segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

3 minutos!




- Joe, o que tu faz aqui, amigão?
Não era possível, vinte e tantos anos e lá estava, na janela do Corolla preto que eu havia roubado em Cachoeirinha, o Acácio, sim, o Acácio, o CDF da minha turma do ensino médio.O fracassado do Acácio. Chutado diariamente por toda a ala masculina, e ridicularizado pelas meninas e professores. Talvez a chance desse encontro ocorrer fosse de uma em milhão. Digo isso por que já não era para mim estar vivo e o Nestor estar trabalhando de diretor da NASA. Como ele me reconheceu, é um caso de estudo, já que estamos falando de escola. Eu estava usava barba, tinha um boné de beisebol enterrado na cabeça, e um enorme rayban, além de estar uns vinte quilos mais gordo. Vai ver que é o olho clínico do filho da mãe, que fazia professores de física, biologia e matemática suportarem sua presença grudenta, com notas máximas em todos os quesitos possíveis. Ele era o Babalu, por que grudava na sola do tênis de qualquer um. Os óculos só mudaram os aros, agora infinitamente mais finos que aquela época. No mais, a roupa, um terno provavelmente sob medida, ainda parecia não se assentar em seu corpo desengonçado.
Bem, fosse outra ocasião eu poderia perfeitamente zoar com ele, afinal, era muito prazeiroso humilhá-lo e mostrar que sua superioridade intelectual era absolutamente ineficaz, aqui,nesse mundo cão, onde eu era perito em guerrilhas de sobrevivência. O problema é que eu estava ali, parado naquela esquina, esperando o Tide e o Nestor, que estavam empenhados em roubar tudo que encontrassem no posto avançado do Banco do Estado, que ficava na metade da quadra. Era daqueles onde se paga quase tudo, luz, água, faturas em geral, além de oferecerem até jogo do bicho. Estudávamos o local há um mês. Era perfeito. A câmera estava com defeito, o Tide descobriu, ouviu uma atendente comentando com a gerente, o alarme ficava embaixo da gaveta do último caixa, à direita. O da moça de óculos, que estava sempre com um pacote de Rufless ao lado da tela do PC. A guarda da policia militar fazia rondas ao redor da quadra, de meia em meia hora, às vezes paravam no canteiro central e ficavam mais tempo. Era esse tempo, quando estivessem exatamente no lado oposto da quadra, paralelo ao banco, que agiríamos. Tudo em três minutos, nada mais que isso. O dinheiro do caixa e um arrastão em celulares e carteiras dos clientes. Havia novas roupas para eles no banco de trás. Eu arrancaria com o Corolla, e seguiriamos até as margens da BR,onde um discreto carro popular 1.0 , com um senhor grisalho ao volante, nos aguardava. Perfeito, não havia como dar errado. Até surgir o fator Acácio.
- Acho que está me confundindo...
-Ah, o velho Joe, sempre querendo pregar uma peça...
E se desmanchou todo em um gargalhada que parecia a tosse da hiena. Ele era todo errado. Era uma presença que poluía todo o cenário, inconveniente e masoquista. Eu sempre fui quem mais o sacaneou, na escola. Roubava seu material, enfiava sua cabeça dentro do vaso e o massacrava, sempre que podia, e ele sempre atrás de mim, me idolatrando.
- Desculpe, mas não sei quem é você.
- Joe, a gente foi colega na escola. Não lembra? Sou o Acácio...
Uma das poucas coisas que aprendi, no segundo grau, foi que o Acácio era insistente.
O Tide e o Nestor entraram no postinho. Eu tinha três minutos para me livrar do meu ex-colega.
- Cara, meu nome não é Joe e não te conheço.
- Entendo que você tenha se magoado com alguma coisa, naquela época, Joe. Mas o tempo passa, inclusive dia desses encontrei o Antero...
Ah, não! O Antero era demais para mim. O melhor amigo do Acácio, e um pé no saco pior que o sujeito na janela do carro.
- O Antero sugeriu que fizéssemos uma reuniãozinha para comemorar os quinze anos de formatura do colegial. - anunciou o Acácio.
Cheguei à conclusão que o desgraçado estava me tirando. Que formatura se fui para a FEBEM quando estava ainda no primeiro ano? Filho da puta.
- Olha, Acácio. Gostaria de ser esse seu amigo, o Joe. Você deve gostar muito dele. Mas infelizmente não sou.
Cinquenta e sete segundos. No meu relógio.
Algumas pessoas que passavam em frente ao posto, pararam e olhavam para dentro da porta.
- Tá bom, tá bom. -ele ajeitava a borboletinha dos óculos, em uma posição mais confortável, no narigão.
Uma mulher de idade e mais um guri de boné do Lakers, que olhavam para dentro do posto, começaram a correr. Putz! Agora a coisa teria que se resolver em pouquíssimo tempo.
- Vamos fazer assim, Joe. Estaciona direito teu carro, eu vou ligar para minha mulher e dizer que me atrasarei um pouco. Aí vamos tomar uma cerveja bem gelada e relembrar os velhos tempos.
O cara era masoquista mesmo. Eram coisas que a brutalidade das ruas não me permitiu compreender. A cabeça das pessoas. Eu fui um pesadelo na vida do Acácio, e agora ele ali, com sua digníssima cara de paspalho, me convidando para tomar uma cerveja.
Quando olhei para o cronômetro do relógio, vi que haviam se passado dois minutos e dois. Ouvi três estampidos da automática do Nestor. Que merda. Melou. Algo errado aconteceu. O Acácio falou alguma coisa, mas não entendi.
Vi o Tide e o Nestor, com as toucas ninjas e uma sacola sairem correndo porta afora e vindo na direção do carro. Arranquei e fui ao encontro deles.
Entraram gritando.
- Joe, o Nestor teve que atirar em um policial à paisana. O cara reagiu...
- Merda! merda! A coisa vai feder. Vai virar uma caçada. Logo um policial, Nestor?
-Vamos, vamos, toca essa porra aí...
Agora precisávamos de uma carta na manga. Um refém. Engatei a ré e raspei a lataria de dois carros, até chegar onde o Ácacio observava tudo, embasbacado.
- Acácio, amigão. Entra aí, que hoje vamos relembrar os velhos tempos... - e o puxei pelo colarinho, janela adentro.
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**Conto originalmente postado no site Esquina do Escritor/Beco do Crime, em 04/04/2010.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Romeu e os pombos!





- Como é sua vida? – ela perguntou e colocou a cabeça em seu peito.

Era uma pergunta que inevitavelmente iria surgir, mais dia menos dia.

- Isso é importante?

- Sei lá, é apenas mais uma entre tantas que gostaria de fazer para você.

Aquele trajeto era perigoso. Ficou quieto. Ela continuou:

- Sabe, eu nunca fui uma xereta, não quero que pense isso. Só que estou me sentindo presa a certos princípios.

Agora ele não tinha como sair pela tangente.

- Não estou entendendo...

- Isso soa meio antiquado, né? Essa conversa de princípios...

Ele resolveu arriscar e ver onde ia dar.

- Acho que não. Se todas as pessoas se preocupassem com os princípios o mundo não seria tão complicado.

Ela levantou a cabeça, olhando em seus olhos.

- Você acha mesmo?

- Claro, eu não mentiria para ti.

- Mas omitiria algo importante?

Ele se ajeitou, o banco da praça estava se tornado mais desconfortável que de costume.

- Não.

Ela não se deu por vencida.

- É que existe aquela coisa da balança. O que pode ser importante para mim e não ser para você.

Ele sorriu com o canto da boca.

- É, mas sinceramente não sei onde tu quer chegar...

Ela deu um suspiro e virou o corpo para o lado do chafariz.

- Eu não queria isso, sinceramente. Já saí com muitos homens casados, estou escolada em desculpas, mentiras infantis e até medo por parte de alguns. Medo que eu seja uma psicótica, sei lá. Que os encontre na rua com as esposas e faça um escândalo ou coisa assim. Agora você não se abre comigo. Não fala nada das dificuldades que vem atravessando no casamento, dos filhos, do serviço, as coisas de praxe, que todo homem comprometido diz. Você é uma total incógnita para mim.

Ele ainda tinha o controle.

- Guria, lembra quando eu cheguei para conversar contigo na locadora? Pois bem, eu já te conhecia, como se fosse da minha vida toda. Tu é exatamente o que preciso agora.

Ela sentiu-se confusa.

- Eu poderia ficar lisonjeada e entender que te completo, mas esse “agora” que você falou é muito restrito.

As mulheres gostam muito do “para sempre” ele sabia. Não devia ter usado aquele “agora”.

- Tu entendeu errado. Esse “agora” que falei significa a urgência que eu tenho de ti, que só penso dia e noite em nós dois e acho que isso não vai acabar nunca.

Ela estava satisfeita até lembrar do teor inicial da conversa.

- Pois é, senhor mistério. Você sabe um bocado de mim. Isso me coloca em desvantagem.

Ela estava fechando o cerco.

- Fala como se estivéssemos em uma disputa...

Ela não recuou.

- De certa forma sim. Nos primeiros encontros eu tentei passar o melhor de mim. Agora conhece o lado obscuro, só que eu não tenho nada de você. Apenas o homem que veio até mim na locadora e desde então me proporciona os melhores dias da minha vida. Mas isso é pouco, eu acho. Eu queria dividir contigo. Sejam alegrias, tristezas, você está entendendo?

Ele teve um breve sentimento de culpa, que foi embora e logo voltou.

Silêncio.

- Tudo bem, acho que você não merece que eu esconda algo, afinal já estamos juntos há um mês.

Ela segurou o sorriso de triunfo.

- Claro que não. Tudo que eu quero é apenas formar uma imagem mais completa de você. Isso pode não parecer, mas é muito importante para mim.

Ele agora estava nervoso e recomeçou a jogar pipoca aos pombos, que agora eram muitos.

Ela se ajeitou no banco não mais tão desconfortável.

- O fato é que não sou e nunca fui casado e até te encontrar nunca havia nem cogitado essa hipótese. Não tenho filhos e nem sou complicado...

Ela franziu a testa e pelo seu olhar estava incrédula.

- Não acredito...

- Pois pode acreditar. Nenhum probleminha, neurose, vício bem pequenininho e situação financeira estável.

Longos minutos de silêncio. O que estaria acontecendo? Por que ela parecia tão triste?

Finalmente ela se virou e colocou a cabeça dele entre suas mãos.

- Meu bem, acho que ficamos por aqui. Eu adoro você, mas essa situação me pegou totalmente desprevenida. Vou procurar esquecê-lo e sugiro que faça o mesmo.

- ???

