terça-feira, 27 de abril de 2010

Em carne viva IX !





- Mas padre, não é justo...

Padre Lara suspirou e lançou um olhar de enfastio por sobre os óculos.

- As coisas sempre tem um significado. Cabe a nós sabermos interpretar.

Olhei para aquele homem gorducho, as mãos rechonchudas, os dedos curtos e grossos. Poderia me lembrar um bebê, não fossem os tufos de pelo.

- Teus pais estão preocupados contigo.

Não era para menos. O que havia acontecido no dia anterior, foi algo totalmente incomum em um lugar onde a calmaria era quase absoluta.

Cecília compareceu para assistir a missa dominical. Todos já estavam acomodados quando ela entrou. Primeiro, olhares de espanto, depois cochichos e murmúrios tomaram conta da igreja. Tudo convergia para a figura da mulher toda de preto. Era um luto? Acho que um luto para sua condição, suas limitações e infelicidades. Pensei em quanto a deixei feliz quando apareci em sua casa, e não demonstrei medo.

Ela avançou, o olhar distante, ignorando todos, que se encolhiam e recuavam, evitando sua aproximação. Encontrou assento na extremidade de um banco, à direita do altar, onde o único casal sentado, rapidamente levantou e ficou junto à parede.

Alguns mais exaltados já falavam alto, não se importando que ela ouvisse. "É louca!", "como o Polozzi deixou a leprosa sair de casa?", "irresponsável, colocando em risco até nossas crianças...".

O padre que até então parecia paralisado, resolveu abandonar o altar, e falar algo, que para mim era incompreensível, visto da distância em que estava, além de minha mãe a falar ininterruptamente ao meu lado. O padre gesticulava contido, mas dava para perceber que apontava a porta lateral, talvez sugerindo uma conversa do lado de fora.

Ela embora olhasse o padre diretamente nos olhos, não parecia disposta a sair, o que desencadeou reações mais hostis por parte dos fiéis mais próximos. O Chico Laçador, bruto como ele só,deixou a coitada da Maria só, e começou gradualmente a alterar o tom da voz enjoada, de bêbado. O padre notando que o homem estava prestes a partir para a agressão, tentou contê-lo.

Cecília não parecia intimidada. Manteve o mesmo semblante de alheamento que ostentava desde sua entrada na igreja. Chico puxou o lenço do bolso, um pano encardido, enrolou a mão direita com um gesto brusco, agarrou Cecília pelo braço, arrancando-a do banco, para o espanto de todos. Ela acabou se desequilibrando e caiu de joelhos, o que não abrandou a fúria do homem, que agora a arrastava deitada pelo corredor. Ela se debatia e gritava tentando se libertar.

Quando dei por mim, já havia pulado por sobre as pernas das pessoas mais próximas e desferido um soco no nariz do Chico, que esguichava sangue para todos os lados. Lembro do vestido da dona Iolanda, todo branco e esborrifado de sangue a olhar completamente incrédula.

O Chico forte como é, não acusou muito o golpe, exceto o nariz todo torto. Apenas dizia: "O guri do ferreiro me acertou! O guri do ferreiro me acertou!”.

A presença do padre ali na comunidade, segunda pela manhã cedo, era sem dúvida coisa da minha mãe. Ela deve ter pedido para ele conversar comigo, visto que papai não tinha muito jeito para a coisa.

- Padre, não aguentei quando vi o Chico arrastando a dona Cecília. Foi judiaria.

- Isso não justifica tua atitude bestial. Não é coisa de homem de bem. Quem faz essas gauchadas, esse tipo de coisa é o Neco da Merência, Deus que me perdoe. É isso que tu queres? Ser uma alma sem eira nem beira. Brigar dentro da Igreja foi demais. O que falta agora? Beber nos bolichos?

O padre era sensato, mas a vida que escolheu o impedia de entender certas coisas que para mim são latentes. Coisas além do sentimento fraternal.

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* Este romance foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

14 comentários:

Macaco Pipi disse...

ui
que delicia!

Anônimo disse...

Muito legal,Fábio! Gosto da cadência que tu tens imprimido na narrativa do "Em Carne Viva!". Além da coerência, que é sempre necessária em continuações. Esta dando muito certo!

Daniel Silva disse...

tá com visita e seguidor pra caramba, hein?

legal escrever seus posts baseado numa história. você escreve muito bem.

abraço!

roberyk disse...

