já não luto mais. Decidi trazer o adversário para o meu lado. Observo e isso me basta. "Olha o arco-íris!”. Não enxergo por causa dos óculos escuros e as cores são muito fortes...

domingo, 6 de março de 2011

Janis tem uma arma !



A vida de repente começou a passar como um filme em sua cabeça.
O corpo todo doía. O que havia restado dos dentes da frente estava frouxo, as costelas provavelmente estavam quebradas, pois cada vez que tentava inflar os pulmões era como se milhares de pequenas agulhas lhe penetrassem o tórax. Uma das orelhas havia sido rasgada e os lábios deformados ajudavam a deixar sua face com aparência de boneca inflável. Sentiu vontade de rir, mas a dor era intensa.
Em cima da cama, fotos de quando ainda era um menino, usando aqueles calções de futebol listras dos lados, verde. Era um estranho no ninho. Seis irmãos, todos homens, todos mais velhos, todos machões. Só ele daquele jeito. Como uma coisa dessas pode acontecer? Ainda lembrava o pai, com aquele bigodão, levando as mãos à cabeça e olhando para o teto de tabuinha, como a questionar um deus muito citado pela mãe, superprotetora. Ele era frágil ela sentia dever de protegê-lo. Como um ser como ela pode ter vivido tão pouco e deixá-lo entregue à própria sorte?
Na outra foto tinha uns quinze anos, o cabelo na altura dos ombros e as feições delicadas já o distinguiam dos outros meninos. Estava em um acampamento de férias. Lembrou com vivacidade o professor de Ciências entrando na sua barraca depois da fogueira e da roda de violão. Ele o compreendia e não precisava ter medo, mas não contasse a ninguém.
Em outra, tirada por um amigo igual a ele, na rodoviária. Tinha uma expressão de felicidade com uma mochila nas costas. Era estranho, ele nunca fora feliz e ali naquele retrato não se reconhecia. Estava de partida naquela ocasião. Apenas poucas vestimentas e cem cruzeiros, último gesto “benevolente” do pai: “Suma daqui. Você é uma vergonha para nossa família.”
A mãe já não estava mais presente e tinha sido o único elo com aquele lugar. Partiu decidido. Que se fodessem, desgraçados. Nunca precisou deles.
A cidade grande, a grande prostituta, como ouvia o pastor falar, era um organismo vivo pronto para engolir quem quer que fosse. E assim foi.
Sobreviveu fazendo programas com taxistas nas imediações de um hotel do centro. Apanhou por vezes, lhe tomavam o dinheiro, mal conseguia comer e morava embaixo do viaduto.
Foi então que surgiu o Serjão. Primeiro lhe aplicou uma surra terrível por biscatear e não repassar uma comissão, afinal a área era dele. Todo mundo temia o Serjão, desde prostitutas, vagabundos e até gigolôs menores precisavam do aval dele para aplicar pequenos golpes, se prostituir ou apenas vender bugigangas.
Certo dia olhou o Serjão deitado na cama, fumando, o peito muito peludo e a tatuagem de tigre no ombro e resolveu perguntar por que havia escolhido ela. O Serjão deu de ombros e depois de uma longa baforada disse: “não preciso dar explicações para traveco...”
O gigolô financiara tudo, duzentos e cinqüenta de silicone, tratamento com esteticista, lentes de contato, bronzeamento artificial, mega hair e a honra de ser sua “esposa”. Se contasse que o Serjão gostava de dar também, o mataria sem dó.
Foram três anos de uma vida como até então não conhecia. Até diarista tinha. O Serjão às vezes sumia dois ou três dias e quando voltava, passavam horas e horas na cama. Era outro homem, uma pessoa de sentimentos.
Aí chegou o pesadelo. Traficantes de peso resolveram assumir a área e todos os negócios escusos da região. O Serjão violento como era, não entregaria de mão beijada um negócio que ele forjou a ferro e fogo. Acabou matando dois deles. Tiveram que se esconder no subúrbio. Ele planejava mais duas ou três ofensivas e eliminaria “os cabeças” como se referia aos inimigos.
O troco aconteceu quando foram a uma pequena padaria comprar leite. Foi tão rápido que não tiveram como reagir. Um Ômega preto, três homens armados até os dentes os “convenceram” a entrar no veículo.
Um depósito de combustível adulterado, o Serjão preso a uma cadeira. Os traficantes queriam de qualquer maneira os “pacotes”. Começaram a torturá-lo, sua face aos poucos se transformando em uma massa disforme e ele firme. Resoluto em não falar. “Então não vai contar? Olha o que vamos fazer com tua mulherzinha...”
E avançaram sobre ela.
Foi um misto de curra e tortura brutal, onde usaram até um cabo de vassoura. Um dos desgraçados arrancou um brinco, deixando a orelha partida em duas. Quando pensou que não agüentaria mais, um dos homens notou que o Serjão não respirava mais. Então usou as forças que lhe restavam e se embolou com um deles. Conseguiu tomar a pistola. Dois tiros. Não sabia que atirava tão bem, ou talvez fosse apenas sorte. Matou dois e o terceiro se protegeu atrás de um pilar. Arrastou-se até o carro, dirigiu por trinta metros e resolveu atirar nos enormes tonéis de gasolina. A explosão foi de proporções cinematográficas que acompanhou pelo espelho retrovisor.
De novo o quarto. As fotos e a lembrança do Serjão.
Era uma sobrevivente, desde quando tinha lembrança. Continuaria subsistindo, por bem ou por mal, quisessem ou não.
Levantou-se com dificuldade, foi até a geladeira e colocou gelo dentro de um saco.
O lábio e a gengiva ardiam em fogo.
A partir dali seria chamada Janis Três Tiros.
Havia oito quarteirões que precisavam de um novo patrão...

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*Conto também postado no site Esquina do Escritor/Beco do Crime