Ela levantou-se, colocou os óculos escuros, as lágrimas escorrendo pelo rosto e resistiu à tentação de ficar caminhando em direção à Marquês.

Ele ficou um tempo que depois não saberia precisar, ali, sem saber se ria ou chorava. Um pombo mais ousado pousou no lugar onde ela estava sentada e abocanhou ávido uma pipoca.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Vinte e um!




O japinha da floricultura tinha ido com a minha cara. Havia doze candidatos, a maioria mais apta que eu à função. Pelo menos eu achava. Ele veio cego em mim.

- É você que eu quero. Li seu currículo e gostei muito.

O coitado não sabia que era tudo mentira. Tudo forjado, referências, tudo.
Contei a meu tio que iria sair da sua casa, finalmente.

- Rapaz, acho que você não tem jeito. – decretou o velho.

Talvez ele tivesse razão, mas o fato é que eu não queria apodrecer atrás de um balcão de açougue, mais ensanguentado que a Carrie, a estranha. Ele sim, já fazia parte daquele ambiente. Era como uma peça de carne. A diferença é que não estava pendurado por um gancho.

Há meses eu procurava emprego em lojas do centro. Boutiques, escritórios, farmácias. Alguns lugares cheguei ao contrato experimental, mas não esquentava banco e implacavelmente voltava aos bicos do fim de semana atendendo no açougue de meu velho tio, que no rastro me cedia um quarto provisoriamente até eu me alinhar. O problema é o que o provisoriamente vinha se transformando em definitivamente. Era essa a sensação.

- Já vou indo. Sábado venho buscar a cama e a tevê. Dê um abraço na tia. – ele resmungou um adeus e imediatamente foi abduzido pela notícia de capa do jornal à sua frente.

Avancei pela rua deixando o subúrbio para trás. Iria ao sebo, comprar dois ou três livros para a semana. O ar quente de dezembro pedia urgência. Eu estava mais aceso que um foguete. As vitrines estavam bonitas, as ruas do centro com todos aqueles balagandãs eram atração. Acendi um charuto. As pessoas me olhavam curiosas e eu parecia uma locomotiva soltando as baforadas.

Eu não precisava muito para ser feliz. Algumas peças de roupa legais, um tênis, podia ser surrado, um quarto de pensão e livros. Ah, um pouco de dinheiro, não muito senão eu me estrago. Mas não esquento muito com isso.

Meu tio havia perguntado, referindo-se ao quarto emprego em seis meses:
- Não acha um pouco sintomático?

-Não posso trabalhar em um ambiente que não me seja favorável...

- Se fosse eu o dono da tal floricultura, tu nem começarias. Conheço o malandro pelo andar...

Eu tinha vinte e um anos, nenhum compromisso, a não ser com tentar me sentir bem o tempo todo. É fácil sentir-se bem com vinte e um anos, isso eu garanto.

A esquina se aproximava. Desisti de comprar os livros. Até chegar ao cruzamento eu decidiria para que lado dobraria. Comecei a assobiar um velho folk-rock...

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*Este conto originalmente se chamava "Pequena ode ao inverno que chegou" e escrevi lá por junho, despretensiosamente como exercício de escrita.Enviei ao meu velho amigo Roberto Kusiak para ver se encaixava algo no http://totolunatico.blogspot.com/, blog experimental que participo esporadicamente e gerenciado por ele. Aí ontem achei perdido o rascunho na gaveta e gostei do que li.Fiz algumas adaptações à estação do ano e mandei bala.Taí.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Em carne viva XXIV ("Tudo se expia, tanto o bem como o mal, cedo ou tarde se pagam. O bem é mais caro, forçosamente !" Louis Céline)




A sucessão de fatos estranhos que antecederam aquele 1959 não parou por aí.

Uma peste se abateu sobre a criação. O curioso foi a indistinção de raça. Desde galinhas, porcos, até ovelhas, muitos animais morreram. Alguns agrônomos do governo chegaram a colher amostras e levaram a Porto Alegre, mas não fiquei sabendo o resultado.

Também as águas da cascata adquiriram uma coloração azulada. Era exótico e assustador embora fosse um belo espetáculo. Foi como se houvessem jogado centenas de pedras de anil na água. Passamos um bom tempo sem tomar banho lá.

Tivemos também o suicídio do Jorge Arão. A pobre da Tereza achou o corpo pendurado em um matagal nos fundos da propriedade. Dizem que ele estava com uma dívida junto ao banco.

O início do verão foi infernal. Um calor abrasador parecia fritar os miolos de quem se expusesse ao sol. Depois a estiagem de cinqüenta e sete dias fez com que os produtores buscassem ajuda da prefeitura para transportar água até a plantação.

O calor pareceu secar até as relações entre as pessoas. Muitas brigas feias ocorreram entre os moradores. Outros reagiam de maneira passiva, como bonecos articulados e muitos se cumprimentavam só por obrigação.

Foi um fenômeno interessante. Aquilo tudo parecia castigar só a nossa gente. Localidades próximas não sofreram tanto com a adversidade climática.
Nesse ínterim, um grupo de mais ou menos cinqüenta ciganos acampou na orla da cidade. Não entendemos o porquê, pois ninguém no povoado tinha dinheiro naquela época e poucas pessoas compravam as quinquilharias que eram vendidas de porta em porta.

Duas semanas após chegada dos andarilhos, o doutor Braatz foi chamado as pressas ao acampamento. Um dos homens da tribo apresentava os sinais na pele da doença que se tornou minha companhia até hoje, se não no corpo, impregnada na alma.

sábado, 13 de novembro de 2010

Em carne viva XXIII ! "A estupidez é infinitamente mais fascinante que a inteligência; a inteligência tem seus limites a estupidez não." C. Chabrol





Neco acabou voltando outra e outra e muitas vezes mais. Também era estúpido, mas pelo menos me enxergava como mulher. Minha vida continuou naquele ritmo, as cucas, a venda e minhas gurias crescendo. A Irene muito parecida com a gente do Polozzi, grandona, a pele muito branca e com o gênio forte. A Veridiana doce e inteligente.

A comunidade era muito fechada e unida, todos se ajudavam muito. Quando fiquei doente pela primeira vez, passei duas semanas no hospital em Santo Ângelo. O doutor Braatz não descobriu o que eu tinha. Era febre altíssima, dores pelo corpo e a pele em brasa, parecia que eu iria incendiar. O Antônio apareceu três vezes, tinha que cuidar do armazém. Sua irmã e algumas vizinhas que eram minhas amigas se revezavam na vigília. Pensei realmente que iria morrer. No décimo terceiro dia, assim como a doença apareceu repentinamente, ela sumiu. Amanheci me sentindo bem disposta e no dia seguinte voltei para casa. Foi o primeiro anúncio.

Retomei minha vida normal, o atendimento no bolicho, o mate cedo com a clientela. O Neco se afastou. Ele tinha se envolvido com outra mulher casada e talvez estivesse com medo que o Antônio descobrisse algo. Foi melhor para todo mundo, cheguei a essa conclusão na época. Mas o que eu não sabia é que tudo estava escorregando para um abismo sem volta.

As coisas foram acontecendo em uma rapidez surpreendente para o lugar onde morávamos.
Primeiro duas mortes pertinho do Comandaí. Pessoas conhecidas e bem relacionadas com a comunidade brigaram a faca por causa de uma divisa de cerca. O Toninho Moura e o seu Tenório. Uma facada e um tiro e os dois morreram. Uma desgraça enorme, pois suas esposas eram irmãs e tinham um punhado de filhos cada. Foi o assunto para muito tempo.

Depois uma tormenta que até hoje não vi igual. A tarde iniciou com muito calor, o ar parecia sólido de tão pesado. Ali pelas quatro da tarde o céu começou a ficar cor de chumbo. Na linha do horizonte, onde apareciam duas coxilhas que ficavam dois quilômetros distantes, logo foram engolidas por uma chuva e ventos que parecia ser algo da providência divina para punir todos os pecados que estavam ali, no nosso povoado, alguns de conhecimento geral, outros, inconfessáveis.

Noventa por cento das casas foram destruídas. Duas pessoas que pescavam foram surpreendidas pela enxurrada que se misturou à correnteza do rio. O telhado da nossa casa levantou vôo e sumiu girando em uma dança tenebrosa junto a pedaços do caibro. A fúria do tempo que se abateu sobre nós foi tanta, que árvores seculares foram arrancadas e jogadas a vários metros de distância.

O que foi uma tragédia natural para a maioria dos moradores, para mim era um pequeno alerta do que ainda viria.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Em carne viva XXII ! ("O futuro sempre está começando agora." Mark Strand)




Santo Ângelo, 03 de dezembro de 1980.

Deixo esse relato em forma de carta, para quem algum dia, possa se interessar.

Estou com 68 anos e sempre fui uma mulher forte. Minha ascendência italiana e o trabalho duro, desde a infância, ajudando meus pais nas tarefas comuns do campo, me fizeram resistente às intempéries do tempo e da vida. Até gripe, era raro eu pegar.

Tenho dificuldade de me concentrar. Talvez esteja ficando caduca. Algumas crianças da vizinhança brincam e gritam junto à minha janela. Elas, ao menos, não têm medo de mim. Logo, suas mães, histéricas, se darão conta e começarão a berrar para que se afastem da minha casa.

Já estou acostumada com isso. Essa maldição me acompanha desde 1959.

Eu casei aos vinte anos, com Antônio Polozzi , que tinha um bolicho na entrada do distrito Comandaí. Ele era bem mais velho e foi seu segundo casamento. A primeira esposa, de apelido Dita, conheci. Eu era criança e ela foi amiga da minha mãe. Coitada, morreu de congestão. Eu lembro que tinha medo de chegar perto do caixão, no velório e o pai me obrigou a olhar para a morta. Não tiveram filhos.

Polozzi, em pouco tempo, começou a arrumar algumas mulheres e as levava para morar junto. Ele buscava aqui ou de alguma cidade vizinha. Aquele tipo de mulher as quais tinha predileção, chinas. Elas não ficavam mais que dois ou três meses e após algumas surras, o abandonavam.

Após algumas tentativas frustradas de arrumar uma nova companheira que consentisse com seu jeito brutal, aconselhado por gente da vila, resolveu que teria de ser uma mulher de lá. O pai e a mãe viram nele um bom partido, afinal seu negócio era forte, e nem todos os moradores tinham como ir até a cidade para comprar mantimentos. Eu já os odiei por isso, afinal eu tinha catorze anos, mas depois de algum tempo, vi que não havia como condená-los por isso. Eles atinavam que eu estaria com uma vida garantida, seria dona também do único armazém das redondezas. Minhas duas irmãs mais velhas já tinham se casado, porém, nenhuma com um marido com as condições financeiras de Antônio Polozzi. O casamento com pouca idade era muito comum naquela época. As famílias tinham muito medo que suas moças não arrumassem casamento e ficassem solteironas.