Parece-me, meu caro amigo, que tens pela frente uma empreitada que jamais havia imaginado, dito a distância do caminho a percorrer. A menos que, de forma ceifada, o que seria um pecado mortal para os que esperam os próximos onze ou doze capítulos, encerre de maneira brutal tal romance.
Em palavras chulas: Cara, já não cabe mais dizer parabéns pois imprimiu um ritmo tal na história que, querendo você ou não, deverá dar prosseguimento. A cada capítulo vens acrescentando novas personagens, o que vai tornando a leitura cada vez mais especulativas para nós, e, obriga-o a desenvolver essa trama. Isso sem sombra de dúvidas virou novela, cujo final está longe de acontecer. Meu instinto diz que pela qualidade e pela forma reversa da modernidade da escrita que estamos acostumados, a obra vai longe, com particularidades que vi em pouquíssimos autores.

Thunderbirdsampa disse...

Fabio faziam dois anos que não lia um livro inteiro, geralmete leio um pedaço e largo,acho que com tua fabula ai vou ate o final.Perfeita simetria.

Até mais.

Dddc disse...

Oi Fábio.

Gostei do que li, vou dar uma lida nos capítulos anteriores para não ficar perdida na história.
Ao que me parece, tem alguma coisa por trás da defesa de Cecilia.. será que estou enganada? rsrs
Vou lá atrás pra tentar saber, e voltarei também pra conferir o que ainda tem por vir.
Um abraço!

Matheus Rego disse...

Cara, tinha ficado sem ler o capítulo VIII, acabei de ler pra me contextualizar. É incrivel a sua habilidade de descrever coisas e torná-las tão imagéticas. Você transforma palavras em imagens de forma muito eficaz, já comentei isso anteriormente. O texto, então, é de uma pessoalidade e particularidade que se torna tão comum e agradável ao ponto de tornar-se universal. Quando descreve o medo do rapaz em relação a doença de Cecília, eu mesmo senti uma aflição por ele. Apoio muito a idéia de transformar o conto em romance. Espero que dê tudo certo.

Em seu comentário em meu blog, você disse que mora no interior do RS. Sou de Curitiba, mas estou fazendo faculdade de cinema em SP. Um rapaz, dessa faculdade que eu estudo acabou de lançar um filme em circuito nacional e eu quero te recomendar, se passa justamente numa cidade de interior do RS e mostra a adolescência de um garoto, muito semelhante ao relato que você faz aqui com o romance, apesar da diferença de tempo, há uma semelhança na essência das obras, enfim, o nome do filme é "Os Famosos e os Duendes da Morte", se não estiver passando no cinema aí é só procurar na internet.

Enfim, queria também te dar a dica de pensar em escrever roteiros. Seu texto tem as qualidades pra isso. Abraço!

Unknown disse...

Bem tocante esse seu texto, está de parabéns... seu blog me parece ser muito bom, ainda não tive tempo de ler os outros posts, mas esse me surpreendeu! =]

Maranganha disse...

Cara, quando sairá o romance? Espero muito, pois adorei esse texto, você tem um bom ritmo. Parabéns.

Helena W. Brandão disse...

Nosso, ótimo conto. Consegui visualizar todas as cenas.

Obrigada pela visita ao meu blog! Volte sempre. Estou te seguindo.

Beijos,
Helena (http://so-letras.blogspot.com/)

Kimura disse...

D+ o seu texto. Gostei muito mesmo.
O conteudo de seu blog é bem interessante, meus parabéns e me desculpe pela invasão.

Te convido a conhecer o conteudo de meu blog, espero que goste também.
Abraços!

Kimura.
http://kimuratorredevidro.blogspot.com/

Kimura disse...

Pow Fabião, super fã d King e tmbm n me empolguem com IT, mas agredeço pela visita e torço para q goste do resto do conteudo para qm sabe ser um seguidor tmbm.
abços!

Kimura.

Lou Marciano James disse...

Salve man!
Tu és um cronista de mão cheia!
Essa perspicácia de unir fatos verídicos à ficção traz alma ao texto.
Certa vez, produzi um romance: 'Vermelhos como chama' tmb unindo realidade e ficção: http://memoriaseletras.blogspot.com/
Qdo puder, de uma olhadela...
Grd abç & muitas ins-pirações p/ ti.

Gabriel Pozzi disse...

mestre, mestre, mestre!!
tirei um momento que tive aqui pra reler o último capitulo, e avançar para esse.
como já havia dito, vc está conduzindo isso aqui de um jeito excelente, aposot que ninguém quer que a obra acabe, pois você conseguiu envolver a todos que a acompanham desde o primeiro capítulo.

não esqueça de me avisar quando sair uma continuação, e obrigado por voltar sempre ao meu blog! :)

http://songsweetsong.blogspot.com/