domingo, 28 de agosto de 2011

Go back!



O portão está aberto. Não é costume ficar trancado. Eu estou indeciso se entro ou não. O sol é de sonho, de uma luminosidade alaranjada e indecifrável quanto ao horário.

A casa de material, as grandes portas de madeira com entalhes tem detalhes característicos da arquitetura portuguesa do século dezenove. É central e tudo de importante fica próximo: prefeitura, bancos, farmácias, hospital (não quero lembrar).

Meu receio de entrar deve-se ao fato de ter semi-consciência de que ela foi destruída há muito tempo, embora estivesse bem sólida e um pouco sombria diante de mim.

“Não entre aí rapaz!” 

Uma voz sensata me aconselha ao ouvido.

”Não precisa disso. Já faz muito tempo...”

Realmente, eu não preciso, mas também não tenho controle. Quando me dou conta, lá estou parado diante da velha casa e naquele dilema (medo?). 

O pátio é enorme. Uma calçada circunda toda a casa. Tem também um enorme gramado e muitas flores por todos os lados. Coisa da minha avó paterna, que tem o nome de... Flora!

Entro reticente na porta lateral que dá para a cozinha e varanda. “Vó, quero pão com açúcar.” Eu não quero dizer isso, mas sempre é meu anúncio de chegada. Minha mãe tenta em vão corrigir isso, mas vovó cobre-me de mimos: ”Meu filhinho...”. O cheiro de patchouli chega junto com o abraço. É muito calma, mas escutei dizer que quando fica zangada é fogo. Como ela fala comigo assim? Tenho quarenta anos e não quatro. Olho para meu corpo e estou vestido com um macacão infantil.

Meu vô está sentado ao lado do fogão à lenha, não levanta da cadeira de balanço. Tenho que ir até ele, questão de respeito. Beijo seu rosto magro. Ele devolve e seu bigode pinica meu rosto. Não é dado a sorrisos fáceis, mas sei que sou o neto favorito. Depois do almoço eu vou acompanhá-lo em uma das suas caminhadas ao redor da quadra. Eu o imito. Mãos para trás, postura marcial, alto, cabelos e bigode brancos, contrastando com a pele morena, o terno escuro e a camisa alva, o chapéu de feltro preto. A faca com a bainha de prata, para picar fumo ou qualquer eventualidade (ele ia mesmo degolar o homem passou por cima de mim com a bicicleta?).

Era na enorme cozinha que todos se reúnem. Muitos. Tios, primos, vizinhos todos interagindo e conjecturando sobre tudo, desde política, planos até fofocas da cidade. Era sagrada no domingo à tarde a visita aos patriarcas. Meus tios não deviam mais estar ali, todos com saúde e novos.

A tia com o caderno de caligrafia me ensina a escrever meu nome com letra de imprensa. No seu quarto pôsteres dos artistas das novelas. Eu conheço todos, mas de alguns não lembro o nome. O quarto não tem porta, somente uma cortina estampada. Minha vó prepara agora bolinhos fritos e o burburinho de vozes parece aumentar. Reconheço a voz do tio Valdemar. Ele não suportou conviver as dividas, mas agora estava de volta.

O telefone na pequena ante sala exerce um fascínio sobre mim, mas ainda não sei mexer. Logo em anexo fica o enorme quarto onde a enorme cama de casal foi retirada para o velório do meu avô.
Sigo agora e já estou em uma peça central, que serve para guardar quinquilharias e uma velha máquina de costura e ao fundo, uma porta.

A porta que dá para um enorme e estreito quarto com a iluminação fraquíssima, três camas antigas, dispostas como em um hospital. Ali meu pai convalesceu até o fim. Não quero entrar. Será que ele está lá? Quem sabe uma reconciliação...

Não!

 Volto para a cozinha, todos estão lá. O clima é de alegria. Resolvo sair sem ninguém me notar. Não quero mudar aquela cena.

Volto para a claridade alaranjada e irreal do pátio e saio pelo portão.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O All Star vermelho!



-Lázaro! Lázaro! Acorda que está na hora da escola.
A voz parecia vir do fundo, bem do fundo de uma caverna. Não se mexeu, apenas sentiu a sensação térmica baixar ao ter o cobertor e o acolchoado puxados e a janela aberta para a entrada da claridade.
Tentou entender o que estava acontecendo.Rosana devia ter se enganado, não era para a escola que deveria ir, era para a empresa. Só havia um pequeno detalhe- a voz era de sua mãe. Abriu os olhos lentamente para acostumar-se com a claridade, o teto de tabuinha azul-claro lhe era familiar. Que diabos fazia um teto de tabuinha azul-claro acima da sua cabeça?