Meu casamento foi um evento que trouxe gente de longe. Polozzi não poupou dinheiro na festa, para me impressionar. Ele sabia que não exercia nenhuma atração física sobre mim. Na verdade, eu tinha sentido algo somente pelo filho do seu Bastião, o Eduardo. Tinha um ou dois anos a mais e sempre me cortejava na escola. Eu ficava sem jeito e não tinha coragem de fitá-lo nos olhos. Provavelmente, se Polozzi não tivesse cismado comigo, eu poderia ter vindo a namorar com Eduardo, que acabou casando com minha prima Neiva.

Foi muito pouco gentil comigo na primeira noite, mas eu já esperava isso. Nos primeiros anos, não deixava que eu atendesse no balcão “esses vadios ficam te cobiçando”, nem aparecer para falar alguma coisa, eu podia.

Em pouco tempo, engravidei da minha primeira filha.

Meus pais morreram em um intervalo de tempo curto. Seis meses. Ele, de infarto e ela de um câncer no estômago. Embora já casada, um sentimento de solidão se abateu sobre mim. Meu marido não era o tipo de homem que escuta o que a gente diz. Nossa relação era um jogo, ele perguntava algo e eu respondia, eu perguntava algo, às vezes, ele respondia, se estivesse disposto.

Era uma vida solitária, embora eu fosse bem relacionada na comunidade. Com o passar do tempo, Antônio não fez mais conta e passei a ajudá-lo no balcão. Até certo ponto, foi bom, pois comecei a ter com quem falar, comentar os fatos ocorridos e o dia a dia da vila. Como meu marido previra, eu notava os olhares de cobiça dos homens que vinham beber e ficavam pelos cantos acompanhando meus movimentos. No começo tive um sentimento de repulsa, afinal não era uma falta de respeito ficar de olho em mulher casada?

Depois que minha segunda filha nasceu Polozzi se tornou ainda mais distante e agressivo. Começou a beber muito, ausentar-se com frequencia,indo para a cidade, de onde só voltava tarde da noite. Geralmente eu estava dormindo e ouvia os barulhos das coisas que ele derrubava pelo caminho. Não tinha com as filhas nenhum gesto de carinho. Comigo, eu já nem sentia falta, ou se sentia, procurava colocar minhas energias em coisas produtivas. Resolvi fazer cucas e pães, que logo caíram no gosto dos moradores que se tornaram meus fregueses assíduos. Eu procurava guardar o que ganhava, pois Polozzi nada comprava de vestimentas para nós. As meninas andariam maltrapilhas se uma tia não trouxesse roupas usadas de uma priminha mais velha para elas. Ele sempre achava e sumia com o dinheiro “usei para comprar produtos na cidade”, dizia.

Alguns homens se insinuavam constantemente, claro, sabendo das ausências do meu marido e um dia, após Polozzi sair para a cidade, o Neco, filho da um sujeito ordinário, me pediu fumo em corda, como não havia mais na prateleira, disse para ele esperar, pois eu iria lá dentro buscar. As meninas ainda dormiam. Quando puxava a mercadoria de cima de um armário na cozinha, senti o hálito morno do homem no meu pescoço. O Neco me agarrou por trás e me levou até o quarto, onde não ofereci resistência, Deus que me perdoe.

CONTINUA

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Em carne viva XXI !




A manhã iniciou fria como papai havia dito no entardecer do dia anterior. Deu na Guaíba.

Eram cinco e quinze. Eu havia feito minha mochila à coisa de duas horas. O padre estivera aqui em casa perto das nove horas da noite e já tínhamos nos recolhido aos quartos. Os cachorros deram o alarme e saltamos rapidamente. O padre não bateu palmas nem nada, apenas ficou parado esperando que saíssemos na porta. Era estranho. A impressão que tive era de que fosse uma estátua e que não iria falar nada, apenas nos olhava, imóvel.

Após um tempo ele finalmente pediu para que eu e papai o acompanhássemos em uma caminhada. Minha mãe tentou fazer alguma objeção, mas o olhar duro de meu pai a fez silenciar. Para acalmá-la o padre disse:

- Não demoramos filha, não se enerve.

Enveredamos por uma estreita rua e logo demos com um arvoredo fechado, onde a luz mal conseguia penetrar. Meu pai acendeu um cigarrão e aquela claridade foi a única que testemunhou nossa conversa. O rosto de papai parecia o de um fantasma e pela primeira vez notei como estava ficando velho. As rugas delineavam os olhos e a boca, o cabelo estava ralo e aparentava muito cansaço.

Quando paramos o padre não encontrava como iniciar o assunto.

- Pois então padre, o que se passa? –papai perguntou.

- É uma situação difícil...é muito difícil...isso não podia ter acontecido. O Comandaí sempre foi um lugar tão... tão... calmo.

Fiquei impaciente e nervoso. Sabia que vinha por minha causa.

- Desembuche logo padre, não sou mais uma criança. É comigo o problema? –busquei uma firmeza na voz que não tinha.

- Lázaro. Você sempre foi o meu ajudante predileto na paróquia. - tirou os óculos e olhava para baixo.

– Inteligente, gosta de ler, talvez isso me aproximou muito de ti. Não são muitos que lêem nesta terra, que realmente se interessam por isso. Isso te diferiu dos teus amigos, teu conhecimento é mais amplo que os destes meninos. É justamente por isso que não compreendo essa situação toda.

- O padre fale, pois estou ficando ansiado. – papai puxou um lenço e secou a fronte. Achei que ia passar mal.

O pároco finalmente revelou o que lhe levara a vir de Santo Ângelo às escondidas nos procurar.

- O Valdemar me procurou hoje à tardinha. Ele tem um apreço especial por teu pai, parece que são primos e tua vó o ajudou muito quando ele ficou órfão naquele desastre da barca. Ele colocou em risco seu emprego, mas pediu encarecidadente que lhes procurasse para que soubessem antes que o delegado volte amanhã com todo o efetivo da polícia...

Minhas mãos começaram a suar.

- Acharam um corpo nas macegas perto das terras do Quirino. Um peão dele foi recolher uma rês que havia se apartado do rebanho e achou um corpo de mulher. Algumas pessoas reconheceram as vestimentas como sendo da Cecília, embora o corpo já estivesse bem decomposto. Tu sabes que o delegado precisava do corpo para ter prova física do crime.

Olhei e vi meu pai chorando. A única vez que eu havia presenciado isso foi quando minha vó morreu, há muitos anos.

- Será que ele vai me prender? –perguntei.

- Vai. O Valdemar disse que tu és o único suspeito por enquanto e ele vai tentar te segurar na cadeia até o final das investigações.

O padre disse isso, passou por mim e colocou a mão no meu ombro. Queria dizer algo, mas nada falou e sumiu nas sombras da noite.

Voltamos em silêncio para casa. Papai estava em choque e entramos em silêncio. Minha mãe já estava aos prantos, mesmo sem saber ainda de nada.

- Fala, pelo amor de Deus, Lázaro. O que o padre Lara queria contigo? É sobre a Cecília, não é?

Apenas fiz um sinal com a cabeça e a abracei sem falar nada. As lágrimas desandaram em cascata. Deixei meu pai explicar tudo e me atirei sobre a cama.

Perto da uma da manhã, papai entrou porta adentro e ainda mudo me passou um pequeno saco com dinheiro. Não sabia a quantia, mas tinha certeza que ele suou muito por aquelas economias. Beijou-me o rosto e a cabeça e saiu.

Meu mundo a partir dali não podia ser só o Comandaí.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em carne viva XX !




A viagem à cidade era um alento para mim, sair um pouco da vila e me afastar dos rostos desconfiados. O Júlio já não era mais meu companheiro de viagem, pois seus pais o proibiram de andar comigo.
Eu estava na rua Marquês do Herval, em uma lancheria, onde o pessoal que morava para fora, como eu, almoçava em dias de compras. O cheiro de peixe frito exalava rua afora. Ovos em conserva e cachaça de alambique eram comercializados em grande quantia.
Eu estava sentado sozinho na mesa bem ao fundo, com as costas voltadas para a rua. Não queria conversa com ninguém. Usava um chapéu de aba larga enterrado na cabeça e sabia que era provável que algum conhecido com certeza aparecesse para bisbilhotar, afinal a notícia era manchete no jornal, onde um homem idoso que dividia a mesa comigo lia avidamente sobre o caso.
“MULHER SOME MISTERIOSAMENTE NO DISTRITO DO COMANDAÍ. POLÍCIA LIBEROU SUSPEITO E PROCURA MAIS PISTAS!”
Depois que ele desviou sua atenção para um enorme pastel pedi o noticioso emprestado. Menos mal que meu nome não havia sido divulgado, não que isso ajudasse muito, pois o boca a boca era rápido e em breve todo mundo já teria a informação. O delegado Nogueira em entrevista havia dito que não descartava prender-me novamente e que minha participação no caso ainda não estava bem esclarecida.
Em uma mesa próxima ouvi um homem exaltado falar para os companheiros:
- Vocês viram que soltaram o assassino da mulher lá no Comandaí? Pra que polícia então?
- Não soube. Mas por que será que soltaram?
- Parece que não havia muita prova e que o assassino era amante da mulher.
- Por que será que matou?
-O Castanha disse que a mulher não quis mais...
- Puta la merda. Vocês conhecem o marido?
- Eu conheço. É o Valdir Polozzi, que tem o bolicho perto da estação.
Eu havia comido um pastel e resolvi ir ao banheiro lavar a boca. Já não queria ouvir aquela baboseira toda e quando entrei no corredor, passei pela cozinha onde uma mulher com touca branca lidava na fritura dos pedaços de peixe. Quando fui dobrar para sair para a área externa coberta onde ficava o banheiro ouvi um chamado.
- Psiu, guri!
Me voltei e vi um moça de cabelos cacheados debruçada em uma janela.
-Oi!
-Foi tu que matou a mulher lá no Comandaí?
Era uma pergunta direta e me surpreendeu. Ela devia ter a minha idade e logo identifiquei traços do dono do armazém nela. Devia ser filha ou sobrinha.
- O que? Não entendi...
Ela riu.
-Não te faz. Tu és amigo do Júlio. Ontem ele esteve aqui e contou tudo.
Ah, o Júlio. Talvez fosse mais uma das moças da cidade que ele lançava seus truques de conquistador barato.
- Ele esteve aqui? Contou o que? – eu já estava com medo do que o bobalhão tivesse contado à guria.
- Disse que foi tu quem matou a mulher.
Não sabia se acreditava ou não naquilo. O Júlio embora egoísta e convencido era meu amigo desde criança e também tinha participação naquilo. Não seria capaz de levantar falso contra mim. Ou seria?
- É mentira, o Júlio não falaria isso.
Ela deu de ombros, como se pouco importasse se eu acreditasse ou não e fechou a janela como se aquela conversa nunca tivesse acontecido. Quem era ela? Senti vontade descobrir, mas a inquietação com a informação que o Júlio havia falado que eu era um assassino não me deixava pensar em mais nada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Em carne viva XIX !




