sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Em carne viva XXI !




A manhã iniciou fria como papai havia dito no entardecer do dia anterior. Deu na Guaíba.

Eram cinco e quinze. Eu havia feito minha mochila à coisa de duas horas. O padre estivera aqui em casa perto das nove horas da noite e já tínhamos nos recolhido aos quartos. Os cachorros deram o alarme e saltamos rapidamente. O padre não bateu palmas nem nada, apenas ficou parado esperando que saíssemos na porta. Era estranho. A impressão que tive era de que fosse uma estátua e que não iria falar nada, apenas nos olhava, imóvel.

Após um tempo ele finalmente pediu para que eu e papai o acompanhássemos em uma caminhada. Minha mãe tentou fazer alguma objeção, mas o olhar duro de meu pai a fez silenciar. Para acalmá-la o padre disse:

- Não demoramos filha, não se enerve.

Enveredamos por uma estreita rua e logo demos com um arvoredo fechado, onde a luz mal conseguia penetrar. Meu pai acendeu um cigarrão e aquela claridade foi a única que testemunhou nossa conversa. O rosto de papai parecia o de um fantasma e pela primeira vez notei como estava ficando velho. As rugas delineavam os olhos e a boca, o cabelo estava ralo e aparentava muito cansaço.

Quando paramos o padre não encontrava como iniciar o assunto.

- Pois então padre, o que se passa? –papai perguntou.

- É uma situação difícil...é muito difícil...isso não podia ter acontecido. O Comandaí sempre foi um lugar tão... tão... calmo.

Fiquei impaciente e nervoso. Sabia que vinha por minha causa.

- Desembuche logo padre, não sou mais uma criança. É comigo o problema? –busquei uma firmeza na voz que não tinha.

- Lázaro. Você sempre foi o meu ajudante predileto na paróquia. - tirou os óculos e olhava para baixo.

– Inteligente, gosta de ler, talvez isso me aproximou muito de ti. Não são muitos que lêem nesta terra, que realmente se interessam por isso. Isso te diferiu dos teus amigos, teu conhecimento é mais amplo que os destes meninos. É justamente por isso que não compreendo essa situação toda.

- O padre fale, pois estou ficando ansiado. – papai puxou um lenço e secou a fronte. Achei que ia passar mal.

O pároco finalmente revelou o que lhe levara a vir de Santo Ângelo às escondidas nos procurar.

- O Valdemar me procurou hoje à tardinha. Ele tem um apreço especial por teu pai, parece que são primos e tua vó o ajudou muito quando ele ficou órfão naquele desastre da barca. Ele colocou em risco seu emprego, mas pediu encarecidadente que lhes procurasse para que soubessem antes que o delegado volte amanhã com todo o efetivo da polícia...

Minhas mãos começaram a suar.

- Acharam um corpo nas macegas perto das terras do Quirino. Um peão dele foi recolher uma rês que havia se apartado do rebanho e achou um corpo de mulher. Algumas pessoas reconheceram as vestimentas como sendo da Cecília, embora o corpo já estivesse bem decomposto. Tu sabes que o delegado precisava do corpo para ter prova física do crime.

Olhei e vi meu pai chorando. A única vez que eu havia presenciado isso foi quando minha vó morreu, há muitos anos.

- Será que ele vai me prender? –perguntei.

- Vai. O Valdemar disse que tu és o único suspeito por enquanto e ele vai tentar te segurar na cadeia até o final das investigações.

O padre disse isso, passou por mim e colocou a mão no meu ombro. Queria dizer algo, mas nada falou e sumiu nas sombras da noite.

Voltamos em silêncio para casa. Papai estava em choque e entramos em silêncio. Minha mãe já estava aos prantos, mesmo sem saber ainda de nada.

- Fala, pelo amor de Deus, Lázaro. O que o padre Lara queria contigo? É sobre a Cecília, não é?

Apenas fiz um sinal com a cabeça e a abracei sem falar nada. As lágrimas desandaram em cascata. Deixei meu pai explicar tudo e me atirei sobre a cama.