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O mundo soturno do Criador dos Sonhos!



Não era difícil fazer aquele caminho todas as noites. A nublaceira que poderia atrapalhar, na verdade era só parte do contexto. O caminho sabia de cor. Bastava apenas esperar a quietude da madrugada, onde o momento que lhe era mais propício ficava entre as três e seis horas.
Aquela pequena ponte arqueada sobre um pequeno córrego era o portal, se conseguisse atravessar, pronto, estava no inconsciente da pessoa adormecida.
A tarefa daquele dia era leve. Teria que criar todo o cenário para o sonho para um homem de quase setenta anos.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O velho!




Tudo inicia assim: eu comecei a ser chamado de senhor aos vinte e poucos anos, um fato que a princípio me aborreceu, e muito. Eu queria ser exatamente como os outros rapazes da minha idade, ter direito à diversão, bebedeiras e gurias. Tentei sempre conviver com a situação, pois logo vi que não havia como mudar aquilo. Os outros se dirigiam a mim como senhor e pronto. Nada que fiz adiantou. Mudei o penteado, a roupa passou a ser esportiva e até os óculos eu escondi bem no fundo da gaveta e pouco mudou, a não ser confundir meu velho cachorro Júpiter com um moleton preto jogado no chão do quarto. A única que se dirigia a mim como “tu” era minha vó, mas desconfiava que ela tivesse grande vontade de se dirigir mais respeitosamente a mim.

Então certo dia decidi confrontar minha sina. “O que vai levar hoje, seu Júnior?”

- Dois pães cacetinhos e uma margarina!

Foi um tanto doído. Aceitei o “seu” e não fiz nenhuma indagação. O dilema que vinha me atormentando há muito tempo, desceu que nem uma bola de meia, cheia de pregos goela abaixo.

domingo, 24 de abril de 2011

O fim do mundo!




A notícia se espalhou como fogo em um rastro de pólvora.
No início, boataria, alguém, um primo de longe, em passeio, havia comentado que em sua região era o assunto em voga. Dessa forma, chegou até o padeiro, que contou para o Antônio da venda, que por sua vez, passou para a Gertrudes do seu Adamastor, de onde toda a cidade tomou conhecimento. Mas era boato, coisa de gente desocupada.
Quando o fato se confirmou, através de um noticioso da capital, o restrito e limitadíssimo universo da interiorana Santo Ângelo, entrou em colapso total. O empório esvaziou suas prateleiras e o alfaiate não vencia a demanda de encomendas de ternos pretos. Seus Malaquias, o alfaiate, conhecido pela avareza e ganância, tinha sentimentos contraditórios. Nunca vira tanto dinheiro na gaveta do velho balcão. Viveria para usufruir a presença reconfortante dos mil réis embaixo do colchão?
Todos queriam estar bem trajados, afinal um evento cósmico, que poderia varrer a cidade dos mapas não era algo comum. A grande maioria dava como certa o fim de sua jornada na vermelha terra missioneira. Além dos ternos, a sapataria do Cosme teve um movimento nunca antes registrado, e o velho mulato obrigou-se a contratar e ensinar o ofício a dois magrelos que residiam na vizinhança. Os munícipes queriam aguardar a chegada do terrível cometa, com nome gringo, elegantemente trajados.
Seu Sá, para descargo de consciência, confessou ao padre o assassínio de três cães, que embora não primassem pela robustez, ladravam a noite inteira na Rua da Redução.
Dorival dos Santos, proprietário de uma loja de secos e molhados resolveu contar à devota esposa, que nas noites que saía para "fazer o balanço", na verdade, acabava caindo no porão do Chico Feio, onde andava perdendo muito dinheiro no carteado.
Etérea Fagundes tinha uma missão ainda mais penosa. Contar ao esposo a origem da alvura da pele do caçula Pedrinho.
Antoninho das Dores, o sacristão, vinha escutando o sibilar de um açoite e gemidos de dor, ao passar pela porta do aposento do padre Lara.
Bartolomeu Rezende, que junto com Floriano Bezerra e Nicolau Cortez representavam a "nova intelectualidade", também assíduos das boêmias mesas das casas mal-faladas e ateus fervorosos, foi visto rondando a casa paroquial durante vários dias, até que em um rompante adentrou com uma maçaroca de dinheiro nas mãos, atropelando as palavras e anunciando que queria comprar três rosários "para uma velha tia".
Bonifácio Gomes, funcionário do correio, de compleição magra, escasso de carnes e olhos de rato assustado, tirou as roupas, dobrou-as meticulosamente, e colocou-as sobre uma pedra. Em seguida, entrou nas águas frias do rio Ijuí, e foi caminhando até submergir totalmente, ignorando o fato de nunca ter aprendido a nadar.
Juvêncio Dias, pequeno criador de porcos no extremo leste da cidade, resolveu não mais matar os animais, iria a partir dali consumir só o que havia na despensa.
Antero Pitta, notório negador de contas, abriu o cofre escondido abaixo do assoalho do seu quarto, e retirou uma grande quantia. Iria, na tarde seguinte, fazer "um acerto, mulher!" com a imensa lista de credores.
Seu Gideão Varella,octagenário plantador de verduras, juntou os pertences mais necessários e os colocou na carroça junto à sua velha. Iria passar "uns dias!" na pequena propriedade rural para os lados do Comandaí, que se localizava em uma baixada. Talvez "a cauda do bicho não conseguisse atingí-los com rabetiada fatal".
E assim, as abnegadas almas, que residiam em Santo Ângelo Custódio, daquele inicio de século XX, esperavam ansiosos e tementes o seu fim do mundo...

