segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O All Star vermelho!



*conto publicado no Jornal das Missões de 29/08/09

-Lázaro! Lázaro! Acorda que está na hora da escola.
A voz parecia vir do fundo, bem do fundo de uma caverna. Não se mexeu, apenas sentiu a sensação térmica baixar ao ter o cobertor e o acolchoado puxados e a janela aberta para a entrada da claridade.
Tentou entender o que estava acontecendo. Rosana devia ter se enganado, não era para a escola que deveria ir, era para a empresa. Só havia um pequeno detalhe- a voz era de sua mãe. Abriu os olhos lentamente para acostumar-se com a claridade, o teto de tabuinha azul-claro lhe era familiar. Que diabos fazia um teto de tabuinha azul-claro acima da sua cabeça? Era semelhante ao da casa que havia morado com os pais e a avó até os quinze anos, quando do acidente.
Definitivamente não estava entendendo. O certo era despertar com as linguadas da cadela Catita no rosto, a língua molhada e áspera. A cama com o colchão já deformado ao centro o fez sentir uma sensação de familiaridade. Por mais incrível que parecesse, o quarto onde havia despertado era o da casa dos pais. Não que isso fosse ruim, em absoluto. A complexidade da situação devia-se ao fato dessa casa ter sido demolida há vinte anos. Foi aos poucos reconhecendo uma a uma as peças da mobília. Lá estava o velho criado mudo com a gaveta e a portinha onde guardava seus preciosos gibis e tudo que julgava importante, a mesa com a velha máquina de escrever. O roupeiro de madeira pesada, que havia ganho de seu tio carpinteiro. E os pôsteres nas paredes. Lá estavam eles, Elvis, RPM,Ultraje.Sentiu um misto de nostalgia-medo.
Resolveu dar uma espiada pela janela. Não deveria ser mais que seis e meia, o tráfego na Marquês era pouco, mas avistou alguns Chevettes, Voyages e Monzas passarem com os faróis ainda acesos. A praça encontrava-se ainda na semi-escuridão devido às frondosas e antigas árvores. A calçada ainda não havia sido restaurada e refletia os primeiros raios do alvorecer em enormes poças d’água. Que porra de sonho é esse? Não podia negar que era um dos mais realistas que tivera até então, fielmente ornado de detalhes.
Resolveu levantar e testar até onde ia isso. Sentiu o corpo muito leve e os joelhos não lhe doíam mais. Caramba! Quanto tempo não sentia dor nos joelhos, principalmente no esquerdo. O cheiro que entrava pela fresta da porta era de bolinhos de chuva e café passado na hora. Coisas há muito não saboreadas.
Andou de chinelas até a cozinha, onde encontrou a mãe muito jovem, e a vó junto ao enorme fogão a lenha tomando chimarrão. A mesa já estava posta. Mas e o pai? Sabia que havia morrido, mas pela lógica do sonho que vinha tão exata até ali, devia participar. Sentou-se à mesa e começou a refeição, estava realmente faminto. Estranho até, pois depois de servir o quartel havia perdido o hábito e o apetite para o café da manhã farto.
Sua atenção foi dividida entre saborear o café e a observação de detalhes ha muito esvaecidos nos labirintos da memória. Enquanto segurava o pão tomou conhecimento da juventude do corpo ao vislumbrar os dedos finos e juvenis. Passou a mão no rosto e sentiu a pele lisa com pequenos e esparsos fios no queixo e acima da boca.
Notou um calendário de 1986, de uma loja de calçados com um enorme gato angorá na ilustração do mês de junho emuldurando a parede. Começou a fazer as contas mentalmente. 1986. Devia estar com quinze anos. Nossa! Sonhos não são tão reais assim. As duas mulheres não paravam de matraquear ao redor do fogão. Precisava ver se o mundo lá fora havia voltado ao ano da graça de 1986. Voltou ao quarto, vestiu a jaqueta de nylon preta, a calça de brim, o tênis All Star vermelho e passou pela cozinha em direção ao pátio. Já no portão ouviu a mãe gritar se não levaria os livros. Não respondeu e dirigiu-se à praça. Claro, ainda não havia sido restaurada. O banheiro emanava um cheiro horrível e de longo alcance, a calçada era irregular, mas a atração principal estava lá: o pouco sociável casal de jacarés e a horda de simpáticas tartarugas.
As pessoas começavam a passar apressadas e com o desastroso figurino dos anos oitenta. Seus pés formigavam de frio. Precisava explorar mais a cidade. Desceu pela Antônio Manoel e na esquina com a Marechal, deu com o Bar Continental. Que saudade do velho Continental, quantos pastéis e sorvetes secos o pai havia comprado para ele ali. Olhou para esquina de cima e avistou um caminhar conhecido e querido. Parecia ser o pai, mas não tinha certeza, vou lá. Não vou. Isso é um maldito sonho e só serve para me trazer recordações tristes.
De repente, um estalo repentino. O ano era 1986, estava no primeiro ano do segundo grau, e nesse ano foi colega da Aninha. Havia passado o ano inteiro contemplando platonicamente a menina sem coragem de abordá-la. Bem já que sonho não tinha testemunhas iria tirar proveito disso.
Subiu rapidamente até a esquina do Colégio Onofre Pires e se postou elegantemente, tirou do bolso um lenço que a mãe sempre insistira para levar para possíveis eventualidades, limpou caprichosamente os tênis All Star vermelhos e quando a garota passou acompanhada de uma amiga, falou em um tom surpreendentemente seguro:
"Aninha, preciso falar contigo..."