Perto da uma da manhã, papai entrou porta adentro e ainda mudo me passou um pequeno saco com dinheiro. Não sabia a quantia, mas tinha certeza que ele suou muito por aquelas economias. Beijou-me o rosto e a cabeça e saiu.

Meu mundo a partir dali não podia ser só o Comandaí.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em carne viva XX !




A viagem à cidade era um alento para mim, sair um pouco da vila e me afastar dos rostos desconfiados. O Júlio já não era mais meu companheiro de viagem, pois seus pais o proibiram de andar comigo.
Eu estava na rua Marquês do Herval, em uma lancheria, onde o pessoal que morava para fora, como eu, almoçava em dias de compras. O cheiro de peixe frito exalava rua afora. Ovos em conserva e cachaça de alambique eram comercializados em grande quantia.
Eu estava sentado sozinho na mesa bem ao fundo, com as costas voltadas para a rua. Não queria conversa com ninguém. Usava um chapéu de aba larga enterrado na cabeça e sabia que era provável que algum conhecido com certeza aparecesse para bisbilhotar, afinal a notícia era manchete no jornal, onde um homem idoso que dividia a mesa comigo lia avidamente sobre o caso.
“MULHER SOME MISTERIOSAMENTE NO DISTRITO DO COMANDAÍ. POLÍCIA LIBEROU SUSPEITO E PROCURA MAIS PISTAS!”
Depois que ele desviou sua atenção para um enorme pastel pedi o noticioso emprestado. Menos mal que meu nome não havia sido divulgado, não que isso ajudasse muito, pois o boca a boca era rápido e em breve todo mundo já teria a informação. O delegado Nogueira em entrevista havia dito que não descartava prender-me novamente e que minha participação no caso ainda não estava bem esclarecida.
Em uma mesa próxima ouvi um homem exaltado falar para os companheiros:
- Vocês viram que soltaram o assassino da mulher lá no Comandaí? Pra que polícia então?
- Não soube. Mas por que será que soltaram?
- Parece que não havia muita prova e que o assassino era amante da mulher.
- Por que será que matou?
-O Castanha disse que a mulher não quis mais...
- Puta la merda. Vocês conhecem o marido?
- Eu conheço. É o Valdir Polozzi, que tem o bolicho perto da estação.
Eu havia comido um pastel e resolvi ir ao banheiro lavar a boca. Já não queria ouvir aquela baboseira toda e quando entrei no corredor, passei pela cozinha onde uma mulher com touca branca lidava na fritura dos pedaços de peixe. Quando fui dobrar para sair para a área externa coberta onde ficava o banheiro ouvi um chamado.
- Psiu, guri!
Me voltei e vi um moça de cabelos cacheados debruçada em uma janela.
-Oi!
-Foi tu que matou a mulher lá no Comandaí?
Era uma pergunta direta e me surpreendeu. Ela devia ter a minha idade e logo identifiquei traços do dono do armazém nela. Devia ser filha ou sobrinha.
- O que? Não entendi...
Ela riu.
-Não te faz. Tu és amigo do Júlio. Ontem ele esteve aqui e contou tudo.
Ah, o Júlio. Talvez fosse mais uma das moças da cidade que ele lançava seus truques de conquistador barato.
- Ele esteve aqui? Contou o que? – eu já estava com medo do que o bobalhão tivesse contado à guria.
- Disse que foi tu quem matou a mulher.
Não sabia se acreditava ou não naquilo. O Júlio embora egoísta e convencido era meu amigo desde criança e também tinha participação naquilo. Não seria capaz de levantar falso contra mim. Ou seria?
- É mentira, o Júlio não falaria isso.
Ela deu de ombros, como se pouco importasse se eu acreditasse ou não e fechou a janela como se aquela conversa nunca tivesse acontecido. Quem era ela? Senti vontade descobrir, mas a inquietação com a informação que o Júlio havia falado que eu era um assassino não me deixava pensar em mais nada.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Em carne viva XIX !