domingo, 3 de abril de 2011

A encruzilhada!



E quando o vigor deu lugar ao torpor,
surgiu-lhe um encapuzado:
-Peregrino, diz-me já:
onde é que
ficará esta terra chamada El Dorado?

Poema declamado em um antigo filme de Howard Hanks



O limbo era ali.

Uma zona espessa, onde os movimentos tinham algo de slow-motion. O azedume ácido da língua descia até o âmago fazia crer que vida era algo como o equilibrista na corda bamba, entre duas montanhas em dia de ventania.

As coisas já não eram tão importantes, ou talvez fosse apenas uma sensação ilusória devido ao gim (não lembrava de ter bebido). Conseguia avançar sem medo e isso se fazia estranho, pois o sentimento era recorrente há muito tempo.

Os becos e vielas se sucediam, estranhas, embora um senso de direção o guiasse rumo a um destino já estabelecido.

Havia uma movimentação grande atrás de si e rostos diversos pareciam conhecidos, e conversavam sem parar. Não entendia o que diziam, mas seus gestos largos induziam a uma luta, de imposição.

Ao contrário do seu passo decidido, embora trôpego, eles pareciam perdidos. Um velho de olhos muito grandes e sérios (não seria seu avô?) tentou colocar em suas mãos um par de sapatos, muito brilhosos. Retrocedeu, mas o ancião insistia, grunhindo algo, os lábios trêmulos cobertos pela barba branca. Conseguiu tapeá-lo com uma quebrada de corpo e dobrou em uma esquina muito mal-iluminada.

O som das vozes foi ficando cada vez mais longínquo. Fazia força para os olhos se acostumarem com aquela penumbra. As pernas estavam cada vez mais pesadas e procurou auxílio na grade da lixeira para subir o meio-fio. O cheiro agora era de naftalina. Olhou para as roupas e notou que não eram as costumeiras e ficavam grandes demais. Onde diabos arrumara aquele traje com chapéu? Não era a vestimenta ideal para aquela situação, sabia ele.

Olhou para trás. O caminho havia se modificado, não era mais o que o trouxera até ali. Pensou em voltar, mas não havia como. O momento havia chegado. O que carregava de valor estava dentro de si. Seria suficiente para o ajuste?

Lembrou rostos, situações, passagens que outrora não pareceram tão importantes, mas que agora faziam sentido como uma peça- chave do tabuleiro. Foi um mau jogador, percebeu. Perdeu muito mais que ganhou.

A encruzilhada agora era eminente. Embora não visse, sentia que estava a poucos metros. Dali tudo que viesse depois era mistério.

Talvez o jogo recomeçasse.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Vento só!



Olhava o pampa, a planície aparentava estar “suja”, devida à chuva torrencial do dia anterior e deixava o tapete verde enlameado. Até as vacas pareciam um pouco desbotadas naquele cenário deprimente. O sol vez por outra tentava escapulir por entre nuvens. Não choveria mais, afinal esfriara um bocado e teve que vestir o velho e confortável pulôver. Buscava um pouco de consolo, mas aquela sensação de desamparo continuava.

