terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Daniel na cova dos leões




- Dois, talvez três meses, não mais que isso... Se operar suas chances são praticamente inexistentes. Se optar pela cirurgia precisamos de sua resposta hoje mesmo.
Não sabia absolutamente o que falar. Indagar se existia chance de erro de diagnóstico aos empertigados médicos postados na sua frente era tentador, mas o fato de estar lutando a três anos contra um cancêr de pâncreas, um dos mais letais, o desestimulava.
Lidar com a situação a partir dali seria difícil. Como contar à família que agora existia uma data determinada. Antes ainda contava com a esperança de sobrevida mais longa sem prazo, agora chegava ao fim da linha.
Soubera conduzir tudo com um auto-controle que surpreendeu todos, pela gravidade da doença. Virou uma refência, um símbolo de persistência e luta para os amigos e familiares. Todos tinham certeza que venceria o desafio. E agora a decepção. Três sofridos anos persistindo, sofrendo com violentas sessões de rádio e quimioterapia em vão.
Era um homem forte, revestido um semblante austero e impenetrável para quem não o conhecia realmente e até para os mais íntimos. Amparou-se nessa imagem quando foi diagnosticado com a doença pela primeira vez. Todos esperavam que se vergasse ao destino, baixasse a cabeça e finalmente mostrasse a humildade que lhe julgavam faltar. Ele era humilde, mas a seu jeito. Não admitir a fraqueza dos outros era errado? Sinceramente achava que isso deveria servir de estímulo para que melhorassem.
O cargo que ocupava na empresa se encaixou no seu perfil com perfeição. Ele contratava e demitia. O poder nas mãos. A vida e a morte. Sentia o medo das pessoas quando eram chamadas à sua sala. Era completamente justo. Os que eram bons, ficavam, os incompetentes que achassem uma empresa em que o entrevistador não tivesse o seu olho clínico. Mas nunca humilhou quem quer que seja. Mesmo assim nos últimos meses achava que a imagem que deixaria não era das melhores.
Agora estava cercado por inimigos implácaveis. Eram minutos que avançavam e o sufocavam sem apelação. Era um caminho sem volta.
Nunca fora de frequentar igrejas, mas naquela tarde chuvosa, não se preocupou em abrir o guarda-chuva e andou lentamente observando cada detalhe da movimentação das pessoas. O que passava em suas cabeças? Pagar a prestação do carro, da casa, comprar a carne e a cerveja para o churrasco do domingo? Era monstruosamente desigual o peso sobre sua cabeça. A igreja encontravá-se quase vazia. O zelador, um que outro fiel ajoelhado em oração. Que droga fazia ali? Será que aquele refúgio de simbologias seculares o salvaria? Quantas pessoas em sua situação vieram até ali pedir para se salvarem? Sentou-se em um banco e respirou fundo. Por que resistia à religião era um mistério. Seus pais viviam em missas e celebrações. Ele logo que pode se desprendeu daquela obrigação. Agora estava ali. Era um hipócrita sem dúvida. A vida inteira sem crer em absolutamente nada e no final humilhar-se perante um Deus que nunca lhe dera sinal de existir. Não fez os benzimentos nem procedeu como era praxe, apenas pensou meio sem fixar atenção que se Deus existisse que mostrasse o nariz uma vez que seja a ele.
Saiu e perambulou pelo centro da cidade. Os sapatos faziam um floc floc inteiramente encharcados. O cheiro da fumaça dos carros era misturado com os pastéis da padaria. Passou por outro templo em uma esquina. Um jovem quase que imberbe e de terno distribuia folhetos "Mude sua vida hoje!".
O que fazer? Operar tendo chances quase nulas de sair da mesa cirúrgica ou aproveitar os poucos meses que lhe restavam?
Deu meia volta. Apressou o passo e esbarrou diversas vezes nas pessoas que vinham em sentido contrário
Entrou impetuosamente no consultório médico,avisou a secretária que estava ali em caráter de urgência. Sentou-se a aguardar e logo foi cercado pelos três médicos...

12 comentários:

dé.bochado disse...

texto maneiro.
obrigado por vizitar meu blog... estou seguindo akee ok.

http://drehluvz.blogspot.com/

roberyk disse...

Bela abordagem. Quantos de nós irão passar por tais questionamentos e decisões?

Nina disse...

sempre gosto muito dos textos daqui! acho que a partir do momento que temos consciência da morte, algumas coisas são mais simples. a aceitação, eu acho. seria mais fácil se nao nos surpreendessemos tanto - se todos viessemos com prazo de validade... mas, não é assim, e então continuamos com as nossas caixinhas de surpresa :]

disse...

Qual foi a opção dele?

Enfim, muitas vezes só damos signficado/importancia as coisas, pessoas e momentos, quando estamos prestes a perder, ou quando perdemos. A vida poderia ser mais fácil, né? Mas não... Se não fosse tão desafiante viver, não teria sentido.

Lindo o texto!

Abraço!

Pobre esponja disse...

Que referências boa ao texto: Jorge Amado (único, espetacular, divino) e Daniel na Cova dos Leões, essa belíssima história. Parabéns pelo texto em si.

abç
Pobre Esponja

Pobre esponja disse...

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante...conhece essa do Caetano, né? Parabéns pela proposta do Blog , que vez por outra estou a visitar.

abç
Pobre Esponja

Gutt e Ariane disse...

Realmente, porque apelar para "Deus" somente no momento de necessidade? Eis a realidade de muitos... que tem um fé fajuta e só lembram de fazer suas preces diante de uma doença, ou na fila da loterica, com o bilhete salvador na mão... ¬¬
Passar na frente da igreja e fazer o sinal da cruz, e chegar em casa e bater na mulher ou nos filhos? Ser desonoesto no trabalho, com os amigos ou consigo próprio...

O psique Humana é realmente um mistério...

The Onna Girl disse...

Geralmente é sempre assim, as pessoas só pensam em Deus quando precisam de algo, não só de Deus, as pessoas só lembram umas das outras quando precisam de algo ...

Gil disse...

Daniel na cova dos leões tmb é o título de uma música do Legião Urbana. O nome da música fica estranho levando em conta que não é todo mundo que conhece esse capítulo da bíblia, que é até bonito. A música tmb nao tem muito a ver com esse capitulo.
Enfim, boa postagem cara,muito bonito. E parabéns pelo blog. Continue iluminado. Amém.

Anônimo disse...

Responsabilidade cristã demais pra mim!

Anônimo disse...

Ele creia em Deus, tudo estará ok, seja feita sua vontade, assim na terra como no céu, Deus está no comando velho aconteça o que acontecer será o melhor para ele, nós nos prendemos tanto as pessoas que as vezes nos achamos donos, temos que estar preparados para certos momentos dificeis.

BLOGdoRUBINHO
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Fábio Flora disse...

Que cilada! Operar (e correr o risco de não sair da sala de cirurgia vivo) ou aproveitar os últimos meses de vida? Isso lembra o filme "Antes de partir", com Jack Nicholson e Morgan Freeman. Abraços e sucesso com o blog!