quarta-feira, 3 de março de 2010

Em carne viva! (II)




Um imprevisível pé de vento se formou a alguns metros do banco onde eu esperava a chegada do trem.Eu procurava algo que me distraísse. As coisas, ultimamente, não andavam nada boas.A insistência por parte de meus pais, para eu entrar para o exército era um problema. Eu não queria servir. Ser arrancado da minha pacata vida, das rotinas simples do campo, para seguir normas e ter que vir para a cidade, era uma coisa que me oprimia. Defender a pátria? A minha pátria era a casinha que meu avô levantara com as próprias mãos, há muitos anos, os animais que tinham de ser cuidados, o plantio e a colheita.Já tínhamos adversários suficientes, as pragas que assolavam o cultivo,as pestes na criação. Que droga! A data do alistamento se aproximava. André, do seu Pedro Belotto, andava se vangloriando que moraria em uma pensão na cidade e se tornaria militar. Ele que se dane.
Comecei a suar devido ao casaco. Pensei em tirar,mas lembrei a recomendação de meu pai:"Não aperte a mão dela e procure não respirar perto.Fique de casaco e use o lenço, no nariz e na boca, quando ela falar contigo." Polozzi, desgraçado, me deixou ali, sozinho, e se dirigiu para um boteco, beber. Pelo jeito, caberia a mim dar as boas vindas à leprosa. Coitada. Não iria mais chamá-la assim. Sempre tão gentil e atenciosa comigo. De uma beleza diferente, agressiva até.
Nunca entendi o que ela viu no Polozzi. A diferença de idade é considerável. É um mão de vaca notório. A coitada da dona Cecília, e as crianças, andam mal vestidas. Ouvi dizer que o dinheiro das cucas e pães, ele toma e gasta com chinas.
Veio no caminho, me indagando sobre os namoros das moças que moram nas redondezas, suas anatomias, e outras coisas que me anojam, vindas dele. Safado.
Como estaria dona Cecília? Será que a doença já a deformara?
Senti um frio no estómago quando ouvi o apito do trem. Polozzi, apareça, bêbado miserável. As pessoas parecem ansiosas de alegria, aguardando quem chega. Eu estava com medo.
Espichei a cabeça em direção à rua. Nem sinal de Polozzi. Os passageiros começaram a desembarcar,a maioria, moradores da sede. Com certeza, nem desconfiam do risco que correram. Fosse em outra circunstância,até seria divertido ironizar alguns daqueles cavalheiros empertigados e suas damas. Um homem obeso, com uma enorme mala, se desequilibrou e quase despencou por sobre mim e mais dois rapazes.
Várias pessoas desciam, e eram recebidas por parentes ou conhecidos, um vozerio de alegria e vivas aos recém-chegados. Meu coração acelerou.
Toda de preto, um pouco mais magra, e...mais bonita, dona Cecília surgiu. Primeiro a cabeça à porta, olhando para os lados, provavelmente procurando o marido.
Fui obrigado a fazer um sinal, que ignorou. Chamei a atenção novamente, e então fui notado. Os olhos castanhos pareciam tristes,mas não perderam o vigor. Ela fez um sinal com a cabeça e eu me aproximei,buscando uma naturalidade que não existia. Expliquei que Polozzi estava ali até a pouco, e que não sabia onde fora.
Ela balançou a cabeça.
Resolvi carregar as pesadas malas, com folhas de jornal nas alças, para evitar o contato. Ela baixou o olhar. Não queria magoá-la, mas não consegui estabelecer nenhum diálogo. O que poderia lhe falar? Se a estada no leprosário tinha sido agradável ou se estava ali para ficar? Eu era um completo idiota.
O peso era descomunal, parecia haver pedras dentro da bagagem. A carroça, eu havia deixado debaixo de árvores, em frente à Estação.
Ela guardava certa distãncia,para meu alívio. Erguer as malas na carroça, exigiu toda minha força. Sou forte e desenvolvido para minha idade. De corpo.Sou uma negação para lidar com pessoas. Perguntei se queria que fosse atrás do marido. Ela parecia confusa,pensou e rejeitou a sugestão. Fôssemos embora, não via a hora de estar em sua casa. Eu poderia ter oferecido ajuda para ela subir, mas temi que aceitasse. Decidida, subiu e tomou assento. O rosto estava um pouco vermelho,a mão esquerda tinha uma mancha quase imperceptível,enfim, se eu não soubesse que estava doente,poderia tomá-la como qualquer uma daquelas senhoras que desembarcaram juntas. Só que dona Cecília era muito mais bonita.
Pensei em Polozzi, qual seria sua reação ao descobrir que partimos sem ele. Eu não gostava do sujeito mesmo.. O sol começava a baixar e manobrei a carroça. Ouvi o choro abafado da mulher, ao meu lado,mas não consegui olhar. Seria por causa do afastamento dos filhos? Resolvi tirar o casaco.Com o canto dos olhos, notei que me observava. Não tenho certeza, mas acho que meu gesto a fez parar de chorar.


* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

20 comentários:

Abner Moreira disse...

Uau! Você escreve muitíssimo bem!
Só tenho uma sugestãozinha: a música ao fundo atrapalha um pouquinho a leitura.
Parabéns! ;)

http://www.abnisland.blogspot.com/

Unknown disse...

New Moon haha...cara, bom texto, mas longo....como sabe, não a brasileiro com paciência..eu tinha um outro blog de humor falaram.zip.net ...mas como os textos eram grandes, dificil alguem ler até o fim....procurei nesse novo blog diminuir o tamanho...só uma opinião...abraço e uma New Moon para todos nós...

Anônimo disse...

Fábio, teus texto melhoram a cada postagem. Principalmente de um tempo pra cá. Tu assumiste o mesmo risco do Roberto, o da continuação, e digo-lhe que saiu bem por demais. Talvez assumir riscos seja o principal ofício do escritor. Dar a cara pra bater. E tu fez isso, mas a categoria do teu texto fechou a guarda de qualquer xarope que venha, unicamente movido por inveja, tentar sacanear com o teu texto.
Abraço, e eu publiquei um troço lá no sarapatel, se quieser dar uma olhada, estará lá, esperando por ti.

roberyk disse...

Muito em foco nas nossas conversas, a continuação foi perfeita e com um toque que você é mestre em fazer, aguçar o desejo de quem lê em querer mais e mais. Desnecessário falar em mudanças pois estas estão ocorrendo naturalmente.
Muito bom meu velho, muito bom mesmo. Arrisco em pedir o episódio III, fiquei com uma suspeita e muito curioso.

Thunderbirdsampa disse...

Voltando ao teu blog e de novo surpreso Zen...Uma criação economica em adjetvos mas soberba quanto a condução da trama,que mostra o autor senão no controle absluto do ritmoque vai e segura,vai e segura.Vou te dizer o siguinte,alias ja disse em outras ocasiões:sua escrita é cinematografica,pelo fato de fazer quem le visualizar,e isso é raro.Tem continucão?????Manda ve...

Angélica Nunes disse...

Nossa.... excelente!! Quero ler a continuação ein?

Marcus Alencar disse...

Gostei muito do seu texto, tem ritmo e enredo na medida certa sem se estender muito.
abcs

Gabriel Pozzi disse...

Sensacional, cara!
Um texto que vale muito a pena ler, prendendo a atenção, com palavras bem encaixadas, uma leitura muito gostosa!
Serviu como um excelente passaporte de entrada pro seu blog, que com certeza me chamou atenção o suficiente para que eu volte mais vezes!
Gosto muito de blogs com contos, crônicas, enfim, um dia irei publicar as minhas em blog tbm, mas por enquanto, admiro quem faz!
Parabéns

http://songsweetsong.blogspot.com/

Blog da Gaby disse...

Parabéns pelo texto e principalmente pela nova "cara" do blog...tudoaver...Valeu

naosoualuno.blogspot.com disse...

Putz cara, seu texto vai direto ao ponto de um tema muito em voga na atualidade, de uma maneira bem sutil, notadamente, preconceito... ou estou viajando?
Legal... gostei!
Abraço... vou seguir!

Marjorie Bier disse...

Fábio... teu texto melhorou a olhos vistos. É o primeiro que leio sem quebra de ritmo e linguagem.

Parabéns.

Silvio disse...

Gostei bastante dessa parte:

"Resolvi carregar as pesadas malas, com folhas de jornal nas alças, para evitar o contato. Ela baixou o olhar. Não queria magoá-la, mas não consegui estabelecer nenhum diálogo. O que poderia lhe falar? Se a estada no leprosário tinha sido agradável ou se estava ali para ficar? Eu era um completo idiota."

Parabéns pelo belo texto e pela grande postagem :)

Forte abraço e sucesso!

Helen S. disse...

Parabens pela priginalidade do texto, muito bom mesmo!

Ly Hayashi disse...

Adorei o texto, pude perceber que tu escreve muito bem.
muito bom teu blog.
bj

Augusto Bier disse...

Texto melhorando, bom tamanho, mais fluído, cativante. Mete uma revisão, que é o que tá faltando pra botar respeito.

Anonima disse...

Textos longos deses na internet normalmente valem a pena ser lidos. Parabéns, ótimo texto.


abraços
:*

Caroline disse...

Nossa, sensacional! Adorei o texto!! Meus parabéns!

Naya Rangel disse...

Já está parecendo um clichê, mas tenho que dizer que o texto está muitíssimo bom! Percebi que nesse conto deixou a regionalismo aparecer mais!

Abraços!

PS: Saudades do Rio Grande ...

Tati disse...

Surpresa boa cair por aqui. Texto bem escrito e me arrisco a dizer que aqui há várias referências. Das mais cotidianas às clássicas.

Jessica Pagliai disse...

Olá, parabéns pelo texto, muitoo interessante :D

Parabéns mais uma vez, beijinhos.

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