Será que ele voltaria? Difícil prever, e no fim das contas de que adiantava se martirizar? O que era dela estava reservado, como a mãe sempre opinara. Quanto tinha de razão era um mistério, afinal muitas das previsões que a genitora tinha feito até ali, ela já na beirada dos trinta não tinham se confirmado, aliás, se realmente conseguisse enxergar um pouquinho adiante, não tinha deixado seu pai arrumar uma mulher na cidade e lá deixar parte dos parcos ganhos na lavoura. Tinha ganas de jogar isso na cara quando a mãe vinha com toda aquela balela, uma conversa que sempre convergia para que ela ficasse aprisionada o resto da vida ali.

Quando o médico que fazia a visita mensal ao distrito apareceu, tomou o susto. Não era mais o velho Lauri. Iria sentir saudades do velho e bonachão Lauri, o bigodão acinzentado encobrindo por completo a boca, as reprimendas para que seguissem suas prescrições à risca, quase um ralhaço. Aposentou-se e deixou um grande número de amigos por aquelas bandas, sem dúvida. Muitas vezes voltava para a cidade com o velho Ford abarrotado de abóboras, verduras, salames. Tudo presentes, uma forma, talvez a única de aquele povo agradecer para uma pessoa que fez tanto para a localidade.

Então a surpresa.

O novo médico, aparentando pouco mais de vinte anos (“será que esse piazote resolve as cosas?”-o pai indagou depois). De uma gentileza exacerbada no trato com as gentes, muitos ignorantes e brutos, sempre tendendo a questionar suas observações, coisa inerente ao lugar. O velho Lauri não frouxava:”Te aquieta,animal,ou tua pressão vai subir mais...”, mas o rapaz, com os olhos plácidos e um paciência pouco comum à idade, buscava em uma linguagem acessível, enfiar naquelas cabeças duras que precisavam se vergar ao diagnóstico.

Foi assim que chegou até sua casa. Humilde, explicando que estava temporário atendendo a localidade, até vir um doutor em definitivo e se estava tudo bem. A mãe tagarela, buscando relacionar parentesco para o rapaz, os olhos dele buscando sua presença silenciosa no canto da cozinha enquanto a velha continuava a disparar aquelas coisas insuportáveis. Andava ela amolada com uma ardência no estômago. Veio a calhar e serviu de motivo para ser examinada na sala. Levantou a blusa e deixou que auscultasse e fizesse algumas perguntas. Era esperança que fosse para permanecer junto algum tempo mais. Será que era tão atencioso assim com todas?

No mês seguinte voltou para saber se tinha melhorado e lhe trouxe uma caneta toda trabalhada para que escrevesse seus poemas (ele tinha visto alguns rascunhos na visita anterior). O pai já olhando com simpatia aquela situação, afinal ela já estava passando do tempo, como o velho dizia à mãe, alto para que ouvisse do quarto. Que culpa ela tinha se ali naquele cu do mundo não havia um imprestável que pudesse desviar o pensamento para outras coisas senão plantio, cavalos, arado e essas coisas?
O doutor avisou que talvez fosse a última visita, outro médico já havia sido contratado, mas quem sabe voltaria para um mate. De novo a incerteza, companhia constante e muitas vezes cruel naquelas paragens.

Um vento frio assoviou em seu rosto.

Encolheu-se e relutante fechou a janela de madeira bruta.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Um estranho na multidão!




Os rostos são estranhos. Talvez por eu ser um estranho. Passam rapidamente por mim. Curiosamente procuram um contato visual e encontram o obstáculo do meu impenetrável óculos escuros. A calçada é estreita para o enorme fluxo de pessoas. Workholics apressados fazem malabarismos improváveis para ganhar tempo e dianteira dos demais. Filas quilométricas saem das lotéricas. Máquinas de sorvetes e expressões ansiosas aguardam a vez. Artesãos ambulantes sentados no meio fio exibem suas obras em tapetes estendidos no chão.
O fato de eu não gostar do olho no olho não denota falsidade. A viagem é outra. Observar e estar protegido de um possível intruso. Meu olhar poderia me denunciar? É bom não arriscar.
O velho sentado em uma dessas cadeiras de abrir na esquina do banco me puxa pela camiseta "tenho todo tipo de ervas e chás para qualquer enfermidade, filho!". Sorrio sem responder. E as doenças da alma, o senhor sugere o quê?
Apresso o passo. Os primeiros pingos de chuva na abafada tarde de verão se precipitam sobre a multidão. Me abrigo debaixo de uma marquise da loja de eletrônicos. Sou espremido contra o vidro da vitrine por pessoas tentando não se molhar. O jeito é esperar Olho para dentro da loja e vejo um gestual vendedor fazendo uma explanação provavelmente sobre as vantagens que aquele casal do interior vai ter em adquirir a reluzente máquina de fazer pão. Um corpulento senhor pisa no meu pé direito. Porra! Foi-se a minha unha. "Desculpe!". Resolvo continuar minha andança, mesmo com chuva. Agora os poucos que se aventuram a confrontar os pingos agora gelados me olham com mais curiosidade. Ah, os óculos escuros! Sinto muito, mas não estou preparado para o mundo e suas cores reais. O cabelo gruda na minha testa, a camiseta nas costas.
Quanto vale uma vida normal? A vida como a que essas pessoas que se assustam com uma chuva revigorante dessas? Ou que vivem uma constante disputa contra um adversário que sequer conhecem? Bem, eu já não luto mais. Decidi trazer o adversário para o meu lado. Observo e isso me basta. "Olha o arco-íris!”. Não enxergo por causa dos óculos escuros e as cores são muito fortes...