- Delegado, como isso é possível? – perguntou o policial Valdemar.

O delegado Nogueira não tinha a resposta e provavelmente ninguém mais.

O rapaz magro, de tez morena, curtido do sol havia mergulhado no rio já faziam de cinco a seis minutos sem nenhum respirador artificial e ainda não emergira. O delegado finalmente disse:

- Tomara que eu não tenha feito uma besteira em ter chamado esse camarada. Já pensou se ele morre afogado? A responsabilidade é minha...

Eu estava de lado junto ao padre. Pelo menos haviam me liberado das algemas a pedido de meu pai que também estava junto. Foi uma surpresa quando o delegado anunciou que buscava o corpo de Cecília Polozzi nas águas do lajeado Santa Tereza. Isso surpreendeu todas as pessoas que tinham certo contato com o caso.

Eu estava muito tranqüilo e papai seguidamente olhava para meu rosto. Será que ele desconfiava que talvez eu realmente tivesse matado Cecília. Acho que não. O padre nada falava, apenas olhando ansioso para ver se o rapaz que mergulhou logo emergisse.

O delegado havia buscado o mergulhador no Carajá. Atendia pelo apelido de Bicho D água e era requisitado pelas autoridades e familiares de pessoas desaparecidas nas águas dos rios da região. Não tinha mais que vinte e poucos anos. Falava muito rápido e para entendê-lo era preciso prestar muita atenção. Havia sido criado certo misticismo ao seu redor devido a seus métodos exóticos, como a reza antes dos mergulhos e a bacia com a vela que largava na correnteza. Diziam que a bacia deslizava na direção em que o corpo estava , geralmente preso a galhos e entulhos no fundo do rio. Naquele dia, não havia realizado seus rituais, ao menos que eu visse, pois passei mal e tive que ir ao mato fazer minhas necessidades, com o policial Valdemar sempre me acompanhando.

O sol era escaldante e a camisa já estava grudando na minha pele, quando ele finalmente apareceu na outra margem e fez um gesto que iria mergulhar novamente. Parecia mais magro ainda vestindo somente um calção.

Valdemar estava de mau humor por ter de estar ali e não deixava dúvida quanto a isso.

- Que porcaria tu foi arranjar rapaz. Olha só a mobilização que se formou em torno de um ato idiota desses. – ele falava como que convicto da minha culpa.

Papai não se conteve.

- Olha lá como fala Valdemar, vocês estão se afobando e tentando achar um culpado para um crime que nem sabem se aconteceu. Meu guri não vai pagar o pato não...

O delegado interveio.

- Não quero saber de anarquia aqui. Calem a boca.

O padre tinha um olhar perdido ao longe e volta e meia também pousava as vistas em mim, como tentando compreender o que realmente estava acontecendo ali e como cheguei ao ponto de ser preso e suspeito da morte de uma pessoa. Minha prisão era ilegal, eu sabia, mas não me desesperaria, eu sabia dos riscos desde o começo.

Bicho D água emergiu agora junto a nós, respirou fundo antes de falar.

- Seu delegado, a água tá muito barrenta, mas acho que não há nada lá embaixo.

O delegado agora parecia cansado, ou perdido. Um leve maneio de cabeça denunciava sua decepção.

O padre indagou:

- Parece desapontado Nogueira...

Ele fez que não ouviu a provocação do padre e se voltou ao pequeno homem, que agora encharcado parecia ainda menor.

- Como assim, Bicho D água? Não achou nada aí? Me disseram que tu achava até uma agulha no fundo do rio.

O homem atropelando as palavras, rebateu.

- Não tenho como achar algo que não tá aqui.

Vislumbrei um sorriso no canto da boca de papai que anunciou em um tom até certo ponto insolente.

- Agora vou levar meu piá pra casa. Soltem as algemas. – e deu uma tragada profunda no cigarrão de palha.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Em carne viva XVIII !




Era a primeira vez que eu ouvia o padre Lara falar em um tom tão alto.

- Delegado, isso é uma arbitrariedade, além de ser ilegal manter o menino preso.

Eu não os enxergava. A cela ficava no fim de um escuro corredor. O cheiro de urina e mofo era quase insuportável.

Quando o policial Valdemar me jogou no interior da cela, eu estava tão assustado que não percebi, de início, uma forma amontoada em um dos cantos, na penumbra. Era um sujeito chamado Perereca, tipo miúdo, encardido, a barba rala e sebosa. Pelo jeito se tratava de um andarilho. Durante a manhã inteira ele tentou engrenar algum assunto, o bisbilhoteiro. Eu não queria falar, e embora deixasse claro isso, ele parecia não se importar.

- Deixa eu adivinhar o que um rapazinho tão alinhado poderia ter feito para vir parar nesta pocilga...matou alguém? Não. Pouco provável. Aposto meu velho cachorro Napoleão que não foi isso. Então o que será? Hum...mulher! Isso. Acertei, não foi? Tem rabo de saia no meio disso. Só uma mulher pode virar a cabeça de um homem a ponto de cometer uma loucura. Mas me diga, rapaz, como faço para um padre intervir por mim também?

A matraca e o catinga do homem eram equivalentes em grandiosidade e só se aquietou para mim poder ouvir a conversa do padre com o delegado depois que ameacei chutar seus dentes, se é que ainda tinha alguns, coisa que o coitado provavelmente era acostumado. Após alguns resmungos voltou sua atenção para o dedão do pé, onde passou a cutucar com um pequeno palito.

O padre continuava inflexível.

-Serei obrigado a acionar instâncias superiores. O menino Lázaro cresceu freqüentando nossa igreja e seria incapaz de cometer qualquer atrocidade.

- Padre, o senhor não se lembra do crime do sacristão em Cruz Alta? Ele também vivia dentro da igreja. Só descobrimos o corpo do homem que ele matou várias semanas depois, em uma cova rasa.

- O senhor não está sendo razoável, delegado Nogueira. Não há corpo nenhum, não há crime. A coitada da Cecília cansou dos maus tratos do Polozzi e foi embora. Apenas isso. Não havia nada que a segurasse aqui. Até os filhos lhe foram tirados.

- Não quero blasfemar, mas não entendo como esse guri conseguia... hum hum...o senhor mesmo como homem de Deus, me entende, não é?

- Cecília ainda não apresentava sinais tão visíveis da lepra. E era, ou melhor, é, por que ela ainda está viva,eu tenho certeza, uma mulher bonita. O único a não ver isso é esse perdido do Polozzi.

- Calma lá. – disse o delegado – o Polozzi tem esse problema com a bebida, mas é um trabalhador de sol a sol, sempre foi.

O padre foi mais direto ainda.

- Ele está preso fora das leis que regem esse tipo de caso, e embora eu não entenda muito sobre isso, amanhã mesmo trarei um advogado e vou levar ele para os pais. Além de representar contra o senhor no Estado.

- Padre, o senhor me perdoe, mas não vou liberar o guri antes de averiguar uma pista quente que um morador das redondezas trouxe até mim agora pouco. Até chamei ajuda de um homem lá de Entre-Ijuís e que estará nos acompanhando amanhã...e não me pergunte mais nada, pois não vai adiantar!

O mendigo Perereca não se conteve.

- Xiii! Agora cagou...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Em carne viva XVII !




Sem reação. Eu não pensava em fugir, até por que era impossível.

O Polozzi e o Neco bloqueavam completamente a porta. Vislumbrei a janela, quem sabe um ato desesperado, mas até abrir o postigo eles me picariam a facão.

Estava em um beco sem saída e havia grande chance de não sair vivo dali. Não haveria final feliz para aquela história. Muitas coisas passam pela nossa cabeça em momentos assim. Eu não teria sido egoísta com minha família, me expondo daquele jeito e metendo os pés pelas mãos?

Os dois apenas me olhavam, calados, como a cercar uma rês perdida no campo. O cabo do revólver do Neco a pontear a camisa de sempre.

Encarei os dois. Papai se orgulharia de mim. Não frouxaria. Estava realmente disposto a me jogar contra eles, mesmo desarmado.

Achei estranha a postura pouco agressiva dos dois e logo descobri o porquê daquilo.
O delegado Nogueira entrou acompanhado de mais um policial. Polozzi e Neco abriram caminho e o delegado já estava tão perto de mim que podia sentir o hálito de álcool em meu rosto.

- Eu tinha certeza que tu voltarias aqui. Era uma questão de tempo. Entrou em uma grande encrenca, rapaz. O Polozzi registrou o sumiço de dona Cecília e tenho fortes razões para achar que ela foi morta.

Ele só podia estar brincando, ou melhor, blefando. Como não respondi, ele prosseguiu:

- Os rumos da investigação foram para um lado que te colocam como único suspeito do desaparecimento dela.

Finalmente minha voz saiu.

- Espero que não seja baseado na conversa desses dois animais aí atrás.

Polozzi estava mais vermelho que nunca.

- Filho da puta! Fala o que tu fizeste da minha mulher...

Ia avançar contra o desgraçado, mas o delegado foi enérgico mandando os dois canalhas esperarem no lado de fora.

- Ah, Polozzi, me passa esse troço aí. –disse, apontando para a mão direita do gringo, que contrariado alcançou o relógio de bolso ao policial e se retirou, resmungando algo incompreensível.

Nogueira pigarreou e teve um acesso de tosse antes de continuar:

- Este relógio tem as iniciais do nome do teu pai, e tenho certeza que ele, correto como é, reconheceria como de sua propriedade.

- Um relógio é o bastante para me colocar como suspeito de um fato obscuro como esse, delegado? E se dona Cecília estiver viva e aparecer de repente? – perguntei.

Ele passou o objeto para o opulento parceiro que estava dois passos ao lado.

- Achamos algumas peças de roupas em um matagal próximo ao rio. O Polozzi reconheceu como sendo dela. Estavam rasgadas e com manchas de sangue.

