domingo, 5 de julho de 2009

O Início do Fim II-A Trilha



O menino caminhou muito. Atravessou enormes capões e matas cerradas. O pé doía e sangrava desde o pisão em um toco semi-enterrado. O pai havia dito para não parar por nada e só indicou o caminho apontando na direção em que o sol se põe.
Precisava ter tenacidade, pois aquela era a primeira prova que tinha para mostrar que poderia ser um grande guerreiro. Já havia muito tempo que caminhava. A coxilha onde achara o pai agonizante há muito desaparecera. Será que o pai ainda estaria vivo? Ainda não entendia muito sobre gravidade de ferimentos, coisa que na Missão de São Miguel ficava a cargo do velho curandeiro que tratava tudo à base de ervas e emplastos e em casos mais graves, os padres eram avisados e o ferido transportado para uma mesa que ficava em uma peça vizinha ao cômodo onde os padres se reuniam para orar e decidir a rotina diária.
Por intuição, um sentimento de ansiedade que sempre possuiu e lhe alertava para situações ruins ou boas, tinha quase certeza que o pai não escaparia com vida.
Eles haviam saído antes do sol nascer e adentrado uma velha trilha que os padres usavam para as longas excursões à redução de Santo Ângelo. O pai achara que ele, aos onze anos precisava de treinamento em caça e manuseio da lança, além de ser capaz de se localizar em meio ao mato.
Havia ficado chateado na noite anterior quando o pai lhe comunicou que passariam o dia seguinte fora. Já havia avisado ao padre Juanito que iriam caçar, embora o velho desse pouca atenção ao comunicado. Toda a agitação dos últimos meses com a provável chegada das tropas portuguesas para expulsá-los dali tornou o controle dos padres menos rígido.
O menino achava que já manejava muito bem o tacape e a lança. Era difícil não retornar para casa quando lhe era permitido brincar um pouco mais longe, sem um lebrão ou um tatu. O pai o subestimava.
Se embrenharam na trilha muito embarrada e escorregadia devido à grande chuva da noite anterior. O dia ainda não clareara totalmente e os pássaros faziam um enorme alvoroço. O cheiro do mato era maravilhoso. Sentia que pela primeira vez estava participando de algo importante. Mas o que seria? Qual o intuito do pai em treiná-lo com a lança? Ou não estariam fugindo e abandonando a redução? Não. Seu pai não seria capaz de deixar a esposa e seu amado povo para trás. Talvez fosse o que desconfiara. Iria ser treinado para se tornar um líder como o capitão Sepé.
Uma vez vira, escondido em um macegal o capitão Sepé treinando com mais três guerreiros uma espécie de ataque surpresa. Um dos índios representava o inimigo, que cansado apeava do cavalo para beber água. Quando se agachava, Sepé e seus guerreiros saiam do mato e em um rápido ataque simulavam abater o inimigo.
Por onde andaria o capitão Sepé? Fazia muito tempo que não aparecia em São Miguel. Ouviu o pai conversando com outros que o capitão estava empenhado em proteger as reduções e patrulhava na região em pontos estratégicos, mas que não enviava notícias há muito tempo. Estaria o capitão morto? Impossível. Com toda sua destreza e inteligência ele não se deixaria pegar. Era um dos únicos capazes de discutir assuntos mais complexos com os padres. Sua presença emanava uma sensação de proteção a todos ali. O porte altivo, a casaca azul com detalhes em metal e a atenção que dedicava a todos sejam crianças, idosos ou a quem o interpelasse faziam de seus retornos a São Miguel uma festa. Seu sonho era ser treinado pelo próprio Sepé. Daí também seria um guerreiro invencível.
Não notara que o pai havia se afastado propositalmente para testar seu senso de localização e quando deu por si estava sozinho. Olhou em todas as direções e não via nem rastro do pai. Ele saíra da trilha e se embrenhou mata adentro. Procurou pegadas na lama vermelha e ramos quebrados. Após andar em círculos, ouviu ao longe um trotear de cavalo. Seria o capitão Sepé voltando à redução? Resolveu ir em direção ao som. Se encontrasse Sepé este com certeza o ajudaria e aplicariam uma peça no pai. Desviou de alguns troncos caidos com a forte ventania da noite.
Escutou um grito. Era a voz do pai. Talvez o estivesse testando, mas seu instinto dizia que não. Algo ruim havia acontecido. Começou a sentir um medo profundo que tornava seu estômago gelado e os braços amortecidos. Precisava se controlar. O pai sempre dizia isso. Esperou agachado entre arbustos um tempo que não saberia dizer. O barulho de cascos começou a se afastar. Era só um cavaleiro. Teria que vencer aquela sensação de fraqueza e ver o que que tinha ocorrido. Recomeçou a andar e subiu uma íngreme coxilha onde avistou o pai caído. O índio segurava as entranhas com as mãos, o rosto estava lívido e os olhos lacrimejantes e arregalados. Com certeza havia levado um golpe de baioneta. Já vira outro índio ser ferido assim em uma briga com um soldado.
O pai em um esforço brutal ,conseguiu sussurrante lhe passar orientações. Que fosse na direção em que o sol se põe que chegaria a SãO Miguel, fora ferido por um batedor das tropas portuguesas e que em breve aquela horda de assassinos devastaria o que encontrasse pela frente. Ele que não parasse por nada, nem olhasse para trás, apenas corresse muito e avisasse os padres. O menino tentou argumentar que não o deixaria, mas o índio foi firme e exerceu sua autoridade de pai mesmo morimbundo. Disse que aquela era sua primeira missão para se tornar um valoroso guerreiro. Partiu com o peito apertado duvidando se veria aquele valente homem novamente.
Mas precisava cumprir aquela prova de fogo, precisava voltar à redução logo ou os asssassinos pegariam seu povo desavisado.
O pé doía muito. A noite começava a se aproximar e a sensação de medo e frio no estômago virou fome. Ao pular uma enorme pedra reencontrou a trilha. Pela paisagem estava perto. Estava perto de sua primeira vitória. A sua frente surgiu uma clareira e ele avistou a redução de São Miguel na penumbra,com algumas tochas na rua principal.
Ouviu o som melancólico e calmo das flautas e do coral guarani...