domingo, 6 de março de 2011

Janis tem uma arma !



A vida de repente começou a passar como um filme em sua cabeça.
O corpo todo doía. O que havia restado dos dentes da frente estava frouxo, as costelas provavelmente estavam quebradas, pois cada vez que tentava inflar os pulmões era como se milhares de pequenas agulhas lhe penetrassem o tórax. Uma das orelhas havia sido rasgada e os lábios deformados ajudavam a deixar sua face com aparência de boneca inflável. Sentiu vontade de rir, mas a dor era intensa.
Em cima da cama, fotos de quando ainda era um menino, usando aqueles calções de futebol listras dos lados, verde. Era um estranho no ninho. Seis irmãos, todos homens, todos mais velhos, todos machões. Só ele daquele jeito. Como uma coisa dessas pode acontecer? Ainda lembrava o pai, com aquele bigodão, levando as mãos à cabeça e olhando para o teto de tabuinha, como a questionar um deus muito citado pela mãe, superprotetora. Ele era frágil ela sentia dever de protegê-lo. Como um ser como ela pode ter vivido tão pouco e deixá-lo entregue à própria sorte?
Na outra foto tinha uns quinze anos, o cabelo na altura dos ombros e as feições delicadas já o distinguiam dos outros meninos. Estava em um acampamento de férias. Lembrou com vivacidade o professor de Ciências entrando na sua barraca depois da fogueira e da roda de violão. Ele o compreendia e não precisava ter medo, mas não contasse a ninguém.
Em outra, tirada por um amigo igual a ele, na rodoviária. Tinha uma expressão de felicidade com uma mochila nas costas. Era estranho, ele nunca fora feliz e ali naquele retrato não se reconhecia. Estava de partida naquela ocasião. Apenas poucas vestimentas e cem cruzeiros, último gesto “benevolente” do pai: “Suma daqui. Você é uma vergonha para nossa família.”
A mãe já não estava mais presente e tinha sido o único elo com aquele lugar. Partiu decidido. Que se fodessem, desgraçados. Nunca precisou deles.
A cidade grande, a grande prostituta, como ouvia o pastor falar, era um organismo vivo pronto para engolir quem quer que fosse. E assim foi.
Sobreviveu fazendo programas com taxistas nas imediações de um hotel do centro. Apanhou por vezes, lhe tomavam o dinheiro, mal conseguia comer e morava embaixo do viaduto.
Foi então que surgiu o Serjão. Primeiro lhe aplicou uma surra terrível por biscatear e não repassar uma comissão, afinal a área era dele. Todo mundo temia o Serjão, desde prostitutas, vagabundos e até gigolôs menores precisavam do aval dele para aplicar pequenos golpes, se prostituir ou apenas vender bugigangas.
Certo dia olhou o Serjão deitado na cama, fumando, o peito muito peludo e a tatuagem de tigre no ombro e resolveu perguntar por que havia escolhido ela. O Serjão deu de ombros e depois de uma longa baforada disse: “não preciso dar explicações para traveco...”
O gigolô financiara tudo, duzentos e cinqüenta de silicone, tratamento com esteticista, lentes de contato, bronzeamento artificial, mega hair e a honra de ser sua “esposa”. Se contasse que o Serjão gostava de dar também, o mataria sem dó.
Foram três anos de uma vida como até então não conhecia. Até diarista tinha. O Serjão às vezes sumia dois ou três dias e quando voltava, passavam horas e horas na cama. Era outro homem, uma pessoa de sentimentos.
Aí chegou o pesadelo. Traficantes de peso resolveram assumir a área e todos os negócios escusos da região. O Serjão violento como era, não entregaria de mão beijada um negócio que ele forjou a ferro e fogo. Acabou matando dois deles. Tiveram que se esconder no subúrbio. Ele planejava mais duas ou três ofensivas e eliminaria “os cabeças” como se referia aos inimigos.
O troco aconteceu quando foram a uma pequena padaria comprar leite. Foi tão rápido que não tiveram como reagir. Um Ômega preto, três homens armados até os dentes os “convenceram” a entrar no veículo.
Um depósito de combustível adulterado, o Serjão preso a uma cadeira. Os traficantes queriam de qualquer maneira os “pacotes”. Começaram a torturá-lo, sua face aos poucos se transformando em uma massa disforme e ele firme. Resoluto em não falar. “Então não vai contar? Olha o que vamos fazer com tua mulherzinha...”
E avançaram sobre ela.
Foi um misto de curra e tortura brutal, onde usaram até um cabo de vassoura. Um dos desgraçados arrancou um brinco, deixando a orelha partida em duas. Quando pensou que não agüentaria mais, um dos homens notou que o Serjão não respirava mais. Então usou as forças que lhe restavam e se embolou com um deles. Conseguiu tomar a pistola. Dois tiros. Não sabia que atirava tão bem, ou talvez fosse apenas sorte. Matou dois e o terceiro se protegeu atrás de um pilar. Arrastou-se até o carro, dirigiu por trinta metros e resolveu atirar nos enormes tonéis de gasolina. A explosão foi de proporções cinematográficas que acompanhou pelo espelho retrovisor.
De novo o quarto. As fotos e a lembrança do Serjão.
Era uma sobrevivente, desde quando tinha lembrança. Continuaria subsistindo, por bem ou por mal, quisessem ou não.
Levantou-se com dificuldade, foi até a geladeira e colocou gelo dentro de um saco.
O lábio e a gengiva ardiam em fogo.
A partir dali seria chamada Janis Três Tiros.
Havia oito quarteirões que precisavam de um novo patrão...

