
- Mas padre, não é justo...
Padre Lara suspirou e lançou um olhar de enfastio por sobre os óculos.
- As coisas sempre tem um significado. Cabe a nós sabermos interpretar.
Olhei para aquele homem gorducho, as mãos rechonchudas, os dedos curtos e grossos. Poderia me lembrar um bebê, não fossem os tufos de pelo.
- Teus pais estão preocupados contigo.
Não era para menos. O que havia acontecido no dia anterior, foi algo totalmente incomum em um lugar onde a calmaria era quase absoluta.
Cecília compareceu para assistir a missa dominical. Todos já estavam acomodados quando ela entrou. Primeiro, olhares de espanto, depois cochichos e murmúrios tomaram conta da igreja. Tudo convergia para a figura da mulher toda de preto. Era um luto? Acho que um luto para sua condição, suas limitações e infelicidades. Pensei em quanto a deixei feliz quando apareci em sua casa, e não demonstrei medo.
Ela avançou, o olhar distante, ignorando todos, que se encolhiam e recuavam, evitando sua aproximação. Encontrou assento na extremidade de um banco, à direita do altar, onde o único casal sentado, rapidamente levantou e ficou junto à parede.
Alguns mais exaltados já falavam alto, não se importando que ela ouvisse. "É louca!", "como o Polozzi deixou a leprosa sair de casa?", "irresponsável, colocando em risco até nossas crianças...".
O padre que até então parecia paralisado, resolveu abandonar o altar, e falar algo, que para mim era incompreensível, visto da distância em que estava, além de minha mãe a falar ininterruptamente ao meu lado. O padre gesticulava contido, mas dava para perceber que apontava a porta lateral, talvez sugerindo uma conversa do lado de fora.
Ela embora olhasse o padre diretamente nos olhos, não parecia disposta a sair, o que desencadeou reações mais hostis por parte dos fiéis mais próximos. O Chico Laçador, bruto como ele só,deixou a coitada da Maria só, e começou gradualmente a alterar o tom da voz enjoada, de bêbado. O padre notando que o homem estava prestes a partir para a agressão, tentou contê-lo.
Cecília não parecia intimidada. Manteve o mesmo semblante de alheamento que ostentava desde sua entrada na igreja. Chico puxou o lenço do bolso, um pano encardido, enrolou a mão direita com um gesto brusco, agarrou Cecília pelo braço, arrancando-a do banco, para o espanto de todos. Ela acabou se desequilibrando e caiu de joelhos, o que não abrandou a fúria do homem, que agora a arrastava deitada pelo corredor. Ela se debatia e gritava tentando se libertar.
Quando dei por mim, já havia pulado por sobre as pernas das pessoas mais próximas e desferido um soco no nariz do Chico, que esguichava sangue para todos os lados. Lembro do vestido da dona Iolanda, todo branco e esborrifado de sangue a olhar completamente incrédula.
O Chico forte como é, não acusou muito o golpe, exceto o nariz todo torto. Apenas dizia: "O guri do ferreiro me acertou! O guri do ferreiro me acertou!”.
A presença do padre ali na comunidade, segunda pela manhã cedo, era sem dúvida coisa da minha mãe. Ela deve ter pedido para ele conversar comigo, visto que papai não tinha muito jeito para a coisa.
- Padre, não aguentei quando vi o Chico arrastando a dona Cecília. Foi judiaria.
- Isso não justifica tua atitude bestial. Não é coisa de homem de bem. Quem faz essas gauchadas, esse tipo de coisa é o Neco da Merência, Deus que me perdoe. É isso que tu queres? Ser uma alma sem eira nem beira. Brigar dentro da Igreja foi demais. O que falta agora? Beber nos bolichos?
O padre era sensato, mas a vida que escolheu o impedia de entender certas coisas que para mim são latentes. Coisas além do sentimento fraternal.
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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.