8 comentários:

Débora Cattani disse...

Teu texto rememora a saga guarani, que mesmo dizimada a tanto tempo atrás, nos deixou um legado de amor pela terra e pelo seu povo. O texto foi escrito de forma que se pode imaginar o indiozinho com o pé machucado e todo o terror que o medo lhe incutiu...medo de perder o pai, sua maior referência, medo de não encontrar mais o caminho de casa e medo da morte.
Pude sentir o amor do pai ao não permitir ao filho que ficasse ao seu lado nos seus últimos momentos e a quase indescritível sensção de alívio ao chegar em casa.Gostei!

MioneNunes disse...

Muito legal teu texto!
Gostei pra caramba...
to seguindo ja!
Passa lah oh
www.meannina.blogspot.com

Unknown disse...

Pois é, também gostei muito do teu texto veio, parabens mesmo :D

Wanessa Lins disse...

O pai sempre presente... pronto para ajudar.


:***

Beijooos

Ariane Yajima disse...

=DDD

adorei!!Texto muito bem escrito!Parabéns!
^^

Macaco Pipi disse...

VAMOS MORAR AI!

Anônimo disse...

Sua escrita remete muito a terceira geração do romantismo brasileiro, não só pela temática mas também pelas preocupações sociais e culturais. É de longe um dos melhores blogues que visito com frequencia.

Abraços!

Pobre esponja disse...

Seu blog é novo, né?
Parabéns, boa sorte na blogosfera!

abç
Pobre Esponja