Eu já não tinha tanta certeza que ele blefava. Talvez o próprio Polozzi tivesse plantado aquelas provas e o policial caído feito um patinho.

Ele continuou:

-Tenho uma linha de pensamento que casou muito bem com as provas materiais que temos por enquanto.

- E posso saber qual é? - me encorajei a perguntar.

- Tu e dona Cecília se tornaram amantes – diminuiu o tom da voz para Polozzi não escutar de fora- Sei que Polozzi abandonou um pouco sua responsabilidade de cuidar da mulher doente, foi aí que tu entrou na história, bancando o caridoso. Acho que ela foi tua primeira mulher e te apaixonaste. Ela deve ter percebido o quanto errou quando os boatos sobre as tuas visitas noturnas se tornaram mais fortes até que essa doença escabrosa que a próxima foi acometida. Ela te rejeitou e tu perdeste a cabeça e fez essa barbaridade.

- Que barbaridade é esta, delegado? –desafiei.

-Ainda não sei ao certo, piá de bosta, mas te garanto que na gaiola arranco uma confissão. Valdemar, leva esse estrume para dentro do carro.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Em carne viva XVI !




Minhas mãos estavam encharcadas. Eu não conseguia controlar isso quando estava nervoso. Secava continuamente nas laterais da calça.

Uma densa cerração impedia de visualizar completamente a casa. Tive a impressão de ver um vulto se mexer à minha direita. Procurei não fazer movimento algum e suspendi a respiração. Era um arbusto disforme que balançou os galhos com a leve brisa que não era suficiente para dissipar o nevoeiro.

O que me arrancou da cama em uma noite feia como aquela foi um pensamento repentino e que me deixou apavorado. Eu havia deixado o relógio de bolso de meu pai na casa dos Polozzi, ou melhor, na peça que servira de cativeiro para Cecília.

O delegado estava por vir de Santo Ângelo para vistoriar o local e buscar pistas sobre o paradeiro dela. Era para ter vindo no dia anterior, mas a chuva deixou a estrada intransitável.

Droga. Droga. Como eu pude ser tão bisonho a ponto de deixar um objeto com as iniciais do dono entalhada atrás. Eu estava perdido caso o policial viesse na manhã seguinte. Eu havia largado ao lado do catre de Cecília, junto à parede.

Um pânico crescente me acometeu e o ar parecia ficar mais rarefeito a cada movimento que fazia para vestir um velho pulôver marrom. Coloquei o chapéu de feltro que fora de meu avô.

Calcei um velho sapato que usava nas tarefas de limpeza e que era muito confortável.

Mamãe ouviu o rangir das tábuas do assoalho e gritou do quarto:
- O que se passa, Lázaro?

- Nada. Acho que o cachorro se enroscou com a corrente. Vou ver o que é.

- Passa o trinco na porta quando voltar.

Quando ganhei a rua, empreendi uma corrida frenética, buscando abrigo nas sombras das árvores. Os cachorros faziam uma enorme alarido por onde eu ia passando. Olhei para trás e notei que em algumas casas as pessoas iam acendendo os lampiões para ver o que estava ocorrendo.

Em certo ponto, atrapalhado pela neblina e a pressa, tropecei em uma enorme raiz de cinamomo e caí, batendo meu rosto em um toco pontiagudo. Imediatamente senti o líquido quente escorrer pelo meu rosto. Peguei meu lenço e fiz uma espécie de bandana, para estancar a hemorragia.

Andei mais uns trinta metros, agora com mais cuidado e logo estava em frente à casa dos Polozzi, que estava parcialmente coberta pela cerração.

O coração parecia que ia sair pela boca. Era pouco provável que alguém alguém estivesse ali, mas nunca se sabia. O arbusto parou de mexer e o vento cessou. Pulei a cerca e avancei costeando a lateral da casa, rumo à pequena peça onde outrora Cecília havia sido enclausurada.

Ouvi algo. Tipo folhas sendo pisoteadas. Não era possível. Talvez meus nervos estavam sendo traídos. Para piorar as coisas, a porta e as janelas haviam sido lacradas com ripas de madeiras. Eu havia levado um talhadeira, mas não ia ser fácil arrancar as ripas. Os barulhos cessaram. Talvez algum gato.

Foi menos trabalhoso que imaginei e logo consegui desbloquear a porta da frente.

Havia um cheiro desagradável e acre no ar. As coisas se encontravam da mesma maneira que eu havia visto alguns dias antes. Andei até a cama de Cecília e a afastei da parede. Para minha surpresa o relógio não se encontrava mais ali. Mil pensamentos e possibilidades passaram pela minha cabeça. Talvez eu houvesse perdido em outro lugar. Não. Foi ali que eu havia deixado.

Ouvi a barulhenta porta ser aberta. Polozzi surgiu bloqueando a entrada da escassa luz da noite e logo em seguido apareceu o Neco da Merência.

domingo, 1 de agosto de 2010

Em carne viva XV !




Os olhos de minha mãe estavam maiores que de costume, e segurava minhas mãos como que para eu não fugir.

-Por favor, filho. Diz que não tens nada a ver com essa coisa toda.

Ela era provavelmente a única pessoa que eu poderia me abrir e contar tudo, mas eu não tinha a menor vontade de fazer isso. Não falar talvez fosse a melhor resposta que eu poderia dar a ela. Não consegui mais ficar ali e fui tentando me desvencilhar enquanto ela ficava cada vez mais alterada.

- Tu vais estragar a tua vida. A polícia vai aparecer amanhã aqui e com certeza vão te procurar. Tu achas que eles são burros? Que não vão saber da tua ligação com essa mulher?

Eu estava realmente preocupado. A sensação inicial de uma aventura, agora era de medo. Mas nada me faria falar, eu havia decidido isso durante toda a madrugada em claro, junto a janela da cozinha. Os barulhos dos grilos e corujas pareciam mais que nunca amigáveis. Um vaga-lume voava nas proximidades do pé de bergamota. Ali era meu porto seguro, mas isso agora estava ameaçado, quem sabe se eu fugisse? Ouvi falar que em Ijuí, pequenas indústrias estão em ritmo acelerado de crescimento e sempre precisando de gente. Mas se saísse dali fugido seria como assinar minha culpa.
O alvoroço na vila era total. Quando Polozzi voltou para casa depois de dois dias na casa da amante, deu por falta de Cecília. Inicialmente deve ter imaginado que a mulher se rebelara mais uma vez e saído da clausura. Ao final da tarde e início da noite ele começou a procurá-la nas redondezas. Buscou informações nos vizinhos, e esteve até aqui em casa. Ouvi tudo de meu quarto. Meu pai foi seco com ele e Polozzi me acusou de estar envolvido nisso. Papai rebateu mandando que se retirasse do nosso pátio.

Faltou coragem para sair do quarto, de encarar meu pai. Não demorou e ele foi até a porta e me perguntou do seu jeito, muito objetivo:

- O que está acontecendo?

Eu podia tentar enrolar, mas sabia que era como provocá-lo.

-É loucura desse gringo. - menti.

Ele me olhou por longos segundos, como que a esperar que alguma expressão me traísse. Depois virou as costas e saiu. Ele sempre fazia isso quando se incomodava com algo. Ia para junto da horta e acendia o cigarrão de palha.

Eu tinha dois problemas imediatos. A polícia com certeza era um deles. Mamãe tinha razão. Os últimos fatos certamente os conduziriam a mim. Iriam pressionar para que eu falasse algo que os levasse ao paradeiro da mulher. Havia também a possibilidade do Polozzi armar outra emboscada junto a seus alcaides.

O círculo começou a se fechar.

domingo, 4 de julho de 2010

Em carne viva XIV !





- Como vai sua mãe?

O sotaque do doutor Braatz era carregadíssimo apesar de estar há muitos anos em terras brasileiras.

- Está bem. Apenas pegou uma gripe forte.

Ele gostava muito de mamãe e cada vez que visitava a vila, o chimarrão à soleira da nossa porta era obrigatório. As conversas geralmente recaiam sobre as diferenças entre a nossa cultura e a alemã, algo que foi um problema grande ao doutor em seus primeiros tempos nas Missões. Isso rendia muitas gargalhadas.

A decoração da sua sala era austera, em tons cinzentos e muitos livros espalhados pelos móveis do ambiente. Eu estava com dificuldade de expor o motivo o qual estava ali.

-Os ferimentos ainda doem?- perguntou.

-Na verdade não incomodam há algum tempo...

Ele me olhou sem entender.

- Doutor, tenho um assunto sério e talvez o senhor consiga me ajudar.

Ele retirou os grossos óculos e colocou-os sobre a mesa.

-Pois diga rapaz.

-É sobre a mulher do Polozzi...

Ele franziu o cenho, visivelmente contrariado.

- Vou ser bem direto contigo. Tua mãe comentou das confusões que tens arranjado. Isso é coisa que não te compete então procura não mexer com isso.
Dei um tempo, buscando argumentos para continuar o assunto.

-Gostaria de lhe fazer uma pergunta. É só isso.

Pegou os óculos entre as mãos e deu um longo suspiro.

- Tá bom, tá bom. O que é? Fala logo.

Eu não tinha certeza se era realmente aquilo que desejava saber.

- Ela tem chances de cura?

Devo ter colocado o velho alemão em uma situação que todo médico teme. Ele não sabia a resposta, não tinha controle sobre aquilo, mas procurou ser firme.

- Acho que sim, tomara. Estou cuidando muito bem dela, pode apostar. - olhou para a janela, de onde se avistava um que outro automóvel passando. – o problema é aquele imprestável do marido dela. A coitada ainda se recupera da surra que levou semana passada. Se continuar se incomodando assim, sua recuperação será muito difícil.

Como eu imaginava ela precisava mais que nunca de uma solução. Como eu farei isso ainda não sei, mas tem de ser rápido, urgente como o sentimento que me inquieta. Finalmente eu teria que enfrentar a situação como um adulto, com todo o ônus que cada atitude desencadeia. Poderei sim decepcionar algumas pessoas, entre elas meus pais, que são muito importantes para mim, mas é a prova de fogo e não recuarei.

domingo, 20 de junho de 2010

Em carne viva XIII !




O homenzarrão andava impaciente, de um lado a outro da sala, com as mãos para trás, em postura marcial.

-Impossível que não tenha reconhecido nenhum deles... – indagou.

-Já disse que estavam com lenços na cara. – respondi.

O lábio superior doía muito e parecia um balão, de tão inchado. Eu havia decidido que não contaria nada ao homem parado na minha frente. Fiz o Júlio jurar que não abriria o bico. Não havia por que eu conturbar ainda mais toda aquela situação. Deixaria o Neco e seu mandante acreditando que estava com medo, o que não era de todo mentira.

