sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em carne viva XX !




A viagem à cidade era um alento para mim, sair um pouco da vila e me afastar dos rostos desconfiados. O Júlio já não era mais meu companheiro de viagem, pois seus pais o proibiram de andar comigo.
Eu estava na rua Marquês do Herval, em uma lancheria, onde o pessoal que morava para fora, como eu, almoçava em dias de compras. O cheiro de peixe frito exalava rua afora. Ovos em conserva e cachaça de alambique eram comercializados em grande quantia.
Eu estava sentado sozinho na mesa bem ao fundo, com as costas voltadas para a rua. Não queria conversa com ninguém. Usava um chapéu de aba larga enterrado na cabeça e sabia que era provável que algum conhecido com certeza aparecesse para bisbilhotar, afinal a notícia era manchete no jornal, onde um homem idoso que dividia a mesa comigo lia avidamente sobre o caso.
“MULHER SOME MISTERIOSAMENTE NO DISTRITO DO COMANDAÍ. POLÍCIA LIBEROU SUSPEITO E PROCURA MAIS PISTAS!”
Depois que ele desviou sua atenção para um enorme pastel pedi o noticioso emprestado. Menos mal que meu nome não havia sido divulgado, não que isso ajudasse muito, pois o boca a boca era rápido e em breve todo mundo já teria a informação. O delegado Nogueira em entrevista havia dito que não descartava prender-me novamente e que minha participação no caso ainda não estava bem esclarecida.
Em uma mesa próxima ouvi um homem exaltado falar para os companheiros:
- Vocês viram que soltaram o assassino da mulher lá no Comandaí? Pra que polícia então?
- Não soube. Mas por que será que soltaram?
- Parece que não havia muita prova e que o assassino era amante da mulher.
- Por que será que matou?
-O Castanha disse que a mulher não quis mais...
- Puta la merda. Vocês conhecem o marido?
- Eu conheço. É o Valdir Polozzi, que tem o bolicho perto da estação.
Eu havia comido um pastel e resolvi ir ao banheiro lavar a boca. Já não queria ouvir aquela baboseira toda e quando entrei no corredor, passei pela cozinha onde uma mulher com touca branca lidava na fritura dos pedaços de peixe. Quando fui dobrar para sair para a área externa coberta onde ficava o banheiro ouvi um chamado.
- Psiu, guri!
Me voltei e vi um moça de cabelos cacheados debruçada em uma janela.
-Oi!
-Foi tu que matou a mulher lá no Comandaí?
Era uma pergunta direta e me surpreendeu. Ela devia ter a minha idade e logo identifiquei traços do dono do armazém nela. Devia ser filha ou sobrinha.
- O que? Não entendi...
Ela riu.
-Não te faz. Tu és amigo do Júlio. Ontem ele esteve aqui e contou tudo.
Ah, o Júlio. Talvez fosse mais uma das moças da cidade que ele lançava seus truques de conquistador barato.
- Ele esteve aqui? Contou o que? – eu já estava com medo do que o bobalhão tivesse contado à guria.
- Disse que foi tu quem matou a mulher.
Não sabia se acreditava ou não naquilo. O Júlio embora egoísta e convencido era meu amigo desde criança e também tinha participação naquilo. Não seria capaz de levantar falso contra mim. Ou seria?
- É mentira, o Júlio não falaria isso.
Ela deu de ombros, como se pouco importasse se eu acreditasse ou não e fechou a janela como se aquela conversa nunca tivesse acontecido. Quem era ela? Senti vontade descobrir, mas a inquietação com a informação que o Júlio havia falado que eu era um assassino não me deixava pensar em mais nada.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Fábio! Vai revelando a história sem revelar mais que o necessário, mantendo o suspense.

Abraço!

roberyk disse...

Já vi um affair depois do pastel. Será que o guri vai entrar em outra confusão com a filha do dono da lancheria? Era só o que faltava.
Muito bom Fabio. Sempre surpreendente a cada capítulo.

E dizer que isso tudo começou com estresse........não adianta, talento é pra quem tem e não pra quem quer. Esta é a prova máxima.