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Encontro Marcado!



Tudo aconteceu de forma surpreendente e bizarra, digamos assim.
Eu estava sentado no banco da praça Rio Branco ,lendo o jornal e curtindo o sol de setembro. Dez e meia da manhã. De repente, aquele baixote gordinho e careca sentou-se do meu lado. Sabia quem eu era, o que pensava e de onde conseguia dinheiro, o que era uma tremenda desvantagem para mim, visto que meu negócio era comprar produtos roubados, desde rádios para carro, dvd´s players, consoles de games e qualquer coisa que acendesse uma luzinha. Ficavam pouco tempo comigo, logo despachava para a vizinha cidade de Ijuí, onde o proprietário de uma eletrônica, pagava um preço razoável.
Minha rotina era sempre a mesma. Levantava nove horas, saía do hotelzinho infecto que morava há um ano, tomava um cafezinho com pastel no bar Chaplin, que ficava em frente ao moquifo. Depois, passava na banca de revistas e comprava o Correio do Povo. Procurava um banco na praça que me permitisse aproveitar o sol e ali ficava até às onze e meia,olhando a movimentação de pessoas e carros e fazendo um ou outro contato com meus fornecedores. A escória que circulava na praça era a de praxe. Prostitutas em fim de carreira, dispostas a engambelar algum aposentado que saísse do banco do Estado, gigolôs e vigaristas que sobreviviam com um golpezinho aqui, outro ali.
- Desembucha, o que tu queres? Indaguei ao baixote.
-Nada que não possas me dar. Quero tua vida, do início ao fim.
Não entendi porra nenhuma.
-Olha só, meu negócio é mulher. Vaza.
-Não é tão simples assim. Não entendeste. Tua hora chegou. Eu sou a morte e tenho te acompanhado todos os dias da tua existência. Deixei que vivesse e fizesse tuas escolhas, que, aliás, não foram muito felizes. Azar. Não costumo fazer concessões.
-Rá rá rá! Se realmente fosses a morte não te apresentarias em embalagem tão vulgar e patética.
-A morte, e também a vida são patéticas. O que esperava? Um encapuzado com a foice?
Comecei a me sentir desconfortável com aquele diálogo. O pastel frito em gordura saturada do Tonhão e a visão daquele nariz avermelhado e todo furado pela varicela começaram a embrulhar em meu estômago.
Resolvi entrar no jogo para ver até onde ele iria e o que realmente desejava.
-Tudo bem. Suponhamos que realmente você seja a morte. Sou católico, apostólico- romano, apesar dos meus pecados, que não são poucos, quero garantias de que posso me redimir.
-Garantias? – Foi a vez de ele rir alto. – Olha, tens que cobrar isso da tua crença. Nem eu sei o que te espera depois do momento derradeiro. Eu sou apenas o elemento que executa, nem mais nem menos.
Não tinha como negar que aquela figura repugnante falava com certa propriedade.
-Vou te falar uma coisa, amigo. Se for policial, vais te dar mal. Estou limpo.
-Não vim aqui para te prender e sim para te libertar. Vem comigo.
Levantou-se e saiu mancando...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O inverno que não acabou!



