terça-feira, 30 de março de 2010

Em carne viva! VII




Tenho um primo que é louco,ao menos, todos pensam que é, inclusive eu. Até o instante que me vi rondando a morada dos Polozzi. Eu estava mais louco que ele.
Toinho, filho do seu João, da marcenaria, esteve em minha casa, ontem à tardinha. O "vagal", em vez de descansar após o trabalho, vai jogar conversa fiada de casa em casa e tomar chimarrão. Ele trabalha na manutenção dos prédios do município e é zelador da escola, onde mora com a família. Não simpatizo muito com ele, pois tem o olhar desviado, não fixa o olhar em ninguém. Mamãe diz que pessoas assim são falsas. Contou dos boatos que correm pela vila. Polozzi teria construído uma peça, anexa à casa, para isolar dona Cecília. Além disso, vendeu toda a mercadoria e desativou o bolicho. Dizem, que anda enrabichado por uma chinoca, que mora no Mato Grande.Os vizinhos acham que o safado deixa a esposa enferma, sozinha, e inclusive com pouca comida. Meu Deus! Até onde vai a insensibilidade humana?
A infeliz foi afastada dos filhos, e agora, o marido arrumou outra. Imagino como a próxima está sofrendo. O bolicho deve ter sido fechado, provavelmente por falta de freguesia. Ninguém iria arriscar uma proximidade maior, com a ameaça que ela representa.
Não consegui dormir direito. Um ódio tomou conta de mim. Eu não sabia o que era isso, até então. Era um ódio contra Polozzi, contra uma doença que afasta as pessoas, e contra mim mesmo, por ter dezoito anos e não saber nada da vida.
A noite foi interminável. O que eu poderia fazer? Eu não tinha nada a ver com isso, eu não queria ter. Dona Cecília era uma pessoa boa, por isso que eu me indignava tanto com o sofrimento dela. Mentira. O que eu queria era outra coisa. Uma coisa que eu desejava, desde que a vi se banhando, nos fins de semana na cascata. Isso é normal. Eu quero que seja. Qualquer um desejaria uma mulher bonita como ela. Deus me perdoe. Como eu poderia desejar uma mulher, portadora de uma enfermidade dessas? Embora ela ainda não apresente maiores sinais, eu sei que a doença está ali, a lhe corroer lentamente a pele.
Poderia sugerir a minha mãe, ir até lá. Não sei se ela teria coragem ,mas seria um desencargo de consciência. Mas não é isso que quero.
O grande relógio marcava cinco horas, quando finalmente tomei o caminho da casa dos Polozzi, com uma sacola. Eu levava uma cambuca com o que havia sobrado da galinhada, que mamãe havia preparado na noite anterior (que, aliás, não comi muito), duas pernas de salame e broas de milho.
Dobrei minhas calças até os joelhos, pois havia ainda alguma lama, na ruazinha que levava até o final da vila, onde ficava o bolicho. A Estação Férrea estava iluminada por um resto de luz que emanava do lampião, quase sem combustível. O prefeito disse que voltaria a funcionar em quinze dias, assim que os trilhos defeituosos fossem removidos.
Eu contava com a escuridão, quando cheguei lá. Os cachorros ficaram agitados e resolvi me esconder no capoeiral, em frente às casas. Seria um desastre se algum cusco resolvesse me desentocar dali. O que poderia alegar,a uma hora daquelas? Caçar? Com uma sacola cheia de comida?
Havia realmente uma peça construída, junto à casa. E luz dentro dela. Uma coruja piou perto e me arrepiei. Mau-agouro? Eu ainda poderia dar meia-volta e regressar para a segurança do meu quarto. Minhas pernas pareciam fracas. Notei uma movimentação na lateral da casa. Um vulto indefinido. Pouco tempo depois, Polozzi saiu, com sua carroça e sumiu, dobrando na esquina da última casa. Meu coração disparou. Eu queria e não queria. Era contraditório. Eu sabia que as coisas não seriam mais as mesmas quando avancei. Os cachorros ,estranhamente pararam de latir. Olhei para as casas vizinhas, algumas ainda estavam com as luzes acesas. Tomara que ninguém tenha me visto. Senti as minhas pernas discordando da cabeça, e elas foram me conduzindo em direção à casa de Cecília Polozzi.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

9 comentários:

Unknown disse...

muito interessante o texto,
parabens pelo blog.

Jeh Pagliai disse...

Gostei do texto, tenho acompanhado a "serie" deles...

Parabéns :D

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www.jehjeh.com

Thunderbirdsampa disse...

Acho que é uma novela,continua mantendo o climão bucolico sem grandes sobressaltos,o que mostra a capacidade do escritor.

Eliana disse...

Vou voltar aos textos anteriores para me inteirar...espero que estejam tão bem escritos quanto esse. Muito bom mesmo! Continua?

www.dopantanalaovelhochico.com.br

Je disse...

Curti bastante, adoro essa idéia de "novela"- Mas só em blogs, detesto na tv, alias, odeio tv.

Posso dar uma sugestão?? Olhe eu .. nem o conheço e ja vou palpitar, (perdoe-me , aprendi a admirar arte desta forma, palpitando..)

Creio que se você pulasse linhas ficaria mais fácil de ler, sabe? O texto está ótimo, muito bem escrito, mas imagino que se fosse dividido seria ainda mais gostoso de ler.

Boa semana.

Thamyzinha Iwasaki disse...

muito interessando,gostei...^_^

Gleise Erika Cavalli disse...

Oi
desculpe por demorar a comentar ..
adorei ler o 'texto/conto' é grande, mas desde que comessei a ler fui até o fim, é algo que prende o leitor, gostei mais ainda quando vi no final que foi baseado em fatos reais ..
Creio que se fosse feito uma mini série com essa história, iria fazer sucesso
Muito bom ;)

- http://gleerika.blogspot.com/

Niemi Hyyrynen disse...

Hum, não vale, vc parou a estoria na parte central da coisa, agora sou obrigada a ler o resto. kkkk.

Samarav disse...

aaah voce vai continuar a historia né? rs.

muito bom mesmo ;)
parabens pelo blog, está lindo

beijo