sábado, 12 de fevereiro de 2011

Décadence avec élégance !




É realmente estranho quando se tem um band-aid no supercílio (acho que foi ontem à noite, mas não lembro). As pessoas passam e te rotulam: bêbado, brigão, levou um murro, bem feito.

Sorte minha que não estou nem aí com eles.

Acho que o corte está infeccionado, pois arde e coça muito.
O que faço às duas da tarde em um dia de sol abrasador ocupando a mesa no fundo de uma lanchonete que recende à fritura? Eu poderia dizer que é só para tomar um desjejum, mas estaria mentindo e de mentiras todo mundo está de saco cheio.

À minha frente um jornal, palavras cruzadas: ator do filme Titanic, começa com “Le” e no meio tem uma “Ca”. Acho que é de nível intermediário (não colocam coisas muito difíceis, subjugando nosso intelecto). Vi esse filme há muito tempo e ainda lembro-me da mão da mocinha no vidro bafejado do carro.

Minha bexiga pesa, mas não estou nem um pouco a fim de ir até o banheiro de vaso manchado e urina por todo o chão. Dentro dos bolsos do paletó, papéis variados, desde cobranças, receitas de remédios e cartões de apostas, eu preferia era ter dinheiro ou vales alimentação. Isso! Vales alimentação. Acho bonitos os tickets que a empresa generosamente nos oferece. O valor, a logo da empresa e ao fundo linhas representando um homem empurrando um carrinho de compras. Vendidos por comida. Isso é o que nós somos.

Estendem um prato de comida e em troca você dá o melhor de si para eles: simpatia, colaboração, superação. Todos crescem juntos, eles mentem. E nós compramos essa mentira como se já não estivéssemos no prego há muito tempo. Minha garganta está seca, lembro do enorme sapo que fui obrigado a engolir ontem há tardinha e diria que estou me especializando nisso.

O ambiente dentro da lanchonete é pesado, como o enorme atendente. Ele já me conhece, venho aqui quase todos os dias, mas prefere fazer de conta que sou novidade e chega esbanjando uma pegajosa e falsa simpatia ao empurrar um sanduíche de atum. Eu poderia jurar que está estragado mesmo sem dar nenhuma mordida. Tenho medo de vomitar e afasto o prato depois do homem virar as costas.

É uma questão de costume se é que me entendem. Se perguntarem se preciso disso, diria com a cara mais deslavada do mundo que não. O que não vem a ser verdade. Ali eu posso sentir a vida. Não a vida limpinha e sem máculas que seria a preconcebida como ideal e que a maioria das pessoas almeja. Eu já tive isso e afirmo com todas as letras: enjoa. Mentira de novo. Peguei vocês. Eu daria tudo para retomar a vida que tive há algum tempo, onde eu mandava e outros obedeciam. Eu comprava e outros admiravam. Eu podia. Mas deixa para lá, isso é passado.

Então, voltamos ao meu momento ali, naquela pocilga que chamam de lanchonete “Ki-delícia”, acho que é este o nome, mas não tenho certeza, pois o letreiro da parede está descascado.

Aqui não se cobra nada, a não ser o que é consumido. Não há ninguém dizendo o que devo ou não fazer, que faltam quinze minutos para voltar à merda do escritório, que tenho que dar andamento em vários documentos e isso me dá um conforto passageiro.
Olho para o relógio agora: faltam doze minutos. Se eu não levantar a bunda dali, perderei a lotação.

Dos lados do banheiro, um homem com a o rosto lívido e molhado passa por mim. Possivelmente regurgitou um pouco da sua desgraça no vaso. Ele faz um aceno com a cabeça. Isso, amigo! Talvez tenha expiado um pouco por mim também.

Levanto e busco uma nota de dez toda emarfanhada em meio a muitos papéis no bolso.
Avisto na prateleira um vinho de boa marca. Talvez eu mereça um presente apesar de tudo. Seria como resgatar um pouco de classe.Pergunto quanto é ao atendente que se surpreende. Aquela garrafa possivelmente está ali mais para enfeite que para venda. Consulta o grandão, que lasca: cinqüenta paus!

Reviro o fundo das calças e minha maleta e consigo juntar quarenta e seis e cinqüenta. Ele me olha embora eu não peça desconto: pode levar por esse preço.

A caixa é muito grande e minha maleta não fecha direito. Coloco debaixo do braço e tomo rumo da porta.

Talvez não precise voltar ali.

8 comentários:

Alexandre Rodrigues disse...

Muito bom o seu texto!!! Achei super criativo!!! Parabéns pelo blog. Abraço.

Murilo José disse...

Mew, mto legal seu texto. Gostei, de verdade. Parabens...abraços.
Nao pare de escrever.

Lou Marciano James disse...

Salve Fábio!
Essa ansiedade estranha que permeia o texto num simples ato de comprar um vinho nobre deixa o texto muito interessante.
Como dizia o poeta lusitano:
"Nunca gostei de conjugar os verbos na 1ª pessoa. Sofro de uma torpe ansiedade que adora me roubar a tranquilidade que já é-me tão efêmera." Abç.

Léo W. disse...

Muito bom, cara. Você escreve muito bem e tem muita criatividade. Já escreveu um livro? Um abraço (:

Anônimo disse...

Excelente. Adoro seu estilo, cara. É verdadeiro e nu, embora denso e muito bem elaborado.

Seu Madruga Missioneiro disse...

Grande Fábio! Belo texto! Mas esse vinho de cinquenta contos não o JP, né? hehe!
Um abraço!

Anônimo disse...

Bah, acho que o meu comentário saiu com a identidade secreta! Mas não dá nada! heheh!

Sabrina disse...

Eu acho complicado deixar o passado. Lindo texto! É duro mas não é ácido nem triste, nem cruel. Parabéns!