sábado, 27 de março de 2010

Em carne viva VI !




Um sabiá-laranjeira pousou na cerca, a poucos metros de onde meu pai(que pitava um cigarrão de palha) e eu, estávamos sentados, após o almoço.
O bichinho logo alçou voo. Como eu queria ser como ele. Poderia ir onde quisesse, sem destino, ou poderia, então, contemplar tudo, do alto de uma árvore. Santo Ângelo, quem sabe? Ou uma migração maior. Porto Alegre. Sim! Porto Alegre. Ganhar a vida seria fácil,lá. As firmas que anunciavam na rádio, eram muitas. Só não trabalha, quem não quer.
Papai tem o olhar perdido no horizonte. O que deve passar na cabeça, de um homem como ele? Dizem ser cabeça dura, mas na verdade, é muito prático, e isso é algo negativo. Não gosta de estender situações, e por isso, resolve-nas logo, mesmo que não seja da forma correta. Talvez tenha adquirido isso com as judiarias do trabalho brutal, na lavoura, quando era criança. Alfonso, meu vô, que era tropeiro, viuvou e acabou indo embora. Levou quatro filhos, no entanto, três ficaram com alguns tios. Papai, só saiu da lavoura quando tinha vinte e poucos anos, com o auxílio de um irmão mais velho, lá dos lados de Cacequi, e então montaram a ferraria. O irmão foi vitimado pela meningite, e assim, meu pai assumiu sozinho o negócio. Daí o casamento com minha mãe, que era moça criada por uma família da Restinga. Teve complicações quando nasci e não pode ter mais filhos.
Ser filho único é um problema. Eles decidem por mim. São bons pais e eu os amo. Não os decepciono. Ajudo em tudo, fui o melhor na escola e ainda participo do coral da Igreja.
Papai cochila sentado. Uma mosca caminha em seu nariz. O cigarro, apagado no canto da boca. Coitado. Como sonhar com coisas diferentes, se só conheceu o universo limitado da vila? Enxergo mamãe, caminhando de um lado para outro, na cozinha, sempre limpando.
Ultimamente, tenho sentido algo diferente, uma expectativa para algo... não sei o quê exatamente, algo que está para acontecer, ou mudar. Espero que os planos de mamãe, de arranjar compromisso para mim, com as meninas da vizinhança, não se concretizem. Elas não são bonitas. Ouvi meus pais cochichando, a respeito do baile,no mês que vem. Quem sabe até lá, eu não esteja mais aqui. É uma ilusão. Sei que mudar esse destino, que me espera aqui, é muito difícil.

_______________________________________
* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

14 comentários:

Angélica Nunes disse...

Já pensei coisas assim.. e a minha vida parece um pouco com a do personagen do teu conto.. mas confesso que não troco minha vida por nada...

Francis Martin disse...

Linda sua história, meu pai e minha mãe, embora não vivam juntos são meus heróis pelos valores que cultuaram ao longo da vida. Essas coisas de arrumar um "caso" são bem típicas. Meu pai e a mulher dele também estão tentando me encaminhar com uma garota, que aliás, também não quero.

roberyk disse...

A cada leitura, fico na espectativa da próxima, do que acontecerá com o personagem principal e os coadjuvantes. Essa história, sem sombra de dúvidas, cativou. Sei que sequências são complicadas, mas, até o presente momento, vem demosntrando a sua competência. Uma das coisas que me chama mais a atenção para este leitura, é sua fluidez, sua linguagem simples que nos relembra e muito a infância e para outros, os leva para um mudo imaginário do qual não fizeram parte e só têm notícias pela televisão.

Leonardo Costa disse...

O texto e a foto ficaram perfeitos;;

Pobre esponja disse...

Gostei dos detalhes, de todos, e senti um paradoxo interessante entre uma coisa íntima e primordial no texto, e os detalhes, supostamente, banais: "Uma mosca caminha em seu nariz".

abç
Já falei que sou seu fã - blogs que destoam me atraem, e amo ler-, mas reafirmo: sou seu fã!

abç amigo
Pobre Esoponja

Unknown disse...

Não li toda historia, mas por esse "capitulo" assim digamos, posso dizer que gostei. Ótimo vocabulario.

Matheus Rego disse...

É sempre um prazer ler o que você escreve aqui. Ao som da musica certa para cada texto! Essa parte transparece de forma bem clara um olha nostálgico para por parte do menino, para aquele presente que ele narra em tom de passado. A perspectiva para o futuro de seus sonhos- que parece estar fadado ao fracasso - põe o presente em um lugar triste do qual ele se lembrará como uma época em que pode ter saído daquele lugar e mudado de vida, mas acabou estagnando. Pelo menos foi minha leitura. De toda forma, muito bom mesmo. Abraço

Soraya disse...

Amo textos assim... Um pouco de tom regional, mas que o torna universal... Uma verdade em muitos cantos por aí. Vidas limitadas,nenhuma expectativa... Adorei o blog.

Thunderbirdsampa disse...

Ja esta se tornando monotono eu vir aqui para insistir e dizer a mesma coisa sempre.Nada muda,o texto é primoroso,sintetico,refinado na simplicidade.Ponto.Agora vou falar sobre teu player,uma vez voce errou ao colocar a musica,nao lembro qual foi,depois foi impecavel,embora nao precise,a musica agrega aqui.Eu poderia vir so para escutar musica de qualidade.

Angélica Nunes disse...

Opa! Passasno aqui pra agradecer o comentário e reafirmar que os posts desse guri são muito bons.. quase você se vê dentro da história! e História boa, é assim.. ^^/
Beijos!

Gê da Boa disse...

Olha, pessoalmente odeio músicas em sites, e você possivelmente perderá muitos visitantes por isso. É apenas uma dica, não me leve a mal.

http://bardoge.blogspot.com/

Anônimo disse...

E aí Fábio! Já disse antes, mas faço questão de publicizar que esse texto está muito bom. A sequência dessa história está coerente, e muito boa de se ler.

Abraço!

Lelê Mafalda disse...

Os pais costumam marcar de forma profunda nossa vida, e e´tão bom quando marcam de uma forma bonita.

ilana Maia disse...

tudo mt bom, as palavras se encaixam perfeitamente e o enredo é emocionante... Mt legal... Parabens