O inverno de 1965 ainda me acompanha.
Eu tinha vinte anos, era solteiro e minha última namorada havia me trocado por um militar nortista que havia sentado praça no Batalhão de Santo Ângelo. Me senti aliviado, pois a moça apesar de ser de boa família, não era muito bonita e tinha um temperamento difícil, mas no fim havia ficado um sentimento de perda.
No meio de julho acabei sendo demitido da fábrica de móveis por não levar jeito algum com as ferramentas. Várias unhas roxas devido à falta de pontaria com o martelo e o seu Andrade, proprietário e um exemplo de pessoa pacienciosa resolveu me mandar para casa antes que eu decepasse minha mão. Na verdade, eu só trabalhei nisso por pura insistência de meu pai, que não queria um “poeta sonhador” vadiando em casa com seus escritos. Uma injustiça da parte dele visto que eu era absolutamente incapaz de produzir uma estrofe ou rima por mais primária que fosse. Meu negócio eram ácidas crônicas dos quais os protagonistas eram figuras conhecidas da sociedade santo-angelense, claro, sempre com nomes fictícios. Poucos tinham acesso a esses escritos, entre eles estava meu amigo de infância, Pedrinho, que dava belas gargalhadoas fazendo comigo uma espécie de jogo de adivinhação sobre a identidade dos anti-herois, uma que outra namoradinha, e meu avô que sempre me incentivava a escrever mais e mais... mas aquele inverno o roubou de mim no início de agosto, aos oitenta anos. Perdi o chão, pois era para a casa dele que eu recorria após os desentendimentos com meu pai.
Naquela gelada noite de agosto, fui me deitar mais cedo que o costume e deixei meus pais na sala escutando no rádio A Voz do Brasil,pois estava deprimido e sem vontade de conversar.Sentia muita falta do meu avô e já questionava hostilmente aquele Deus que tornara, aquele inverno, o mais cinzento que eu já vivera. Perguntava-me o que mais poderia dar errado até a chegada da primavera em setembro. Desafiei Ele cobrando algo que suplantasse aquela sequência de fatos negativos e pelo menos levantasse um pouco meu ânimo.
Demorei até pegar no sono. Dormi muito mal e fui assombrado por antigos fantasmas, em um sono muito agitado. Às três e meia da madrugada levantei para ir ao banheiro, e pela vidraça da sala, notei que uma forte garoa caía insistente. Um frio penetrante invadia meus ossos. Após me aliviar, corri novamente para o quarto e como que, para me proteger do mundo, cobri até a cabeça com as pesadas cobertas.
Fui acordado com os gritos de minha mãe e da vizinha. Não entendi exatamente o que falaram, mas senti que era algo sério acontecendo. Rapidamente, calcei as chinelas e corri para a sala. A porta estava entreaberta e havia uma luminosidade incomum para aquele horário. A torneira da cozinha fazia um forte barulho devido ao forte jorro de água que minha mãe não fechara.
Devido ao pijama, coloquei apenas a cabeça no vão da porta, para verificar o que acontecia e me deparei com o deboche D´ele. Vislumbrei a mais fantástica imagem que meus olhos já presenciaram. Um véu de brancura começava a cobrir todo nosso jardim e a rua. Os carros já estavam cobertos por uma grossa camada de gelo e flocos de neve quase do tamanho de pétalas de flores se precipitavam sobre a manhã de Santo Ângelo. Minha mãe estava imóvel, de casaco de lã e o inseparável avental, olhando embasbacada, junto a uma tagarelante mulher que provavelmente passava na rua e parara para comentar o fenômeno. Como uma fênix ressurgida das cinzas, aquele inverno lançou em minha memória uma maravilhosa imagem, que até hoje mora no meu imaginário...

*Em agosto de 1965, ocorreu um fenômeno raríssimo. Nevou em Santo Ângelo das 07 hs e 30 min até às 13hs e 30 min do dia 20 de agosto. As casas, árvores e carros ficaram totalmente cobertos pela neve tornando as ruas da cidade uma paisagem européia. Para quem viveu aquele momento, foi inesquecível, e para os mais jovens, ficam as fotos como a que ilustra este post.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Despedida!




Rio de Janeiro, 10 de julho de 1959.


Querida Clara,

Venho através desta carta estabelecer o que a princípio é definitivo. Não mais retornarei à nossa amada cidade e consequentemente nosso enlace não mais se concretizará.
Não entenda isso como um fracasso da sua parte.O problema está em mim. Esse tempo que estou longe e a distância me fizeram avaliar o quão inadequado seria como seu esposo. Tenho idéia do quanto isso será difícil para ti. Toda a expectativa criada, nossas famílias envolvidas e as pessoas conhecidas que adoram a falácia, mas creia, isso é inexoravelmente necessário.
Podes ter certeza que provavelmente nunca encontrarei moça tão adorável e prendada. Não imaginas quantas noites passei em claro até tomar esta decisão. Dos motivos prefiro te poupar, mas não se culpe por absolutamente nada. Entenda isso como o que de melhor poderia acontecer e que lhe poupará de possíveis futuros sofrimentos.
O tempo que juntos passamos foi e será inesquecível para mim. O rapaz que lhe entregará esta carta é de absoluta confiança, piloto aqui da base, nosso conterrâneo de Santo Ângelo e voará até aí para visita aos familiares. Não me queira mal.

