quinta-feira, 23 de junho de 2011

O All Star vermelho!



-Lázaro! Lázaro! Acorda que está na hora da escola.
A voz parecia vir do fundo, bem do fundo de uma caverna. Não se mexeu, apenas sentiu a sensação térmica baixar ao ter o cobertor e o acolchoado puxados e a janela aberta para a entrada da claridade.
Tentou entender o que estava acontecendo.Rosana devia ter se enganado, não era para a escola que deveria ir, era para a empresa. Só havia um pequeno detalhe- a voz era de sua mãe. Abriu os olhos lentamente para acostumar-se com a claridade, o teto de tabuinha azul-claro lhe era familiar. Que diabos fazia um teto de tabuinha azul-claro acima da sua cabeça? Era semelhante ao da casa que havia morado com os pais e a avó até os quinze anos, quando do acidente.
Definitivamente não estava entendendo. O certo era despertar com as linguadas da cadela Catita no rosto, a língua molhada e áspera. A cama com o colchão já deformado ao centro o fez sentir uma sensação de familiaridade. Por mais incrível que parecesse, o quarto onde havia despertado era o da casa dos pais. Não que isso fosse ruim, em absoluto. A complexidade da situação devia-se ao fato dessa casa ter sido demolida há vinte anos. Foi aos poucos reconhecendo uma a uma as peças da mobília. Lá estava o velho criado mudo com a gaveta e a portinha onde guardava seus preciosos gibis e tudo que julgava importante, a mesa com a velha máquina de escrever. O roupeiro de madeira pesada, que havia ganhado de seu tio carpinteiro. E os pôsteres nas paredes. Lá estavam eles, Elvis, RPM, Ultraje.Sentiu um misto de nostalgia-medo.
Resolveu dar uma espiada pela janela. Não deveria ser mais que seis e meia, o tráfego na Marquês era pouco, mas avistou alguns Chevettes, Voyages e Monzas passarem com os faróis ainda acesos. A praça encontrava-se ainda na semi-escuridão devido às frondosas e antigas árvores. A calçada ainda não havia sido restaurada e refletia os primeiros raios do alvorecer em enormes poças d’água. Que porra de sonho é esse? Não podia negar que era um dos mais realistas que tivera até então, fielmente ornado de detalhes.
Resolveu levantar e testar até onde ia isso. Sentiu o corpo muito leve e os joelhos não lhe doíam mais. Caramba! Quanto tempo não sentia dor nos joelhos, principalmente no esquerdo. O cheiro que entrava pela fresta da porta era de bolinhos de chuva e café passado na hora. Coisas há muito não saboreadas.
Andou de chinelas até a cozinha, onde encontrou a mãe muito jovem, e a vó junto ao enorme fogão a lenha tomando chimarrão. A mesa já estava posta. Mas e o pai? Sabia que havia morrido, mas pela lógica do sonho que vinha tão exata até ali, devia participar. Sentou-se à mesa e começou a refeição, estava realmente faminto. Estranho até, pois depois de servir o quartel havia perdido o hábito e o apetite para o café da manhã farto.
Sua atenção foi dividida entre saborear o café e a observação de detalhes ha muito esvaecidos nos labirintos da memória. Enquanto segurava o pão tomou conhecimento da juventude do corpo ao vislumbrar os dedos finos e juvenis. Passou a mão no rosto e sentiu a pele lisa com pequenos e esparsos fios no queixo e acima da boca.
Notou um calendário de 1986, de uma loja de calçados com um enorme gato angorá na ilustração do mês de junho emuldurando a parede. Começou a fazer as contas mentalmente. 1986. Devia estar com quinze anos. Nossa! Sonhos não são tão reais assim. As duas mulheres não paravam de matraquear ao redor do fogão. Precisava ver se o mundo lá fora havia voltado ao ano da graça de 1986. Voltou ao quarto, vestiu a jaqueta de nylon preta, a calça de brim, o tênis All Star vermelho e passou pela cozinha em direção ao pátio. Já no portão ouviu a mãe gritar se não levaria os livros. Não respondeu e dirigiu-se à praça. Claro, ainda não havia sido restaurada. O banheiro emanava um cheiro horrível e de longo alcance, a calçada era irregular, mas a atração principal estava lá: o pouco sociável casal de jacarés e a horda de simpáticas tartarugas.
As pessoas começavam a passar apressadas e com o desastroso figurino dos anos oitenta. Seus pés formigavam de frio. Precisava explorar mais a cidade. Desceu pela Antônio Manoel e na esquina com a Marechal, deu com o Bar Continental. Que saudade do velho Continental, quantos pastéis e sorvetes secos o pai havia comprado para ele ali. Olhou para esquina de cima e avistou um caminhar conhecido . Parecia ser o pai, mas não tinha certeza, vou lá. Não vou. Isso é um maldito sonho e só serve para me trazer recordações tristes.
De repente, um estalo repentino. O ano era 1986, estava no primeiro ano do segundo grau, e nesse ano foi colega da Aninha. Havia passado o ano inteiro contemplando platonicamente a menina sem coragem de abordá-la. Bem já que sonho não tinha testemunhas iria tirar proveito disso.
Subiu rapidamente até a esquina do Colégio Onofre Pires e se postou elegantemente, tirou do bolso um lenço que a mãe sempre insistira para levar para possíveis eventualidades, limpou caprichosamente os tênis All Star vermelhos e quando a garota passou acompanhada de uma amiga, falou em um tom surpreendentemente seguro:
"Aninha, preciso falar contigo..."


** Conto postado em 31/08/2009.

Um comentário:

Guilherme Augusto disse...

Nem sei o que faria se pudesse retornar ao passado...