terça-feira, 1 de setembro de 2009

O Livro!



O pacote parecia sobressair naquele cenário.
Talvez porque fosse um daqueles dias típicos do agosto no Rio Grande do Sul, com muita garoa e frio. Isso só o tornava mais melancólico. Não queria estar ali, naquela rodoviária de uma cidade que não lembrava o nome. Tinha descido para respirar um pouco de ar puro nos quinze minutos em que o ônibus parava para que os passageiros comprassem algum lanche ou ir ao banheiro. Escolheu uma mesa que ficava junto a uma grande janela envidraçada, que lhe dava a possibilidade de observar toda a movimentação em volta do veículo, e o momento que começassem a reembarcar.
Resolveu pedir uma dose de uísque, talvez o ajudasse a relaxar e dormir um pouco, na viagem. O sono vinha sendo algo raro nas últimas semanas, desde que recebera a notícia que teria de mudar-se de Belo Horizonte para a região das Missões, no Rio Grande do Sul.
Um buraco no fim do mundo, era para onde o mandaram! Era isso que dava não ser “puxa-saco” do chefão. Nem sabia da existência desse lugar. Levava somente roupas e o laptop, pois faria um processo de transição com o outro supervisor e voltaria para Beagá para os últimos detalhes da transferência e buscar o carro.
Que diabos de lugar seria aquele? Frio, com certeza. Será que a cidade tinha infra-estrutura para oferecer uma vida noturna agitada, como tanto gostava? Pouco provável. Pesquisou alguma coisa na Internet e as informações não eram nada animadoras.
Aquela região era a mais pobre do estado. A formação étnica passava por uma mistura de várias raças, mas o sangue indígena corria forte por lá. Um nome estranho o deixou curioso- pelo duro!! Caramba, será que índios andavam pelas ruas?
Voltou a atenção, novamente, ao pacote em cima da mesa em frente, vazia. Retangular e envolto em um chamativo e brilhoso papel vermelho, bem no centro da mesa branca. O curioso é que as pessoas que passavam o ignoravam categoricamente, como se ali não estivesse.
Um homem alto, de cavanhaque, chegou a sentar-se para amarrar os sapatos. Mas em seguida, levantou-se e saiu, deixando o pacote intacto. Contos da Crypta! Era só o que faltava, bêbado com uma dose de uísque. Começou a rir sozinho. Foi até o banheiro e passou uma água no rosto. Quando retornou, lá estava ele, mais chamativo ainda, naquele cenário desbotado.
Resolveu recolhê-lo e entregá-lo ao rapaz do caixa, que não quis recebê-lo, alegando ser normativa do local. E agora? Deixava na mesa ou levava? E se fosse algo valioso ou tivesse valor sentimental para alguém? Olhou para fora e viu o último passageiro e o motorista entrando no ônibus.
Dane-se! Levaria com ele. Dirigiu-se rapidamente à plataforma de embarque, entrou no veículo e atirou-se na poltrona vinte e três. Desembrulhou com capricho para não rasgar o papel e deparou-se com um grande livro, estilo enciclopédia, capa dura e cuja capa era ilustrada com a imagem de uma igreja em ruínas entalhado em dourado na capa. O título era “A Guerra Guaranítica”. Começou a rir com a ironia do destino. Quem sabe pudesse instruir-se ,até chegar ao destino e saber um pouco mais sobre o lugar. Ignorando os resmungos do passageiro ao lado, acendeu a lanterninha de teto e começou uma leitura, a princípio, tímida e mais contemplativa. O que descobriu, nas horas seguintes, dentro daquele ônibus, foi algo novo e espetacular e que, surpreendentemente, jamais ouvira falar.
Existira,em meados do século dezoito, um sonho de sociedade utópica na região das Missões. Os padres espanhóis em sua cruzada catequizadora na América, conseguiram amansar índios até então selvagens e perigosos, usando... a cultura!Muitos dos índios das Missões tornaram-se artistas talentosos, tanto em esculturas, como na música clássica. Em uma negociata escusa por partilha de terras entre Portugal e Espanha ,essas reduções foram aniquiladas, e os índios massacrados impiedosamente. Ficou impressionado com as ilustrações das esculturas da época, que se encontram no museu de São Miguel das Missões. Era algo “sui generis”. Os santos missioneiros, esculpidos pelos artesãos guaranis tinham os traços de sua raça, com os olhos puxados e o rosto ovalado.
Duas horas de leitura e sua perspectiva em relação ao lugar, mudara completamente. Algo daquele maravilhoso processo cultural devia ainda restar na região.
Cansado, desembarcou na rodoviária de Santo Ângelo, sua nova cidade por tempo indeterminado. Iria pesquisar mais e buscar resquícios que sobreviveram ao tempo.
Alguns metros após sair, quando ia adentrar um táxi, foi abordado por uma índia, em andrajos imundos, segurando um bebê no colo e mais duas crianças com cestos e balaios.
- Me dá um troquinho?

