terça-feira, 6 de abril de 2010

Em carne viva VIII !





- O que você quer, menino?

Eu estava sentado em uma cadeira de palha, perto da janela. Não sabia o que responder à mulher, em pé, junto à mesa.

- O gato comeu tua língua?

Era surpreendente, que embora contaminada pela doença (se bem que, quando a trouxe de Santo Ângelo, em nenhum momento se referiu a isso), ela mantivesse aquela postura um tanto agressiva, como se ainda estivesse comandando alguma das brincadeiras a beira do rio.

Era um comportamento que intrigava. Não era comum mulheres agirem assim.

- Eu estava aqui perto. -tentei argumentar.

- E...

- Resolvi chegar para ver como a senhora estava passando. -a voz parecia não ser a minha.

- Eu o enxerguei no mato, desde as cinco e pouco. Por que não veio antes?

Eu não esperava aquilo. Precisava de uma mentira. Eu não poderia dizer que estava esperando Polozzi sair.

- Eu ia pescar, mas mudei de idéia, é isso.

A expressão de incredulidade em seu rosto, dizia tudo. Mas eu estava curioso para saber se ela tinha noção do que estava acontecendo, pois eu não sabia.

- O que tens nessa sacola? Não parecem apetrechos de pesca...

Como não esbocei reação, nem resposta, ela, decidida, contornou a mesa e parou próxima a mim, como a testar se me afastaria. Pegou a sacola que estava junto as minhas pernas.

- Olha só, o que temos aqui. O cheiro está bom.

O tecido da sua roupa roçou meu braço.

- Arroz, salame e broas. Está planejando fugir de casa, menino? -caçoou.

Não gostava quando me chamava de menino. Era maternal demais e me sentia cada vez mais diminuído naquela situação.

A peça construída não possuia nenhum armário ou algo semelhante, para armazenar alimentos. A mobília se resumia na cadeira, a qual eu estava sentado, a mesa rachada e ao canto, coberto por um mosqueteiro, o catre, com um bonito acolchoado na cabeceira. Imaginar que uma pessoa fizesse de seu universo aquele quadrado de madeira rústica era dolorido.

O cheiro de limpeza se misturava a uma leve fragrância de maçã. Era uma das águas de cheiro que eu tinha visto nas prateleiras do bolicho.

Ela não apresentava nenhum sinal visível da doença, embora usasse um vestido escuro de mangas. O cabelo castanho estava muito brilhoso, a face rosada. Os olhos tinham uma vivacidade que faltavam aos meus.

- É...para a senhora.

- Acha que estou passando fome, ou é uma gentileza?

Como tratar com uma mulher tão direta? Era uma pergunta sem resposta para mim, até então.

- Não! Eu nunca pensaria isso, vocês são comerciantes fortes, isso nunca poderia acontecer. Foi mamãe que pediu para trazer.

Outra mentira veio, mas sem eficácia. Ela pareceu indiferente.

- Então você fica para o almoço.

Não pude, nem queria recusar. Eu queria prolongar aquela situação de jogo por mais tempo. Meu corpo reagiu, excitado. Podia ouvir, sem esforço, as batidas do meu coração...

____________________________________________________________________________________________________________________
* Este romance foi livremente baseado em uma carta, que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado. A doença então conhecida como lepra, apareceu isoladamente, mas deixou as marcas que a acompanham desde os tempos bíblicos: preconceito e medo.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

14 comentários:

Laura Ribeiro disse...

Ótimo texto, é até engraçado ver a maneira como o menino buscava fugir das perguntas diretas da mulher.

Anônimo disse...

Mais um belo trabalho. A aproximação do personagem com a "leprosa" cria um clima forte de tensão ao mesmo tempo que cria um bom gancho pra parte 9, do "Em carne viva!".
Essa tua trama tá muito bem construída, detalhe por detalhe...
Parabéns, Fábio!

Abraço!

Diário de um Civil disse...

Excelente,texto muito bem elaborado,os prendendedo até o fim,são raros blogs com ótimos conteúdo

Jeh Pagliai disse...

Gostei muito do texto.
E confesso ter ficado com algumas duvidas, mas que me prenderam ainda mais...

Adoreii!!!

Beijinhos

---
www.jehjeh.com

roberyk disse...

O clima começa a esquentar. Cara, você está deixando um leque de possibilidades para o desfecho da trama. Não sei até que ponto isso tudo é real e se há ou não ficção no meio. Claro que minhas idéias estapafúrdias ficam em turbilhão, e sabes do que me refiro. Agora, que você está nos apresentando uma obra prima, é indiscutível. E manda logo o próximo capítulo, não se maltrata o leitor assim, hehehe.
Parabéns meu velho, está ótimo.

Patricia Cruz disse...

Adorei o texto. Muito bom.
Parabens pelo blog.
Estou seguindo. :)

Daniel Silva disse...

adoro contos. belo blog

curti a foto, é a medusa?

Thunderbirdsampa disse...

Outro palpite claro que como fã e sem minima int enção de interferir na obra. Encontrei aqui um mise-en-scene que que encaixa perfeitamente.Escrita,visual e sonoridade.Quem sabe um corte de tempo ou talvez uma avalanche na estoria que voce esta conduzindo com uma leveza impresionante,experimentar ou não, é criterio,mas continuo na expectativa.

BLoG do CHARQuE disse...

não vim pra comentar o post (que é bom) mas pra responder a um comentario no blog dos professores, como você deve ter visto o mesmo se trata de um blog de Humor e de maneira nenhuma quiz generalizar dizendo que todos possuem aquelas características mas sim que todos possuem ao menos uma delas ... e onde estudo existem todos aqueles!!!

vlw pelo cometario!

http://blogdocharque.blogspot.com/
O Melhor e + Arretado Blog do ... Meu Bairro!!! =D

Matheus Rego disse...

Opa Fábio, tudo bem ? Cara, eu fui indicado a um selo de blog e aceitei o reconhecimento, isso, no entanto, implicava que eu indicasse outros 7 blogs ao selo, o seu foi um dos que indiquei - afinal to sempre lendo seus textos, e acho do ca..... - enfim, se estiver interessado em postar o selo em seu blog, dê uma passada no meu e dá uma lida nas regras:

http://boitedufilm.blogspot.com/2010/04/este-selo-especial-eu-ganhei-do-blog.html

Se não tiver interesse, também, sem problemas!

Abraço

Gabriel Pozzi disse...

Grande Fabio!
O trabalho que você está fazendo com esse conto está, sem dúvida, uma obra de profissional! :)))
Qdo terminar terei o prazer de reler a história inteira, estou adorando!

E muito obrigado por me linkar, acredita que já apareceu gente no meu blog dizendo que me encontrou pelo seu blog??
Irei linkar blogs excelentes no meu tbm, e com certeza vc estará lá, só estou aguardando algum momento que eu tenha tempo para fazer isso! :|

Um abraço, e volto sempre aqui! ^^

ps: tem coisa nova no SsS! ;D

http://songsweetsong.blogspot.com/

Unknown disse...

texto bem elaborado
na parte do menino fugindo das perguntas eh meio engraçado xD
gostei
rs


http://vagalnerdkawai.blogspot.com/

Anônimo disse...

Obrigado pelo comentário no meu blog.
Muito bom o conto, a sua escrita é bem desenvolvida. Me lembrou os bons tempos que também escrevia histórias...

Eunísia Inês Kilian disse...

Posso considerar uma história em teia, seguindo já a história de aproximadamente VIII capítulos. Muito curioso. Parabéns!!!
Abs,
Eunísia