quarta-feira, 17 de março de 2010

Em carne viva V!




O sol finalmente apareceu, depois de quase uma semana. Até o ânimo e o humor das pessoas melhoraram. O Júlio me convidou para ir até Santo Ângelo.Ele foi fazer as compras do mês e queria ter com quem conversar. Para minha sorte, papai me liberou da ferraria.
Saímos cedo e tivemos que ir a cavalo, devido à estrada lamacenta. O Júlio é bom de conversa, ao contrário de mim. Fiquei sabendo da morte do seu Aparício, dono do Mercadinho onde comprávamos doces e balas, ali na Marechal Floriano. É uma pena, ele conhecia todo mundo na vila, pois a esposa é natural do Rincão dos Bugres, aqui ao lado. Não sei se a mulher vai assumir sozinha o mercado. O pai do Júlio está de olho, para fazer uma proposta, mas vai aguardar uns dias, de modo que não fique feio. Tomara que compre, pois comentou certa vez, que precisaria de mais alguém atendendo,além do filho. Quem sabe assim não consigo a terceira do quartel.
Ficamos o dia todo na cidade. As compras ocuparam a maior parte do tempo, e o Júlio é um negociante complicado. Exige descontos em tudo que compra, e em alguns lugares o impasse com os vendedores, arrasta-se por um tempo considerável. Aproveitei para esperá-lo, ao lado de fora. O ar dessa cidade me fez sonhar. Como ela é grande. Moças bonitas pelas ruas, os automóveis são um perigo. Atravessar essas ruas centrais é uma aventura. Até cinema tem. Seria incrível se eu conseguisse sair lá de fora e morar ali.
O Júlio frequenta a zona, que fica na parte oeste da cidade. Fui lá uma vez com ele. É uma casa ao lado da outra. As chinas ficam sentadas nos pátios, debaixo das árvores a tomar chimarrão. O Júlio vai sempre na mesma. Eu não entendo e nem ele explica. Fidelidade na zona, essa é boa!
Quando fui junto, fiquei do lado de fora, conversando com uma chinoquinha bem nova, que após se insinuar bastante, viu que eu estava sem dinheiro e resolveu prosear. Me passei por experiente, e disse a ela que frequentava uma casa famosa, em Giruá. Ela pareceu ficar impressionada. Como é fácil enganar as pessoas. Eu nunca estive com uma mulher.
Marisa era o nome dela. Sobrinha da dona da casa, a Doraldina. Veio lá das bandas da Atafona. O pai morreu há dois anos, e a mãe não conseguia manter os oito filhos, de idades vizinhas. Faz seis meses que está ali. Diz que gosta da vida que leva, mas seus olhos miúdos, dizem o contrário. Contou que figurões da política comparecem ali,toda semana. Deixam os carros na rua de cima, e descem se esgueirando, até ali. Um certo edil, só aparece para conversar, mas paga.
Houve uma morte la na rua, há cerca de dois meses. Dois sujeitos desentenderam-se, por causa da Lurdinha, que faz ponto na casa da Tereza Louca. Um deles baleou o outro, na altura do pescoço, e o infeliz morreu pouco depois.
O Júlio não demorou muito no quarto, aparecendo altivo no pátio, ao lado da acompanhante. Durante todo o trajeto de volta, veio se gabando. É um palhaço.
Mamãe já preparava a janta, quando cheguei. Sopa de galinha com pouca carne. Odeio. Só a cabeça, os pés e pescoço. Parece que o bicho fica olhando a gente, de dentro do prato. Papai se lambuza. Desconfio, que ele é capaz de comer qualquer coisa, com banha e sal. Preferi tomar um copo de leite e comer um naco de pão com nata.
Fui cedo me deitar e meu corpo todo doía, devido à cavalgada. Deitei e adormeci rapidamente, porém, meu sono foi agitado. Sonhei que entrava nu, debaixo da cascata e a água ardia de tão gelada. Depois, ouvi alguém chamando ao longe. Avistei, então, dona Cecília, na margem, totalmente despida. O corpo, muito branco e voluptuoso, os seios balançavam, ao fazer sinal para que eu fosse até ela. Meu corpo tinha urgência em possuí-la. Mergulhei,mas meus braços pareciam muito pesados para nadar e demorei até chegar à margem. Quando saí da água, quem me esperava de braços abertos, era a Tereza Louca. O corpo estava mutilado pela lepra. Os dedos haviam caído e no lugar dos olhos, dois buracos pustulentos. Acho que gritei. Acordei encharcado de suor e com as primeiras luzes do alvorecer, entrando pela janela.

___________________________________________________________________________________________________________________
* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

14 comentários:

Jessica Pagliai disse...

Kindo texto, parabéns :D

Beijinhos

---
www.jehjeh.com

M. Martins disse...

Ah gostei do texto, e do modo como ele descreve as coisas, bem de antigamente mesmo!

parabéns pelo blog, visite o meu também :)

bjs

Gil disse...

Puta. Achei que era uma coisa real da sua vida, e era um conto. rs

Fábio Flora disse...

O texto tem um bom ritmo, a pontuação é adequada, mas ainda esbarra em alguns clichês, como "primeiras luzes do alvorecer". Abraços e sucesso com o blog!

Pobre esponja disse...

O Júlio frequenta a zona: huahuahua
Seus textos são muito bons, sempre.
Por alcunhar seus personagens tão "intimamente", passa-se a impressão de realidade inicialmente.

abç
Pobre Esponja

Thunderbirdsampa disse...

Achei a melhor de toda a sequencia,porem gostaria de ver sua versatilidade saindo do que a gente chama aki no curso de acão direta,que é a sequencia cronologica,que acha de um salto no tempo?

C & I disse...

Hehehe bem legal,versatil,com indentidade! curti mesmo eu achei q era real rs

otimo blog bem legal o espaço parabens

e não pare heinnn


http://contemporaneoeindiscreto.blogspot.com/

roberyk disse...

Bela continuação, agregando elementos do cotidiano. Espero a VI e logo.

Anônimo disse...

Cara, mto bom esse capítulo, não posso ler tudo agora, mas na esperança de que os anteriores e posteriores tenham a mesma qualidade, virei seguidor pra ler essa história do início ao fim.

Augusto Bier disse...

Vai escrevendo.
De puxa-sacos o blog tá cheio.
Depois a gente conversa como gente grande.

Augusto Bier disse...

Vamos ocupar o nicho dos novos escritores missioneiros?

Eunísia Inês Kilian disse...

Boa continuidade dos textos, é a história em rede.
Abs
Eunísia

Anônimo disse...

Cada vez melhor, Fábio! Texto com boas reflexões, como a da galinha no prato. Bom mesmo!

Abraço!

Aflaudisio dantas disse...

kra que belo texto rapaz!!!
gostei muito
a frase "meu corpo tinha urgência em possuí-la" foi o melhor pra mim