-Acho que pode ter sido o Chico Laçador... – jogou verde.

-Não era. Eu o reconheceria.

Não podia deixar o Laçador em apuros, mesmo ele sendo estúpido daquele jeito.

-Ele poderia querer se vingar da tua agressão na igreja. – ele era insistente, disso não havia dúvida. Seu nome era Vitão Lazzari, era da Brigada, e estava ali, na sala da nossa casa, a pedido de meu pai, que aproveitou a visita do gringo ao seu irmão, que estava de aniversário.

-Mas com que intuito iriam te atacar?

-Acho que para roubar. –falei.

Ele olhou para papai, que fumava seu palheiro junto à janela, para a fumaça esvanecer. Fez um sinal negativo com a cabeça e chamou o velho para conversar na cozinha, não se preocupando se eu ouviria ou não.

-Teu piá está mentindo. Ele sabe exatamente por que apanhou, só não quer falar. Como estou licenciado, não tenho como ir muito a fundo nessa história. Se quiser posso falar com o sargento Elpídio. Tenho certeza que ele resolveria rapidamente a questão.

Papai recusou e agradeceu ao soldado, para minha sorte. Esquecido o episódio eu teria como planejar alguma contra-ofensiva.

Aquele misto de medo e ansiedade era muito bom, por incrível que pareça. Eu nunca havia sentido algo assim, uma espécie de turbilhão de sentimentos. Eu teria que superar toda os dificuldades que minha pouca idade impunham se quisesse ajudar Cecília e a mim mesmo.

Eu passara as últimas duas noites imaginando alguma coisa que resolvesse, ou ao menos diminuisse o sofrimento dela. Embora me sentisse emocionalmente envolvido, já tinha decidido que após solucionar o problema, me mudaria para Santo Ângelo. Não havia como nosso amor se concretizar. Aliás, talvez esse amor seja só meu, pois ela em nenhum momento externou o que sente por mim

Amanhã irei verificar qual sua real situação, ver se está em condições dignas para uma pessoa acometida por uma enfermidade tão grave. Pensei em falar com o doutor Braatz, talvez o velho alemão possa cooperar em alguma coisa, além dos seus emplastos.

Papai veio até a sala para me proibir de sair pelos próximos dias, que eu era um encrenqueiro e "sossegasse o facho”. Ele era ruim em juntar fatos, mamãe também. Era tão fácil decifrar aquilo tudo. Eram elementos explosivos envolvidos:
doença, amor, ciúme e honra. Acho que esses livros que o professor João me empresta aguçam o pensamento.

Até demais.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Em carne viva XII !




O Júlio arregalou os olhos, incrédulo. O próximo deve ter imaginado que se tratava de um assalto, embora pouco se ouvisse falar por estas bandas, ainda mais o que tinha para roubar na carroça eram sacos de açúcar, banha, algumas rapaduras e uma pá, que papai havia me encomendado, além, claro, do presente de Cecília, um bonito vestido cor de vinho com alguns adornos nas mangas.Ainda fiquei devendo alguns réis que embuti na conta.

Meu amigo não prima pelo raciocínio rápido, e provavelmente não deve ter lembrado que comentei com ele, um dia antes, das prováveis intenções do Neco.

Na quebrada da curva, umas duas léguas do Comandai, no capão que a gente chama de floresta negra, dois sujeitos, com aquelas boinas de inverno, que são abotoadas abaixo do queixo, e um lenço a lhes tapar a boca e o nariz, empurraram um enorme tronco de ipê para o meio da estrada, bloqueando totalmente nossa passagem.

O Neco é tão relaxado, que estava usando a mesma camisa listrada de todo dia. Mandaram parar a carroça e o outro parceiro dele tinha um chimitão na cintura. Não consegui identificar quem era. Esse provavelmente era da cidade, algum alcaide da laia do Neco.

Não falamos nada e paramos.

- Tu... desce e vem aqui. – apontou para mim o Neco.

Desci e me aproximei com cautela.

- O que vocês querem? A carga? – perguntei.

- Cala essa boca, piá de merda, e não me interrompa enquanto eu estiver falando.

Tive impressão que o Júlio chorava baixinho, atrás de mim. Tive vontade de bater nele. Era sempre assim, na escola era eu quem sempre o defendia dos valentões. Era meu amigo, mas não passava de um medroso chorão.

- Hoje tu vais aprender a não mexer com a mulher dos outros, guri.

- Do que tu está falando? – me parei de bobo.

- Não te faz de louco que não és.

Apesar do lenço nas fuças, dava para sentir o bafo de canha do Neco. Ele estava uma das mãos para trás, e achei que também tinha uma pistola. Eu estava com medo de morrer, mas não ia dar o prazer ao cachorro de pedir piedade.

- Tu estás enganado. Não estou mexendo com mulher nenhuma. –tentei ser firme.

- Ah é? Continua te parando?

Ele levantou a mão que tinha escondida atrás das costas, com um trançado de oito, e baixou sem dó. O primeiro estouro me pegou no ombro. Coisa pavorosa a dor. Ajoelhei na hora. Ele continuou falando alguma coisa que não entendi. A sensação do estouro deve ser como uma facada. Até a respiração é cortada por algum tempo. Olhei e vi que ele baixava novamente a mão, e tentei me defender levando o braço. Foi pior, pois desviou a trajetória e pegou transversalmente no rosto. Parecia que eu queimava, que minha cabeça estava em chamas. Não sei como, se de pé, ou engatinhando, procurei me proteger debaixo da carroça, mas não evitei o ultimo laçasso, que me acertou a paleta. Aí não enxerguei mais nada, nem dor senti mais.

As lágrimas que escorriam pelo meu rosto marcado não eram de medo, mas uma reação fisiológica a dor. Tudo já não importava mais, e se eu levasse um tiro, a coisa não seria tão terrível assim, naquele momento. É curioso. É um momento tão extremo, que a morte se torna secundária. Eu já tinha lido algo a respeito.

Quando meu cérebro começou a se reorganizar novamente já estávamos entrando na vila, eu havia vomitado nas minhas pernas e as pessoas paravam para olhar nossa chegada, como a pressentir que algo estava errado.

domingo, 30 de maio de 2010

Em carne viva XI!





Quando se ama, confia-se na pessoa. Tem de ser assim. Confiamo-lhes o que é nosso. Senão, para que amar?

Eu tinha decidido que amava dona Cecília, aliás, Cecília (ainda é difícil chamá-la só de Cecília). Farei algo... alguma coisa para ajudá-la. Ela está cada vez mais isolada de todos.

O patife do Polozzi aplicou uma surra na coitada pelo episódio da igreja. Prevalecido. Parece que machucou-a bastante, segundo o doutor Braatz contou por aí. Senti ganas de matá-lo, quando soube, mas desta vez, por mais que o sangue fervesse nas veias, consegui me controlar. Eu confiava na Cecília, na sua postura de enfrentar todas as desfeitas que o povo daqui vinha lhe inflingindo. Ela não havia pedido ajuda a ninguém, buscando resistir sozinha a uma situação onde poucos não sucumbiriam. Eu confiava nela. Em sua casa, ela olhou nos meus olhos e disse: você é um homem de valor. Eu me sentia menino, mas passei dias pensando nessas palavras. Será que somente uma mulher que enxerga o mundo de longe, hostil a si, poderia ter uma visão mais privilegiada das coisas que a rodeiam?

Resolvi amá-la por isso. O Júlio diz que é fácil comprar meu amor, só que o sentimento já estava em mim há muito tempo, talvez desde quando era criança.

Meu amigo diz que sou louco, mas quem não enlouquece com as incoerências diárias do nosso distrito? Aqui, a maioria das pessoas pensam somente em seu bem-estar, o que não está de todo errado, acho eu. Só que não há resquícios de generosidade nelas. Vou ser injusto dizendo que é só aqui. Sei que o egoísmo é um sentimento universal, embora eu pouco conheça, além das fronteiras do município.

O Polozzi bebe muito, aliás, a maioria dos homens daqui tem esse problema. Geralmente, uma garrafa de canha os acompanha durante o dia. Alguns escondem, mas o bafo, ao falar, os denuncia. O vinho é muito consumido também pela gringaiada. Eu gosto do vinho, bebo de pouco, quando íamos à cascata. Os guris até exageram e começam a fazer estripulias na água. Mamãe briga com meu pai quando ele compra caninha, mas dias desses encontrei uma garrafa escondida no galpão.

O Neco da Merência anda rondando a ferraria, passa como quem não quer nada. Ele me olha de canto de olho, empurrando um carrinho de mão, vazio. Acho que pode estar a mando do Polozzi, para me assustar, na melhor das hipóteses. Já circulam boatos que freqüento a casa, quando aquele traste sai. Aqui, as notícias correm rapidamente, algumas verdadeiras, outras aumentadas no boca a boca. Bom, de qualquer forma, acho que o Neco quer me pegar de jeito, em alguma situação, para me bater. Se for isso, provavelmente em minha próxima viagem à cidade, amanhã, ele vai agir. O Júlio diz que estou paranóico, mas o coitado não enxerga maldade nas pessoas.

Vou comprar um presente para Cecília, raspei minhas economias, as quais junto a algum tempo, e vou em uma casa de comércio forte.

Ela ainda desconhece, mas não está sozinha.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Última parada!