27 comentários:

ThiagOrnelas disse...

está aí..gostei.
sempre que der passo aqui

www.nos4.worpdress.com

Rafa disse...

Li de uma vez só, muito bom, gostei do poder de prender ayenção!


http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/

Diego F. Machado disse...

Caramba, nem sabia que existiram indios instruidos e que se tornaram artistas, inclusive da musica clássica.
E aí vem alguém ganancioso e destrói tudo, acaba com uma tribo inteira, a ponto de os indios atuais terem de esmolar para sobreviver, triste.

Unknown disse...

como sempre muito bom blog, com belos textos.
parabens kara

Gabriel Messias disse...

gostei do texto e da informação... e tem muita gente q axa que a cultura nao chega aos indios... alem é claro da sua propria que é muito interessante

Nando! disse...

Mto bom o texto...
vc conseguiu me prender até o fim!
E tipo é mto interessante essa coisa de indios que vão além das tradições de sua tribo e tornam pessoas instruidas intelectualmente!

Lucas Lins disse...

Ironias né não ? mundo gigante, e os donos do Brasil pedem dinheiro ! lamentável !

Peço por favor que comente no meu também, ok ???
http://escolhaopcional.blogspot.com
Obrigado Mesmo !

Rafa disse...

Legal a cronica, parabéns pelo belo blog amigo!

http://cemiteriodaspalavrasperdidas

Anônimo disse...

Lindo texto.
Blog reflexivo.
Adorei os temas.

PauLinha disse...

Gosto de vir aqui, ler seus posts..
Nos faz pensar em algum mais, reflexivo.......

parabens

FAGGH® disse...

Fala cara , passando mais uma vez no seu blog , lembro que comentei na materia abaixo ...seus textos são ótimos e a cada dia que venho aqui no blog ficam melhor
abrç

Anônimo disse...

Belas histórias e com conteúdo super maneiro. Aqui leio sentindo que cheguei em algum lugar.

Parabéns!

iti disse...

tudo vai mais alem do que as tradições... a simbologia..
belo blog...
http://www.maquinazero.com.br/

Kelly Christi disse...

Gostei do seu texto, já aconteceu algo parecido comigo, talvez, menos poético, eu achei um livro na estação da luz...rsss
Obrigada pelos elogios la no deleites, vou te linkaar, pq. curto seu blog

fuiz

http://www.pequenosdeleites.blogspot.com

Zanzini disse...

Mto bom o texto!
Uma pena que a nossa cultura esteja fazendo com que a cultura dos indios seja esquecida ou meramente limitada a exposições artísticas em determinadas épocas. Há muita riqueza de costumes se perdendo devido a intromissão do homem "civilizado"..


Uma sugestão: alterar a cor da fonte na descrição do blog na imagem do indio, no topo do blog.

Abraços!
http://prof-zanzini.blogspot.com

Erich Pontoldio disse...

vivendo e aprendendo ... ótimo post

Anônimo disse...

Nossa, seu blog é muito interessante.
O texto também.
Beijos...

kikinhah disse...

Muito show esse texto.
Refletivo.
Parabéns pelo blog, e obrigada pela sua visita.
BjOs^^

Gabriel Tubbs disse...

O gostoso de histórias é que a gente sempre pode usá-las como metáfora. Deve ser pra isso que elas existem.

Você escreveu uma excelente metáfora. Parabéns.

Gabriel.

palavras ao vento disse...

boa storia...esta d eparabens...

mailvolpe disse...

Você escreve de forma suave e de um jeito que prende a atenção. Vou seguir seu blogue! (http://8livre.blogspot.com)

de Oz disse...

Ja tem indio estudando para pregar o cristianismo! rsrsrs
Não sei se isso é engraçado ou trágico

Eduardo o/ disse...

O_O

Anônimo disse...

Já há alguns anos, um grupo de escritores gaúchos espalha pela Feira do Livro de PoA exemplares de obras clássicas e outras referentes a cultura regional. Entre monumentos, esculturas e árvores, livros chamam os curiosos e convida ao passeio literário. A única exigência é que, pegando o livro, outro seja deixado no seu lugar. A iniciativa é bacana e teve bastante repercussão. É algo legal a se pensar pelas Missões já que, acomodados, tanta gente ignora os fatos locais e se pasteuriza nas colunas sociais. Evoé, guarani! Tekoa Koenju somos nós!

Rafa disse...

Vinha planejando escrever uma cronica nesses moldes, mas terminando com Do you have money, rs, parabéns pelo blog


http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/

pscheunemann disse...

gostei!...vc escreve muito bem...*seguindo seu blog*XD

divyam anuragi (Mauricio Duarte) disse...

Num país onde apenas 4% adquirem livros com regularidade, esse é o resultado da nossa história. História do Brasil! Vivendo e aprendendo!