Adeus.
Sempre seu
Adolfo.


* A imagem acima é de um acidente aéreo ocorrido às 13 hs e 23 min do dia 11 de julho de 1959 em Santo Ângelo-RS quando um avião da FAB caiu após se enroscar nos fios da rede elétrica. Era tripulado por dois militares da base aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.Os dois morreram. Um deles, o Tenente Ivo Leão Werlang tinha o intuito de visitar seus familiares na capital missioneira. A suposta carta foi retirada junto a vários papéis em um malote, minutos antes do avião ser tomado definitivamente pelas chamas.

sábado, 1 de agosto de 2009

Errante!



Definitivamente aquele dia tinha iniciado mal. Seu abdômen estava inchado e doía, a boca seca ansiava por água, precisava muito de água, mas os pensamentos não se ordenavam. Não sabia exatamente onde se encontrava. Os olhos semi-cerrados procuravam obstruir a entrada da luz que causava uma dor contundente nas têmporas. A princípio não sentiu os pés. Tossiu com dificuldade e buscou apoio nos cotovelos para erguer o corpo e sentar-se. Reconheceu a marquise do banheiro público da praça onde abrigava-se das intempéries do tempo.A visão ainda borrada não localizou o saco com o que arrecadara na tarde-noite anterior. Alguém roubara. Tinha que se cuidar dos companheiros, pois naquela vida na rua não podia confiar em ninguém.
Ultimamente aquele pessoal generoso da zona norte havia diminuido a doação em dinheiro e lhe davam apenas pão, comida, roupas e remédio, o que era uma merda, pois não conseguia promover nenhuma orgia etílica. Ficava à mercê da boa vontade dos companheiros para beber.
Não estava bem. Durante o resto do dia se arrastou perambulando nas residências que ficavam nas redondezas em busca de alguém que lhe desse algum. Precisava de cachaça para pensar melhor e segurar a tremedeira que lhe tomava o corpo. Exalava um cheiro fétido e sabia disso, pois tinha defecado na roupa involuntariamente. Precisava banhar-se e trocar as roupas, mas o problema é que teria de caminhar umas quatro quadras até o asilo onde guardava seus poucos pertences e esporadicamente pernoitava e estava muito debilitado. Desistiu do intento e se atirou na sarjeta.
A noite se aproximava e com um esforço enorme, conseguiu cambaleante retornar até a marquise do banheiro da praça. Desabou junto à porta já fechada.
Não perdeu a consciência com a forte pancada do piso gelado na cabeça. Vaso ruim não quebra muitas vezes lhe disseram. Não havia encontrado o homem e a mulher que geralmente lhe acompanhavam naquela espécie de perambulação sem rota, regada a bebida e que geralmente resultava em brigas. Pelo menos tinha companhia. Quanto tempo estava nessa situação? Já não lembrava mais datas e nem se importava com isso, aliás talvez nada mais importasse a ele. Havia chegada naquela cidade a muito tempo com a esperança de encontrar vida digna e trabalhar em alguma das indústrias, sonho que se revelou intangível. Sua pouca instrução e a falta de "contatos" e conhecimento o empurrou para uma rotina de viver de "bicos", o último que lembrava além de catar papéis era a venda de verduras. Acabou vendo a cidade que lhe acenou com a possibilidade de trabalho minguar e ver suas fábricas aos poucos irem fechando suas portas e centenas de pessoas ficarem desempregadas e terem de ir embora, deixando aquela terra que embora não tivesse nascido ali, nunca encontrara povo mais acolhedor.
Estava encrencado. Tinha certeza disso. Aquela madrugada prometia ser a mais fria dos últimos tempos. O porém é que seu corpo não reagia e não havia onde ir buscar energia para se mexer. O único movimento que conseguia era com as órbitas oculares, que presenciavam a noite ameaçadora chegar. Talvez a ronda dos assitentes sociais o encontrasse ali. Eles haviam alertado todos cerca de três dias antes que um frio quase glacial se aproximava, mas ele ignorou completamente. Estava obcecado em recuperar a mulher, já estava ate disposto a dividi-lá com o outro. Talvez ela desse para ele, talvez conseguisse uma ereção, coisa rara nos últimos tempos. Sabia que se não conseguisse sair dali morreria de frio, pois não estava com roupas quentes e seus calçados haviam desaparecido.
Um tremor que começou tímido foi gradualmente aumentando e se tornou um violento sacolejar. Sentiu algo partindo ou desmanchando dentro do abdômen. Um gosto de fel invadiu a boca e a respiração foi se tornando esparsa. Irônicamente o frio foi desaparecendo e ele foi sugado para dentro de um túnel escuro do qual tinha certeza que não voltaria...