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*Conto também postado no site Esquina do Escritor/Beco do Crime

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Chico Piau!






Que Chico Piau fosse um lobisomem todo mundo sabia, ou melhor, desconfiava. O homem morava em casebre de madeira e era o vigia da pedreira, que ficava a uns dois quilômetros da cidade. Naqueles tempos não havia o asfalto e as estradas eram de cascalho.
Eu não passava de um menino, tinha onze ou doze anos e a dimensão que as coisas tomaram podem bem ter sido fruto de uma prodigiosa imaginação que me levou mais tarde a ser escritor, embora eu não acredite muito nisso.
Era uma época onde a ditadura militar impunha uma restrição ao pensar, ao imaginar, e isso fazia com que muitos acontecimentos cotidianos tivessem várias versões, escapando por vezes ao controle.
Eram fantasmas que sempre batiam às nossas portas, como uma ameaça invisível, sempre pronta a nos engolir. “Cuidado com a língua, senão esses milicos cortam fora...” meu pai dizia a um irmão desbocado que esbravejava contra tudo e todos.
As coisas começaram a ficar estranhas no inverno de 68, se não me engano. Um andarilho conhecido de todos, chamado Fuinha na cidade sumiu por vários dias. A princípio ninguém deu falta do pobre diabo que sobrevivia de doações de alimentos de porta em porta, ou se deram falta, não atentaram para a gravidade do fato até o corpo ser encontrado mutilado perto dos trilhos do trem, em um matagal.
As autoridades deram por um ataque de leão, visto que um daqueles circos miseráveis que pulam de cidade em cidade abandonou um felino já muito velho e que não conseguia desempenhar os comandos do adestrador. O fato que as autoridades não levaram em conta, ou não quiseram levar, é que o animal nem dentes tinha mais e as unhas haviam sido extraídas em um ato de barbárie.
Os dias posteriores ao ocorrido foram de grande agitação, muitos já querendo formar milícias para ir à caça do velho leão. Os policiais e alguns moradores mais antigos acabaram encontrando a carcaça do animal em adiantado estado de decomposição dois dias após a morte do Fuinha. O delegado preferiu enterrar o bicho e dar por encerrado o caso. Mais tarde entendi que em se tratando de coisas que despertam o medo ancestral da humanidade, o homem prefere achar uma solução fácil e que tenha uma explicação lógica.
Dois meses se passaram e uma criança, que morava na periferia da cidade sumiu e aí sim, o medo entrou em cada casa como uma sombra e transformou as noites dos moradores da cidadezinha um espera silenciosa. A ameaça invisível podia chegar a qualquer momento.
Hoje eu poderia lembrar tudo àquilo com tranqüilidade, pois a maioria dos acontecimentos ruins que nos atingem em criança, a vida adulta e suas responsabilidades tratam de abrandar e transformar isso em uma coisa que cause em certos casos boas gargalhadas. O que me preocupa é que até hoje suo frio quando penso naquele episódio.
O que conto aqui são as impressões de uma criança de doze anos e que insiste em continuar aqui, dentro da minha cabeça, exatamente, detalhe por detalhe como ocorreu naquela noite horrorosa.
