terça-feira, 11 de maio de 2010

Última parada!





- Mãe, o moço da imobiliária está aqui.
O velho era tão míope que não notou que aquele enorme homem, com um improvável casaco de nylon azul em uma tarde de calor como aquela, um imundo pano de prato enrolado na mão, parado à sua porta, não era exatamente o estereótipo do corretor de imóveis.
Vaso ruim não quebra. A máxima de papai havia se concretizado. O velho depravado tinha razão. Quando Cale caiu como um saco de batatas a seu lado, apostou todas as fichas que também partiria para uma nada agradável viagem ao inferno, afinal tinha um buraco na lateral da barriga e só dois dedos inteiros na mão esquerda.
Após atirar em Cale, sabia que precisava sair dali. Procurar ajuda. Mas precisava estancar a hemorragia. Virou-se com dificuldade e com todas as limitações que a obesidade lhe impunha, notou que havia levado um tiro na transversal. A bala entrou, atravessou a espessa camada de gordura e saído na parte posterior, não atingindo nenhum órgão vital. Engatinhou até a gaveta do balcão da cozinha, arrancou-a espalhando inúmeras coisas pelo chão. Achou o que queria. Uma caixa de lenços umedecidos, álcool e cola Super Bond. Fez duas buchas e trincando os dentes, jogou o álcool, obstruiu os orificios causados pela bala. Em seguida, gastou toda a bisnaga da cola. Pronto. Lacrado. Ia ver no que daria. Oito comprimidos de analgésico e já estava em pé. Amarrou o pano de prato como um torniquete na mão ferida, pegou a arma de Cale e abriu uma fresta na porta para vislumbrar o corredor. Nada.
Estava tonto, a pressão havia baixado devido aos comprimidos. Cambaleando, saiu com a pistola em punho dentro do bolso do velho casaco.
A sorte parecia ajudar. Em frente, caminhões de bebida abasteciam o Gaúcho. Oktober. Bueno, dessa estava fora.
Desceu pela Bento Gonçalves e apertou a campainha da terceira casa.
- Vamos entrar, rapaz. O sol não está sendo amigo.
Caramba, tudo estava conspirando a favor. Imobiliária. Pois sim, seria o moço da imobiliária.
- Liguei para lá e me disseram que mandariam alguém mais a tardinha.
-Estava aqui perto e aproveitei.
-Ah! Sente-se ali. Mãe, traz um cafezinho.
A estreita poltrona praticamente o entalou e os pés de madeira rangiram ameaçadoramente.
-Bom, quero vender esta casa e comprar um apartamento, o pátio é muito grande e somos só eu,a patroa e uma neta..
- O senhor poderia me mostrar a escritura?-precisava ganhar tempo.
-Claro. Só um momento, vou buscar.
Putz. A cabeça estava confusa e não sabia o que fazer. Poderia fazer os velhos de reféns em caso de cerco. Mas a princípio, parecia que ninguém notou sua incursão ali. Então poderia pensar com mais calma.
Vovó trouxe o café e logo foi ajudar a achar a escritura. Menos mal. Visualizou uma chave de carro em cima de uma mesa. Amaldiçoou sua incompetência Nunca fora capaz de aprender a dirigir.
-Aqui está. Note que área construida é enorme, e bláblábláblá.
Era enervante. O casal de velhos começou uma explanação acerca da história, das dificuldades para construírem a casa. Olhou para o chão e notou um filete de sangue correndo no vinco entre as lajotas marrons. Droga, o ferimento estava vazando. Era questão de tempo para notarem. A campainha tocou. Era a polícia, subjetivou. A mão sobre o cabo da pistola, dentro do bolso suava muito. Olhou para o chão e viu um enorme gato persa cinza e com uma gravata borboleta de bolinhas amarelas a lamber com gosto o líquido escarlate. A sorte estava do seu lado, por mais incrível que parecesse. A conversa amigável do velho na sala era com alguém conhecido. Um vizinho talvez. Estavam a se dirigir até ali.
Levantou-se e buscou o banheiro. Era uma casa antiga, mas bem conservada. Ficava no fundo do corredor. As vozes foram ficando mais distantes. Se fosse a polícia, estava fodido. Nem reféns tinha mais. Olhou para a janela do banheiro. Nem pensar, era muito estreita. Porra, e agora? As tripas se retorciam dentro do enorme ventre. Precisava defecar. Sentou-se no vaso e começou a repensar toda a situação. Tinha realmente como escapar? Podia tirotear com a polícia, mas tinha pouca munição, além de ser burrrice. Não!De burro já havia a piranha da Leila. Estava cansado e a possibilidade de se entregar começava a ser simpática. Alguém bateu à porta. O velho perguntando se estava tudo bem. Claro, não podia estar melhor. Havia participado do assalto mais fracassado da história, foi baleado, se viu obrigado a matar o melhor amigo. Bom, era bom o velho a matraquear ali, sinal que não era a polícia. Ou seria blefe para desentocá-lo. Notou que o papel higiênico havia acabado. Apenas mais um detalhe. Teve vontade de rir. Lembrou da chave sobre a mesa. Iria viajar. Isso. Argentina. Como um tango dramático.
Ao abrir a porta já enfiou a pistola na cara do idoso, o cano da arma lançou o óculos fundo de garrafa ao chão, despedaçando-o.
- Quietinho, vovô. Quem estava aí?
O velho, muito pálido gaguejou:
- A vi-vizinha, disse que houve um assa-sinato no sobrado da esquina...
- Ela já foi?
- Si-sim...
-Olha só. Estou armado,sou perigoso e se andar na linha, o senhor,sua velha e o gato canibal não se machucam
- O que você quer?
- Vamos viajar.
-O quê?
- O senhor vai me levar até a Argentina, para qualquer efeito sou seu sobrinho.
-Meu De-us!
Levou o velho até a sala e anunciou a situação à velha, que parecia mais controlada.
-Peguem material de primeiros socorros. A senhora vai junto para refazer um curativo. E analgésicos também.
A operação durou dez minutos.
O velho falou.
-Sinto muito, não posso dirigir...
-Que porra está dizendo?
-Você quebrou meu óculos.
-Merda, merda! Que porra. Bem azar de vocês, já viveram muito mesmo...
A velha intercedeu radiante.
-Nada disso,filho. Eu dirijo.
Após, carregaram todo o material e quando chegou na garagem teve uma surpresa. Um flamejante Maverick V8, laranja e com o capô e o teto pretos. Inacreditável. Será que a velha seria capaz de conduzí-los até a Argentina. Teria que assaltar uns três postos de gasolina até chegar na fronteira, para saciar a sede do velho Ford.
Sentiu um forte cheiro de merda. Era dele mesmo. Entraram no veículo. A velha no volante, o míope no carona, o gato vampiro a se lamber olhando para o pano sujo atado na sua mão, ele no banco de trás, com a pistola em punho.
- Vamos vovó. Pé na tábua.
A primeira puxada do carro devia ter bebido uns três litros de combustível
Saíram da garagem. A velha manobrou a esquerda e roncando grosso o Mavericão entrou na Marquês, atraindo os olhares dos passantes.
Errou duas vezes as marchas e quando acertou, chapou o pé no acelerador fazendo a dianteira se erguer um pouco. O gato cravou as unhas no banco. A velocidade aumentava gradativamente.Olhou para trás.O velho sobrado e o Gaúcho ficavam rapidamente distantes. A velha manobrou novamente e entrou na Sete de Setembro, sem reduzir. Perdeu o controle, subiu a calçada em direção à porta envidraçada da Igreja que ocupava grande espaço na grade televisiva. Uma faixa pendurada acima da porta dizia "Entre e encontre a libertação!"

