sexta-feira, 12 de março de 2010

Em carne viva! (IV)




Hoje, acho que cometi uma bobagem. Menti, em casa, dizendo que iria à casa do Júlio, amigo que também irá se alistar, e fui até o bolicho dos Polozzi. Fiquei com lama até os joelhos, o que causou certa irritação em minha mãe. Queria saber como fiquei naquele estado.
Foi um ato intempestivo, do qual me arrependo. Como havia imaginado, o bolicheiro estava "fulo", e foi ríspido ao responder às perguntas sobre o estado de dona Cecília. Comprei palha para os cigarros de papai, com alguns tostões, que achei nos bolsos de uma calça que ele havia posto para lavar. Vou misturá-los ao estoque dele e torcer para que não note a quantidade. Bom, talvez seria melhor,se eu os jogasse fora.
Havia quatro pessoas no estabelecimento. Vitorino e a esposa, esta quando me viu, beijou-me, como faz desde que me entendo por gente. Um beijo na bochecha, molhado. Arre! Não tenho como escapulir da velha. O Sacolinha, que já estava saindo com uma lata de querosene, e o Neco da dona Merência, de canto, só observando,claro,com o copo da cachaça ao lado. Dizem que o solteirão é o maior linguarudo da cidade, além de ter fama de calaveira. Acompanhou-me com o olhar, desde o momento que entrei, e assim, seguiu todos os meus movimentos. Ele trabalha com construção, e notei um madeirame, ao lado da casa.Será que vão aumentar o bolicho?
O Polozzi não tocou no assunto da viagem de volta, do porquê de não lhe esperarmos,além de ter sido monossilábico sobre a esposa. Estiquei a vista sobre a porta de acesso ao interior da residência,porém a cortina atrapalhou-me e não consegui ver se a mulher estava por ali. Tive a impressão de ver um vulto se movendo. Polozzi, para encerrar o assunto,perguntou-me se era só a palha. Fui saíndo, mas notei um sorriso irônico no rosto do Neco. O que será que o muquirana estava pensando? Boa coisa não era, com certeza. Havia se envolvido em uma briga, em umas carreiras,lá para as bandas de Giruá, há um ano, e acabou esfaqueando um homem. Até o delegado andou por aqui, visto que o pobre diabo acabou morrendo.
Legítima defesa foi alegada, por ele, e confirmada por meia dúzia de gambás que o acompanhavam. Parece que corre um processo,mas ninguém sabe direito, nem ele fala sobre isso. A mãe dele, dona Merência, tem problemas de saude. Teve uma congestão, e uma parte do corpo ficou paralisada. Minha mãe gosta muito dela, e a visita com frequência. Papai não gosta. Tem ciúmes do Neco, e com razão, visto que o traste despe, com os olhos, qualquer mulher que passe na sua frente. Geralmente, as visitas de mamãe à casa de dona Merência, acabam em discussão, e com os dois emburrados.
Devo estar com algum problema,ou falta de vergonha na cara. Com tanta coisa que eu poderia estar fazendo, para ocupar produtivamente meu tempo, estou procurando sarna para me coçar. Mas algo me diz, que há algo errado, em toda essa situação. Ainda não sei exatamente o quê, ou se sei, devo estar enganando a mim mesmo.

* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas, ainda vivas,de suas relações efamiliares que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

12 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, entrei no seu Blog e começou a tocar "Almost Blue", do Chet Baker...quase morri!... Rs... só isso já valeu... mas o texto é muito bom e bem escrito, tem diversos nuances das relações do cotidiano, e isso é interessante... valeu muito!

roberyk disse...

Pelo que percebi, esse romance vai longe. Está conseguindo, a cada continuação, nos prender à história. É uma satisfação ver o amigo se atirar sem receios, arriscar, quebrar regras de postagem em blogs. Vou sugerir, como foi sugerido por outra leitora, que faça uma referência ao início da história, para quem chega, saber do que se trata.
Parabéns.

Thunderbirdsampa disse...

Não manjo da parte tecnica da escrita Fabio,mas vi que voce colocou uma referencia como conto abaixo do texto... talvez ele tenha passado do conto para outra definicão...bem iso não importa muito pois a sequencia ta muito legal mesmo.Acho que o numero de comentarios ira diminuir,mas como disse o amigo que comentou tem que arriscar e quebrar a tendencia da blogosfera de textos rapidos o importante é a essencia do que voce esta passando aki meu.

deixo uma frase do Fellini,prati
"Um escritor, um pintor, que conseguiram fixar numa página ou num quadro um sentimento das coisas do mundo, uma visão que durará para sempre, comunicam-me uma emoção profunda.

Antonoly disse...

Muito bom o conto
você está de parabéns!

adriano disse...

bom texto, me lembra um pouco o estilo de james joyce. o absurdo do cotidiano.

abraço

Pobre esponja disse...

Baseado na décade de 50... por isso me perdi em algumas palavras.
Procurar sarna para se coçar também é uma ótima forma de passar o tempo.
Parabéns pelo excelente blog, mais uma vez.

abç
Pobre Esponja

Satiko disse...

O bom de se frequentar blogs eh que muitos realmente valem a pena parar e ler.Uma história interessante e com uma linguagem agradavelmente culta!Bem interessante por aqui viu,gostei bastante da história também!Suspense é tudo de bom.Bjos,Garota.com'

Anônimo disse...

Está muito legal essa tua história Fábio! Cada continuação com novos nuances. O problema de fazer continuações é que por vezes acabamos, mesmo sem querer, nos repetindo, e tu está conseguido levar esse texto adiante com fôlego, o que demonstra que a tua escrita também está crescendo na mesma proporção. Legal mesmo!

Abraço!

Marjorie disse...

Oi, Fábio... venho acompanhando essa história em silêncio. Nunca gostei muito dessas sequências longas, beirando romances sem mergulhar na estética, mas por pura fidelidade minha - talvez burra - formada ao estilo lapidado em e por mim.

Acho bacana a tua pesquisa e, mais, gosto que te posiciones de forma legítima diante de alguns supostos "ativistas literários" que acabam mais pressionando e sufocando os processos criativos alheios do que estimulando as criações co-irmãs.

Senta a pua que isso ainda vai dar um bom caldo.

Augusto Bier disse...

Marjorie tá certíssima sobre os pseudoescrevedores da maloca!
E eu acho que essa tua mexeção entre a história e a literatura - afinal, não é isso o que identifica a vida? - ainda vai dar um caldo bão de se comer gemendo.
Tem mais aí?
Cadê o revisor?

Leonardo Pradella dos Santos disse...

érico veríssimo na veia. Posso estar enganado, mas acho que posso arriscar essa influência.
Gostei do ar "jornalístico factual", se assim posso dizer, que tem o texto.
Narrativa muito interessante.

Gabriel Pozzi disse...

Olá Fabio!
É com satisfação que voltei aqui para acompanhar a continuação do Em Carne Viva, talvez se lembre que comentei com muita empolgação quando li a parte II! hahaha
e bom, sua história não decepciona de forma alguma, supriu minhas expectativas, adorei mesmo, então aqui fica mais um "parabéns" meu! :D
Espero voltar aqui sempre pra ver coisas interessantes como esse conto!
(e espero que volte no meu blog, né? rsrs obrigado pelos elogios lá =D)

abração!
http://songsweetsong.blogspot.com/