Uma tardezinha depois de muito futebol com uma bola feita de jornal dentro de uma velha meia de náilon, eu o Alberto, meu inseparável companheiro de escola e que morava na mesma rua, fizemos uma aposta típica de meninos que precisavam afirmar sua coragem: quem fosse até o barraco do Chico Piau na pedreira e ficasse de tocaia esperando para ver qualquer movimento estranho, como o Chico virar lobisomem, por exemplo, seria o rei da rua. A noite seria aquela, de quinta para sexta. Segundo a lenda era nesse período que os homens atingidos pela maldição se transformavam. Eu convenci meus pais que iria dormir na casa do Alberto (como era fácil enganar as pessoas, eram raros os que tinham telefone, no caso de confirmação para alguma coisa).
Cara ou coroa foi o que acabou decidindo que seria eu quem iria até a casa do Chico Piau e tinha que trazer uma prova, no caso algum pertence, ou peça de roupa. Pensei em desistir, mas seria uma vergonha enorme para minha honra perante os amigos.
Quanto tempo eu levei para chegar até o alto da pedreira, indo pela estrada iluminada somente pela luz da enorme lua cheia eu não saberia dizer. Tudo amplificou perante aquele medo que parecia espremer meu estômago. A lua estava gigantesca, o som dos grilos e corujas parecia ferir meus ouvidos. A cada arbusto eu tinha impressão que alguma fera iria saltar e me fazer em pedaços.
Quando avistei a cabana ela parecia sombria e tinha uma aparência que emitia uma sensação de decadência que eu nunca havia sentido. Eu olhava para a casa que em sua quietude deixava bem claro que estava só adormecida e que um movimento mais brusco da minha parte, que estava escondido atrás de uma enorme pedra, ela despertaria e as conseqüências seriam imprevisíveis.
Respirei fundo e avistei uma camisa vermelha pendurada no varal. Era a prova que eu precisava. Eu levaria a camisa do Chico Piau. Uma prova irrefutável da minha coragem. Não havia cachorros e achei isso estranho. Havia uma nesga de luz inconstante por baixo da porta, provavelmente de um lampião.
Uns dez ou doze metros me separavam do meu alvo, mas esta distância parecia bem maior perante o medo que eu sentia. Avancei receoso e com os olhos fixos na porta e também janela. Meu estômago era como uma geladeira e pesava muito.
Um cheiro de coisa podre invadiu com força minhas narinas. De carne estragada. Uma sombra se movimentou por baixo da porta e eu estanquei. Faltava poucos metros para o varal e resolvi em um último recurso agarrar a camisa e sair correndo em direção à estrada.
Então um barulho de tábuas rangendo e coisas caindo no chão dentro da casa me paralisaram de vez. Todo o casebre começou a tremer e um grito a princípio fino e aos poucos se modificando para um uivo rouco e rascante. Eu queria correr, mas minhas pernas não obedeciam e senti que me mijei. Consegui me virar e acabei tropeçando e caí. Ouvi a porta sendo aberta de forma violenta, mas não quis olhar. Enterrei a cabeça na poeira e a partir daí tudo sumiu da minha lembrança.
Faz muito tempo que luto contra essa amnésia, mas a parte consciente do meu cérebro bloqueou o que aconteceu de verdade na pedreira. Ficou a versão conhecida, que meus pais me contaram.
Fui levado para casa na manhã seguinte em estado apoplético e assim fiquei por cerca de uma semana, com o olhar perdido. Foi o próprio Chico Piau quem me entregou aos meus pais e disse que me encontrou encolhido junto a alguns arbustos.
O Chico Piau morreu uns dois anos depois, devido a um ataque do coração. O casebre foi demolido, mas quem chega nas proximidades da pedreira nas noites de quinta para sexta, quando a lua está completa, jura que escuta um longo uivo, que ecoa longe, em todo o vale.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Décadence avec élégance !