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** Trecho de conto originalmente postado no blog http://totolunatico.blogspot.com/ em parceria com os escritores Roberto Kusiak e Zé Sérgio Bechler e que faz parte da trama "Machado,lona e alvejante...".

**Agradeço ao meu vizinho por ceder a foto do Felpudo,para ilustrar o conto.

8 comentários:

Thiago Barros disse...

Muito criativo cara! Parabéns pela iniciativa! Quer saber tudo sobre Copa do Mundo? Acesse http://grandesselecoes.blogspot.com

Cristiano Contreiras disse...

É incrível teu talento pra criar e conceber blogs tão distintos, mas supremos!

estou neste aqui e gostei do que li!

te sigo também neste, abração!

Anônimo disse...

Boa! Essa é a parte que eu acho mais legal!

Eunisia disse...

Texto interessante. Cômico final. Valeu!

Gabriel Pozzi disse...

"Fabião"!
Cara, tenho que me redimir de um "erro", vamos assim dizer...
Um dia desses, no trabalho, deu uma relaxada lá e eu peguei pra ler o final do primeiro ciclo do Em Carne Vivas. Achei fantástico, e até passei o blog prum pessoal, espero que tenham lido '-'
Qdo ia comentar, trabalho chegou, e marquei uma nota mental de te parabenizar ao chegar em casa. Vê se lembrei? Foi uma mancada, mas espero que aceite minha humilde congratulação, mesmo que atrasado! rsrs

E adorei esse conto tbm, embora não tenha entendido como que ele foi produzido por três pessoas! hahaha juro que já tentei escrever textos com mais pessoas, e nunca dá certo! como vcs fizeram isso?

um abraço!

http://songsweetsong.blogspot.com/

Cristiano Contreiras disse...

Obrigado pelo retorno e visita, Fabio

seu blog ja está linkado ao meu, se quiser me seguir agradeço, dai tambem nao te perco de vista.

apareça sempre!

Lou Marciano James disse...

Salve man.
A imagem do gato é muuito sinistra!
Qto ao texto, excelente como sempre.
Equipe coesa, hein...
Abç.

Gabriel Pozzi disse...

Ainda bem q vc sabe que o texto em conjunto q vc mandou o link no meu blog é sensacional, pq eu adorei mesmo!

estou aguardando novas produções aqui no oficina, não se esqueça de me dar um toque qdo aparecerem coisas novas! ^^

um abraço
http://songsweetsong.blogspot.com/