- Mãe, o moço da imobiliária está aqui.
O velho era tão míope que não notou que aquele enorme homem, com um improvável casaco de nylon azul em uma tarde de calor como aquela, um imundo pano de prato enrolado na mão, parado à sua porta, não era exatamente o estereótipo do corretor de imóveis.
Vaso ruim não quebra. A máxima de papai havia se concretizado. O velho depravado tinha razão. Quando Cale caiu como um saco de batatas a seu lado, apostou todas as fichas que também partiria para uma nada agradável viagem ao inferno, afinal tinha um buraco na lateral da barriga e só dois dedos inteiros na mão esquerda.
Após atirar em Cale, sabia que precisava sair dali. Procurar ajuda. Mas precisava estancar a hemorragia. Virou-se com dificuldade e com todas as limitações que a obesidade lhe impunha, notou que havia levado um tiro na transversal. A bala entrou, atravessou a espessa camada de gordura e saído na parte posterior, não atingindo nenhum órgão vital. Engatinhou até a gaveta do balcão da cozinha, arrancou-a espalhando inúmeras coisas pelo chão. Achou o que queria. Uma caixa de lenços umedecidos, álcool e cola Super Bond. Fez duas buchas e trincando os dentes, jogou o álcool, obstruiu os orificios causados pela bala. Em seguida, gastou toda a bisnaga da cola. Pronto. Lacrado. Ia ver no que daria. Oito comprimidos de analgésico e já estava em pé. Amarrou o pano de prato como um torniquete na mão ferida, pegou a arma de Cale e abriu uma fresta na porta para vislumbrar o corredor. Nada.
Estava tonto, a pressão havia baixado devido aos comprimidos. Cambaleando, saiu com a pistola em punho dentro do bolso do velho casaco.
A sorte parecia ajudar. Em frente, caminhões de bebida abasteciam o Gaúcho. Oktober. Bueno, dessa estava fora.
Desceu pela Bento Gonçalves e apertou a campainha da terceira casa.
- Vamos entrar, rapaz. O sol não está sendo amigo.
Caramba, tudo estava conspirando a favor. Imobiliária. Pois sim, seria o moço da imobiliária.
- Liguei para lá e me disseram que mandariam alguém mais a tardinha.
-Estava aqui perto e aproveitei.
-Ah! Sente-se ali. Mãe, traz um cafezinho.
A estreita poltrona praticamente o entalou e os pés de madeira rangiram ameaçadoramente.
-Bom, quero vender esta casa e comprar um apartamento, o pátio é muito grande e somos só eu,a patroa e uma neta..
- O senhor poderia me mostrar a escritura?-precisava ganhar tempo.
-Claro. Só um momento, vou buscar.
Putz. A cabeça estava confusa e não sabia o que fazer. Poderia fazer os velhos de reféns em caso de cerco. Mas a princípio, parecia que ninguém notou sua incursão ali. Então poderia pensar com mais calma.
Vovó trouxe o café e logo foi ajudar a achar a escritura. Menos mal. Visualizou uma chave de carro em cima de uma mesa. Amaldiçoou sua incompetência Nunca fora capaz de aprender a dirigir.
-Aqui está. Note que área construida é enorme, e bláblábláblá.
Era enervante. O casal de velhos começou uma explanação acerca da história, das dificuldades para construírem a casa. Olhou para o chão e notou um filete de sangue correndo no vinco entre as lajotas marrons. Droga, o ferimento estava vazando. Era questão de tempo para notarem. A campainha tocou. Era a polícia, subjetivou. A mão sobre o cabo da pistola, dentro do bolso suava muito. Olhou para o chão e viu um enorme gato persa cinza e com uma gravata borboleta de bolinhas amarelas a lamber com gosto o líquido escarlate. A sorte estava do seu lado, por mais incrível que parecesse. A conversa amigável do velho na sala era com alguém conhecido. Um vizinho talvez. Estavam a se dirigir até ali.
Levantou-se e buscou o banheiro. Era uma casa antiga, mas bem conservada. Ficava no fundo do corredor. As vozes foram ficando mais distantes. Se fosse a polícia, estava fodido. Nem reféns tinha mais. Olhou para a janela do banheiro. Nem pensar, era muito estreita. Porra, e agora? As tripas se retorciam dentro do enorme ventre. Precisava defecar. Sentou-se no vaso e começou a repensar toda a situação. Tinha realmente como escapar? Podia tirotear com a polícia, mas tinha pouca munição, além de ser burrrice. Não!De burro já havia a piranha da Leila. Estava cansado e a possibilidade de se entregar começava a ser simpática. Alguém bateu à porta. O velho perguntando se estava tudo bem. Claro, não podia estar melhor. Havia participado do assalto mais fracassado da história, foi baleado, se viu obrigado a matar o melhor amigo. Bom, era bom o velho a matraquear ali, sinal que não era a polícia. Ou seria blefe para desentocá-lo. Notou que o papel higiênico havia acabado. Apenas mais um detalhe. Teve vontade de rir. Lembrou da chave sobre a mesa. Iria viajar. Isso. Argentina. Como um tango dramático.
Ao abrir a porta já enfiou a pistola na cara do idoso, o cano da arma lançou o óculos fundo de garrafa ao chão, despedaçando-o.
- Quietinho, vovô. Quem estava aí?
O velho, muito pálido gaguejou:
- A vi-vizinha, disse que houve um assa-sinato no sobrado da esquina...
- Ela já foi?
- Si-sim...
-Olha só. Estou armado,sou perigoso e se andar na linha, o senhor,sua velha e o gato canibal não se machucam
- O que você quer?
- Vamos viajar.
-O quê?
- O senhor vai me levar até a Argentina, para qualquer efeito sou seu sobrinho.
-Meu De-us!
Levou o velho até a sala e anunciou a situação à velha, que parecia mais controlada.
-Peguem material de primeiros socorros. A senhora vai junto para refazer um curativo. E analgésicos também.
A operação durou dez minutos.
O velho falou.
-Sinto muito, não posso dirigir...
-Que porra está dizendo?
-Você quebrou meu óculos.
-Merda, merda! Que porra. Bem azar de vocês, já viveram muito mesmo...
A velha intercedeu radiante.
-Nada disso,filho. Eu dirijo.
Após, carregaram todo o material e quando chegou na garagem teve uma surpresa. Um flamejante Maverick V8, laranja e com o capô e o teto pretos. Inacreditável. Será que a velha seria capaz de conduzí-los até a Argentina. Teria que assaltar uns três postos de gasolina até chegar na fronteira, para saciar a sede do velho Ford.
Sentiu um forte cheiro de merda. Era dele mesmo. Entraram no veículo. A velha no volante, o míope no carona, o gato vampiro a se lamber olhando para o pano sujo atado na sua mão, ele no banco de trás, com a pistola em punho.
- Vamos vovó. Pé na tábua.
A primeira puxada do carro devia ter bebido uns três litros de combustível
Saíram da garagem. A velha manobrou a esquerda e roncando grosso o Mavericão entrou na Marquês, atraindo os olhares dos passantes.
Errou duas vezes as marchas e quando acertou, chapou o pé no acelerador fazendo a dianteira se erguer um pouco. O gato cravou as unhas no banco. A velocidade aumentava gradativamente.Olhou para trás.O velho sobrado e o Gaúcho ficavam rapidamente distantes. A velha manobrou novamente e entrou na Sete de Setembro, sem reduzir. Perdeu o controle, subiu a calçada em direção à porta envidraçada da Igreja que ocupava grande espaço na grade televisiva. Uma faixa pendurada acima da porta dizia "Entre e encontre a libertação!"

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** Trecho de conto originalmente postado no blog http://totolunatico.blogspot.com/ em parceria com os escritores Roberto Kusiak e Zé Sérgio Bechler e que faz parte da trama "Machado,lona e alvejante...".

**Agradeço ao meu vizinho por ceder a foto do Felpudo,para ilustrar o conto.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Em carne viva X !





- Cuidado, rapaz. Tem muita gente te notando. Isso é ruim.

Mamãe confiava muito no seu Pedro. Ela arregalou os olhos, assustada. Eu tinha ido lá para benzer um “cobreiro” que havia surgido na parte interna do meu braço.

- Notando ele? É ruim, seu Pedro?

Ele entendeu a dúvida de minha mãe. Se era um conselho de amigo, ou algo espiritual.

- Os olhos estão sobre ele. Muitas energias agindo, a maioria lançada por pessoas egoístas.

Mamãe deu um longo suspiro, visivelmente contrariada com o rumo que a conversa estava tomando.

- O menino é forte. Deixa-me rezar mais um pouco por ele.

E veio com seus galhos de arruda e água benta. Havia um pequeno altar defronte à cadeira que eu estava sentado. Várias imagens adornavam, possivelmente ordenadas em escala de importância para o velho benzedor: Nossa Senhora, São Jorge com a metade da tinta já descascada, e Santo Antônio. O santo guerreiro me era mais simpático. Lembrava muito meu pai, com sua barba enrolada e a carranca de zangado.

Seu Pedro se empenhava, entoando um misto de Ave Maria com um cântico incompreensível, acima de minha cabeça, que começava a se encharcar com a água benta, jogada pelos ramos. Ele era moreno, cor de cuia, o sobrenome de origem alemã não combinava com a figura mestiça. Seus supostos poderes iam além dos ritos contra “rendimentos”, dores nas juntas e alergias na pele. O povo dizia que ele falava com os espíritos, o que levava muita gente a evitá-lo, com medo que de um momento para o outro,falasse algo incômodo.

- Tu vais ter que se cuidar... o homem com a cicatriz de estrela no peito não gosta de ti... – me falou, parando abruptamente a reza.

- Homem da cicatriz. De quem o senhor está falando?

Mamãe, antes que ele profetizasse algo ruim, foi me puxando pelo braço. Resmungou um breve “adeus” ao curandeiro e logo estávamos a caminho de casa.

- Velho caduco, já não fala coisa com coisa. – decretou. Ri baixinho. As coisas eram tão simples para ela. Bastava tirar uma conclusão definitiva e encerrar a questão.

Me contou que meu pai foi até a casa do Chico Laçador, para tentar “apaziguar”, após o incidente na igreja. Levou duas galinhas, já depenadas para um agrado. Imagino o quanto foi difícil para uma pessoa como ele. Realmente parti o narigão do cachorro em dois, que de tão inchado, parece uma batata. Ele não foi muito hospitaleiro com papai, e perguntou se eu havia enlouquecido, ou andava bebendo.

Não me arrependo. Fiz aquilo de impulso, mas com exagero. Acho que foi a primeira vez que as pessoas da vila me notaram realmente. Antes eu era o piá do ferreiro, agora onde passo, ouço falarem entre dentes “olha o filho do ferreiro”. Sempre detestei violência e é irônico eu estar sentindo essa espécie de regozijo com a agressão ao Laçador. As pessoas andam a falar de mal e de bem. Para mim não importa mesmo.

Logo depois de chegarmos em casa, resolvi fazer uma limpeza ao lado da ferraria e capinar o corredor que dá para nossa casa. O carro com um motorista que não conhecia passou em alta velocidade, jogando barro para os lados, em direção ao final da rua, talvez para a casa dos Polozzi, o que seria um péssimo sinal.


--------FIM DO PRIMEIRO CICLO----------

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

** Imagem da obra "Metamorfose de Narciso" de Salvador Dalí.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Em carne viva IX !





- Mas padre, não é justo...

Padre Lara suspirou e lançou um olhar de enfastio por sobre os óculos.

- As coisas sempre tem um significado. Cabe a nós sabermos interpretar.

Olhei para aquele homem gorducho, as mãos rechonchudas, os dedos curtos e grossos. Poderia me lembrar um bebê, não fossem os tufos de pelo.

- Teus pais estão preocupados contigo.