- Delegado, como isso é possível? – perguntou o policial Valdemar.

O delegado Nogueira não tinha a resposta e provavelmente ninguém mais.

O rapaz magro, de tez morena, curtido do sol havia mergulhado no rio já faziam de cinco a seis minutos sem nenhum respirador artificial e ainda não emergira. O delegado finalmente disse:

- Tomara que eu não tenha feito uma besteira em ter chamado esse camarada. Já pensou se ele morre afogado? A responsabilidade é minha...

Eu estava de lado junto ao padre. Pelo menos haviam me liberado das algemas a pedido de meu pai que também estava junto. Foi uma surpresa quando o delegado anunciou que buscava o corpo de Cecília Polozzi nas águas do lajeado Santa Tereza. Isso surpreendeu todas as pessoas que tinham certo contato com o caso.

Eu estava muito tranqüilo e papai seguidamente olhava para meu rosto. Será que ele desconfiava que talvez eu realmente tivesse matado Cecília. Acho que não. O padre nada falava, apenas olhando ansioso para ver se o rapaz que mergulhou logo emergisse.

O delegado havia buscado o mergulhador no Carajá. Atendia pelo apelido de Bicho D água e era requisitado pelas autoridades e familiares de pessoas desaparecidas nas águas dos rios da região. Não tinha mais que vinte e poucos anos. Falava muito rápido e para entendê-lo era preciso prestar muita atenção. Havia sido criado certo misticismo ao seu redor devido a seus métodos exóticos, como a reza antes dos mergulhos e a bacia com a vela que largava na correnteza. Diziam que a bacia deslizava na direção em que o corpo estava , geralmente preso a galhos e entulhos no fundo do rio. Naquele dia, não havia realizado seus rituais, ao menos que eu visse, pois passei mal e tive que ir ao mato fazer minhas necessidades, com o policial Valdemar sempre me acompanhando.

O sol era escaldante e a camisa já estava grudando na minha pele, quando ele finalmente apareceu na outra margem e fez um gesto que iria mergulhar novamente. Parecia mais magro ainda vestindo somente um calção.

Valdemar estava de mau humor por ter de estar ali e não deixava dúvida quanto a isso.

- Que porcaria tu foi arranjar rapaz. Olha só a mobilização que se formou em torno de um ato idiota desses. – ele falava como que convicto da minha culpa.

Papai não se conteve.

- Olha lá como fala Valdemar, vocês estão se afobando e tentando achar um culpado para um crime que nem sabem se aconteceu. Meu guri não vai pagar o pato não...

O delegado interveio.

- Não quero saber de anarquia aqui. Calem a boca.

O padre tinha um olhar perdido ao longe e volta e meia também pousava as vistas em mim, como tentando compreender o que realmente estava acontecendo ali e como cheguei ao ponto de ser preso e suspeito da morte de uma pessoa. Minha prisão era ilegal, eu sabia, mas não me desesperaria, eu sabia dos riscos desde o começo.

Bicho D água emergiu agora junto a nós, respirou fundo antes de falar.

- Seu delegado, a água tá muito barrenta, mas acho que não há nada lá embaixo.

O delegado agora parecia cansado, ou perdido. Um leve maneio de cabeça denunciava sua decepção.

O padre indagou:

- Parece desapontado Nogueira...

Ele fez que não ouviu a provocação do padre e se voltou ao pequeno homem, que agora encharcado parecia ainda menor.

- Como assim, Bicho D água? Não achou nada aí? Me disseram que tu achava até uma agulha no fundo do rio.

O homem atropelando as palavras, rebateu.

- Não tenho como achar algo que não tá aqui.

Vislumbrei um sorriso no canto da boca de papai que anunciou em um tom até certo ponto insolente.

- Agora vou levar meu piá pra casa. Soltem as algemas. – e deu uma tragada profunda no cigarrão de palha.