É realmente estranho quando se tem um band-aid no supercílio (acho que foi ontem à noite, mas não lembro). As pessoas passam e te rotulam: bêbado, brigão, levou um murro, bem feito.

Sorte minha que não estou nem aí com eles.

Acho que o corte está infeccionado, pois arde e coça muito.
O que faço às duas da tarde em um dia de sol abrasador ocupando a mesa no fundo de uma lanchonete que recende à fritura? Eu poderia dizer que é só para tomar um desjejum, mas estaria mentindo e de mentiras todo mundo está de saco cheio.

À minha frente um jornal, palavras cruzadas: ator do filme Titanic, começa com “Le” e no meio tem uma “Ca”. Acho que é de nível intermediário (não colocam coisas muito difíceis, subjugando nosso intelecto). Vi esse filme há muito tempo e ainda lembro-me da mão da mocinha no vidro bafejado do carro.

Minha bexiga pesa, mas não estou nem um pouco a fim de ir até o banheiro de vaso manchado e urina por todo o chão. Dentro dos bolsos do paletó, papéis variados, desde cobranças, receitas de remédios e cartões de apostas, eu preferia era ter dinheiro ou vales alimentação. Isso! Vales alimentação. Acho bonitos os tickets que a empresa generosamente nos oferece. O valor, a logo da empresa e ao fundo linhas representando um homem empurrando um carrinho de compras. Vendidos por comida. Isso é o que nós somos.

Estendem um prato de comida e em troca você dá o melhor de si para eles: simpatia, colaboração, superação. Todos crescem juntos, eles mentem. E nós compramos essa mentira como se já não estivéssemos no prego há muito tempo. Minha garganta está seca, lembro do enorme sapo que fui obrigado a engolir ontem há tardinha e diria que estou me especializando nisso.

O ambiente dentro da lanchonete é pesado, como o enorme atendente. Ele já me conhece, venho aqui quase todos os dias, mas prefere fazer de conta que sou novidade e chega esbanjando uma pegajosa e falsa simpatia ao empurrar um sanduíche de atum. Eu poderia jurar que está estragado mesmo sem dar nenhuma mordida. Tenho medo de vomitar e afasto o prato depois do homem virar as costas.

É uma questão de costume se é que me entendem. Se perguntarem se preciso disso, diria com a cara mais deslavada do mundo que não. O que não vem a ser verdade. Ali eu posso sentir a vida. Não a vida limpinha e sem máculas que seria a preconcebida como ideal e que a maioria das pessoas almeja. Eu já tive isso e afirmo com todas as letras: enjoa. Mentira de novo. Peguei vocês. Eu daria tudo para retomar a vida que tive há algum tempo, onde eu mandava e outros obedeciam. Eu comprava e outros admiravam. Eu podia. Mas deixa para lá, isso é passado.

Então, voltamos ao meu momento ali, naquela pocilga que chamam de lanchonete “Ki-delícia”, acho que é este o nome, mas não tenho certeza, pois o letreiro da parede está descascado.

Aqui não se cobra nada, a não ser o que é consumido. Não há ninguém dizendo o que devo ou não fazer, que faltam quinze minutos para voltar à merda do escritório, que tenho que dar andamento em vários documentos e isso me dá um conforto passageiro.
Olho para o relógio agora: faltam doze minutos. Se eu não levantar a bunda dali, perderei a lotação.

Dos lados do banheiro, um homem com a o rosto lívido e molhado passa por mim. Possivelmente regurgitou um pouco da sua desgraça no vaso. Ele faz um aceno com a cabeça. Isso, amigo! Talvez tenha expiado um pouco por mim também.

Levanto e busco uma nota de dez toda emarfanhada em meio a muitos papéis no bolso.
Avisto na prateleira um vinho de boa marca. Talvez eu mereça um presente apesar de tudo. Seria como resgatar um pouco de classe.Pergunto quanto é ao atendente que se surpreende. Aquela garrafa possivelmente está ali mais para enfeite que para venda. Consulta o grandão, que lasca: cinqüenta paus!

Reviro o fundo das calças e minha maleta e consigo juntar quarenta e seis e cinqüenta. Ele me olha embora eu não peça desconto: pode levar por esse preço.

A caixa é muito grande e minha maleta não fecha direito. Coloco debaixo do braço e tomo rumo da porta.

Talvez não precise voltar ali.