Não era para menos. O que havia acontecido no dia anterior, foi algo totalmente incomum em um lugar onde a calmaria era quase absoluta.

Cecília compareceu para assistir a missa dominical. Todos já estavam acomodados quando ela entrou. Primeiro, olhares de espanto, depois cochichos e murmúrios tomaram conta da igreja. Tudo convergia para a figura da mulher toda de preto. Era um luto? Acho que um luto para sua condição, suas limitações e infelicidades. Pensei em quanto a deixei feliz quando apareci em sua casa, e não demonstrei medo.

Ela avançou, o olhar distante, ignorando todos, que se encolhiam e recuavam, evitando sua aproximação. Encontrou assento na extremidade de um banco, à direita do altar, onde o único casal sentado, rapidamente levantou e ficou junto à parede.

Alguns mais exaltados já falavam alto, não se importando que ela ouvisse. "É louca!", "como o Polozzi deixou a leprosa sair de casa?", "irresponsável, colocando em risco até nossas crianças...".

O padre que até então parecia paralisado, resolveu abandonar o altar, e falar algo, que para mim era incompreensível, visto da distância em que estava, além de minha mãe a falar ininterruptamente ao meu lado. O padre gesticulava contido, mas dava para perceber que apontava a porta lateral, talvez sugerindo uma conversa do lado de fora.

Ela embora olhasse o padre diretamente nos olhos, não parecia disposta a sair, o que desencadeou reações mais hostis por parte dos fiéis mais próximos. O Chico Laçador, bruto como ele só,deixou a coitada da Maria só, e começou gradualmente a alterar o tom da voz enjoada, de bêbado. O padre notando que o homem estava prestes a partir para a agressão, tentou contê-lo.

Cecília não parecia intimidada. Manteve o mesmo semblante de alheamento que ostentava desde sua entrada na igreja. Chico puxou o lenço do bolso, um pano encardido, enrolou a mão direita com um gesto brusco, agarrou Cecília pelo braço, arrancando-a do banco, para o espanto de todos. Ela acabou se desequilibrando e caiu de joelhos, o que não abrandou a fúria do homem, que agora a arrastava deitada pelo corredor. Ela se debatia e gritava tentando se libertar.

Quando dei por mim, já havia pulado por sobre as pernas das pessoas mais próximas e desferido um soco no nariz do Chico, que esguichava sangue para todos os lados. Lembro do vestido da dona Iolanda, todo branco e esborrifado de sangue a olhar completamente incrédula.

O Chico forte como é, não acusou muito o golpe, exceto o nariz todo torto. Apenas dizia: "O guri do ferreiro me acertou! O guri do ferreiro me acertou!”.

A presença do padre ali na comunidade, segunda pela manhã cedo, era sem dúvida coisa da minha mãe. Ela deve ter pedido para ele conversar comigo, visto que papai não tinha muito jeito para a coisa.

- Padre, não aguentei quando vi o Chico arrastando a dona Cecília. Foi judiaria.

- Isso não justifica tua atitude bestial. Não é coisa de homem de bem. Quem faz essas gauchadas, esse tipo de coisa é o Neco da Merência, Deus que me perdoe. É isso que tu queres? Ser uma alma sem eira nem beira. Brigar dentro da Igreja foi demais. O que falta agora? Beber nos bolichos?

O padre era sensato, mas a vida que escolheu o impedia de entender certas coisas que para mim são latentes. Coisas além do sentimento fraternal.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Em carne viva VIII !





- O que você quer, menino?

Eu estava sentado em uma cadeira de palha, perto da janela. Não sabia o que responder à mulher, em pé, junto à mesa.

- O gato comeu tua língua?

Era surpreendente, que embora contaminada pela doença (se bem que, quando a trouxe de Santo Ângelo, em nenhum momento se referiu a isso), ela mantivesse aquela postura um tanto agressiva, como se ainda estivesse comandando alguma das brincadeiras a beira do rio.

Era um comportamento que intrigava. Não era comum mulheres agirem assim.

- Eu estava aqui perto. -tentei argumentar.

- E...

- Resolvi chegar para ver como a senhora estava passando. -a voz parecia não ser a minha.

- Eu o enxerguei no mato, desde as cinco e pouco. Por que não veio antes?

Eu não esperava aquilo. Precisava de uma mentira. Eu não poderia dizer que estava esperando Polozzi sair.

- Eu ia pescar, mas mudei de idéia, é isso.

A expressão de incredulidade em seu rosto, dizia tudo. Mas eu estava curioso para saber se ela tinha noção do que estava acontecendo, pois eu não sabia.

- O que tens nessa sacola? Não parecem apetrechos de pesca...

Como não esbocei reação, nem resposta, ela, decidida, contornou a mesa e parou próxima a mim, como a testar se me afastaria. Pegou a sacola que estava junto as minhas pernas.

- Olha só, o que temos aqui. O cheiro está bom.

O tecido da sua roupa roçou meu braço.

- Arroz, salame e broas. Está planejando fugir de casa, menino? -caçoou.

Não gostava quando me chamava de menino. Era maternal demais e me sentia cada vez mais diminuído naquela situação.

A peça construída não possuia nenhum armário ou algo semelhante, para armazenar alimentos. A mobília se resumia na cadeira, a qual eu estava sentado, a mesa rachada e ao canto, coberto por um mosqueteiro, o catre, com um bonito acolchoado na cabeceira. Imaginar que uma pessoa fizesse de seu universo aquele quadrado de madeira rústica era dolorido.

O cheiro de limpeza se misturava a uma leve fragrância de maçã. Era uma das águas de cheiro que eu tinha visto nas prateleiras do bolicho.

Ela não apresentava nenhum sinal visível da doença, embora usasse um vestido escuro de mangas. O cabelo castanho estava muito brilhoso, a face rosada. Os olhos tinham uma vivacidade que faltavam aos meus.

- É...para a senhora.

- Acha que estou passando fome, ou é uma gentileza?

Como tratar com uma mulher tão direta? Era uma pergunta sem resposta para mim, até então.

- Não! Eu nunca pensaria isso, vocês são comerciantes fortes, isso nunca poderia acontecer. Foi mamãe que pediu para trazer.

Outra mentira veio, mas sem eficácia. Ela pareceu indiferente.

- Então você fica para o almoço.

Não pude, nem queria recusar. Eu queria prolongar aquela situação de jogo por mais tempo. Meu corpo reagiu, excitado. Podia ouvir, sem esforço, as batidas do meu coração...

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* Este romance foi livremente baseado em uma carta, que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

terça-feira, 30 de março de 2010

Em carne viva! VII




Tenho um primo que é louco,ao menos, todos pensam que é, inclusive eu. Até o instante que me vi rondando a morada dos Polozzi. Eu estava mais louco que ele.
Toinho, filho do seu João, da marcenaria, esteve em minha casa, ontem à tardinha. O "vagal", em vez de descansar após o trabalho, vai jogar conversa fiada de casa em casa e tomar chimarrão. Ele trabalha na manutenção dos prédios do município e é zelador da escola, onde mora com a família. Não simpatizo muito com ele, pois tem o olhar desviado, não fixa o olhar em ninguém. Mamãe diz que pessoas assim são falsas. Contou dos boatos que correm pela vila. Polozzi teria construído uma peça, anexa à casa, para isolar dona Cecília. Além disso, vendeu toda a mercadoria e desativou o bolicho. Dizem, que anda enrabichado por uma chinoca, que mora no Mato Grande.Os vizinhos acham que o safado deixa a esposa enferma, sozinha, e inclusive com pouca comida. Meu Deus! Até onde vai a insensibilidade humana?
A infeliz foi afastada dos filhos, e agora, o marido arrumou outra. Imagino como a próxima está sofrendo. O bolicho deve ter sido fechado, provavelmente por falta de freguesia. Ninguém iria arriscar uma proximidade maior, com a ameaça que ela representa.
Não consegui dormir direito. Um ódio tomou conta de mim. Eu não sabia o que era isso, até então. Era um ódio contra Polozzi, contra uma doença que afasta as pessoas, e contra mim mesmo, por ter dezoito anos e não saber nada da vida.
A noite foi interminável. O que eu poderia fazer? Eu não tinha nada a ver com isso, eu não queria ter. Dona Cecília era uma pessoa boa, por isso que eu me indignava tanto com o sofrimento dela. Mentira. O que eu queria era outra coisa. Uma coisa que eu desejava, desde que a vi se banhando, nos fins de semana na cascata. Isso é normal. Eu quero que seja. Qualquer um desejaria uma mulher bonita como ela. Deus me perdoe. Como eu poderia desejar uma mulher, portadora de uma enfermidade dessas? Embora ela ainda não apresente maiores sinais, eu sei que a doença está ali, a lhe corroer lentamente a pele.
Poderia sugerir a minha mãe, ir até lá. Não sei se ela teria coragem ,mas seria um desencargo de consciência. Mas não é isso que quero.
O grande relógio marcava cinco horas, quando finalmente tomei o caminho da casa dos Polozzi, com uma sacola. Eu levava uma cambuca com o que havia sobrado da galinhada, que mamãe havia preparado na noite anterior (que, aliás, não comi muito), duas pernas de salame e broas de milho.
Dobrei minhas calças até os joelhos, pois havia ainda alguma lama, na ruazinha que levava até o final da vila, onde ficava o bolicho. A Estação Férrea estava iluminada por um resto de luz que emanava do lampião, quase sem combustível. O prefeito disse que voltaria a funcionar em quinze dias, assim que os trilhos defeituosos fossem removidos.
Eu contava com a escuridão, quando cheguei lá. Os cachorros ficaram agitados e resolvi me esconder no capoeiral, em frente às casas. Seria um desastre se algum cusco resolvesse me desentocar dali. O que poderia alegar,a uma hora daquelas? Caçar? Com uma sacola cheia de comida?
Havia realmente uma peça construída, junto à casa. E luz dentro dela. Uma coruja piou perto e me arrepiei. Mau-agouro? Eu ainda poderia dar meia-volta e regressar para a segurança do meu quarto. Minhas pernas pareciam fracas. Notei uma movimentação na lateral da casa. Um vulto indefinido. Pouco tempo depois, Polozzi saiu, com sua carroça e sumiu, dobrando na esquina da última casa. Meu coração disparou. Eu queria e não queria. Era contraditório. Eu sabia que as coisas não seriam mais as mesmas quando avancei. Os cachorros ,estranhamente pararam de latir. Olhei para as casas vizinhas, algumas ainda estavam com as luzes acesas. Tomara que ninguém tenha me visto. Senti as minhas pernas discordando da cabeça, e elas foram me conduzindo em direção à casa de Cecília Polozzi.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.