terça-feira, 17 de maio de 2011

O velho!




Tudo inicia assim: eu comecei a ser chamado de senhor aos vinte e poucos anos, um fato que a princípio me aborreceu, e muito. Eu queria ser exatamente como os outros rapazes da minha idade, ter direito à diversão, bebedeiras e gurias. Tentei sempre conviver com a situação, pois logo vi que não havia como mudar aquilo. Os outros se dirigiam a mim como senhor e pronto. Nada que fiz adiantou. Mudei o penteado, a roupa passou a ser esportiva e até os óculos eu escondi bem no fundo da gaveta e pouco mudou, a não ser confundir meu velho cachorro Júpiter com um moleton preto jogado no chão do quarto. A única que se dirigia a mim como “tu” era minha vó, mas desconfiava que ela tivesse grande vontade de se dirigir mais respeitosamente a mim.

Então certo dia decidi confrontar minha sina. “O que vai levar hoje, seu Júnior?”

- Dois pães cacetinhos e uma margarina!

Foi um tanto doído. Aceitei o “seu” e não fiz nenhuma indagação. O dilema que vinha me atormentando há muito tempo, desceu que nem uma bola de meia, cheia de pregos goela abaixo.

A partir dali passei a observar mais atentamente o que acontecia ao meu redor. Não que tenha abandonado por completo o egoísmo que me acompanhava até então. Eu também tinha meus divertimentos. Uma das coisas que mais gostava era (prometam que não vão rir), era ficar na janela do meu quarto que ficava no segundo piso de um velho sobrado e de lá lançar pedras, de bodoque na casa da vizinhança. Isso acabou rendendo muito aborrecimento aos meus pais depois que seu Pedrão descobriu de onde as pedras eram atiradas.

A outra coisa era escrever e descrever tudo que acontecia à minha volta.
Era uma vida calma e até certo ponto organizada, não por mim é claro, mas meus pais não deixavam faltar nada, mas tudo sem luxo e com a contabilidade de gastos na ponta do lápis, tudo a cargo da mãe. “Um pecado!”- dizia um tio que não ia muito com a minha cara.

”Vão estragar esse guri.”

Eu já estava estragado e ele não sabia.

Eu sonhava mesmo era ganhar o mundo, embora na época não tivesse vaga idéia de proporção, de medidas e até onde eu seria capaz de ir realmente.

A cidade me aborrecia profundamente naquele tempo. Era conservadora ao extremo, mas em termos, por que por baixo dos panos as coisas aconteciam, eu sabia. Isso era realmente uma coisa insuportável.

O jogo de aparências que mantinha tudo em seu devido lugar se estendia desde os parâmetros políticos, não que isso fosse surpresa, mas sempre é um choque quando dois velhos caudilhos e inimigos ideológicos que vinham se alternando no poder há décadas estão sentados com seus herdeiros em uma mesa de cabaré, cada um com uma moça (upa!,upa!) sentada em seu colo, todos juntos e em uma farra medonha.

Lembro de um primo de meu pai que tentou colocar três carros de transporte coletivo com preço de passagem e fazendo algumas linhas que apresentavam deficiência ou simplesmente não existiam ainda, coisa que não faria nem cócegas na empresa que monopolizava esse ramo há tempos. Suas propostas foram rechaçadas várias vezes até desistir de vez.

A cidade era fechada para pessoas como meu pai, que sempre trabalhou como empregado. Era assim que os senhores daquele tempo queriam que tudo continuasse. Bom, acho que começo a aborrecer vocês, batendo em uma coisa que sempre aconteceu, em todo lugar.
Eu estava decidido a não me vergar a isso e dar um jeito de me mandar dali o mais breve possível. Faculdade de jornalismo em Porto Alegre, mas e me sustentar lá?

Viveria da escrita, mas não tinha dinheiro nem para a passagem e o tempo ia passando e passando.

Vocês lembram daquele tio que não gostava de mim? Pois bem, ele ganhou na loteria esportiva e tirou uma grana preta. É claro que logo foi tomado por ares de grandiosidade e colocou uma loja de roupas caras no centro da cidade. Eu não dei a mínima. Sabia que dali não sairia nada e nem queria isso. Achava justo que talvez ele pudesse fazer algo por meu pai, que se matava no posto de gasolina.

Às vezes encontrava o empedernido na casa de meus avós em churrascos aos fins de semana. Ele não falava comigo e seguidamente eu o flagrava olhando e tirando suas conclusões acerca da minha pessoa. Eu sabia que me considerava um vagabundo, afinal estava no terceiro ano do colegial, estudava pela manhã e não fazia nada a tarde a não ser escrever em um bloco encardido algo muito confuso, mas que eu acreditava piamente que tomaria forma de um grande romance épico.

Certa tarde eu estava fechado no meu quarto, já havia dormido um pouco quando minha mãe bateu e gritou:

“Abre que teu tio quer falar contigo.”

Imaginei qualquer um dos outros oito menos o empedernido que estava parado me olhando com aquela cara de sabão neutro.

Minha mãe ficou plantada ali até eu fazer um sinal para ela sair.

Ele foi realmente objetivo, talvez uma de suas poucas qualidades.

“Pensei e pensei durante dois meses no teu caso.”

Ele viu a cara que fiz e riu. Realmente me desprezava.

“Olhe, dentro deste envelope tem uma quantia considerável para um traste como tu. Vai poder manter-se na Capital por uns três meses. Se for realmente o tipo inteligente que acha que é, vai arrumar um emprego e estudar para o vestibular da UFGRS. Mas escute bem: antes de tudo vamos selar um acordo. Caso não consiga se colocar em nada, coisa que acho bem provável vai prometer que não voltará mais e me obrigar a ver essa cara sebosa nos churrascos de fim de semana. Vai rodar a bolsinha na Voluntários. Tu me entendeu bem?”

Entendi e estava disposto. Arranquei o envelope das mãos dele, não sem antes ele reforçar que nunca mais queria ver minha cara por ali e que minha mãe não soubesse da nossa conversa.

Na manhã seguinte estava com uma velha mochila dentro de um ônibus pinga-pinga em direção ao que eu achava que era meu destino.

Não vão me perguntar se foi bom ou ruim?

Talvez tenha sido bom por um lado. Aquilo de me chamarem de senhor perdurou na Capital e levei vantagem para conseguir um emprego como auxiliar de biblioteca, uma coisa que ia além das minhas expectativas que já projetava trabalhar como servente de pedreiro ou algo assim.

O tal projeto de livro nunca chegou a tomar forma. Fiz três semestres de jornalismo decidi que ganharia mais dinheiro como vendedor de uma empresa de alimentícios, função que exerci por muitos anos e que me possibilitou uma vida confortável junto à esposa e três filhos. Fazia todo o interiorzão do Rio Grande, mas sempre desviava da cidade que ainda me assustava.

Meus pais nunca souberam para onde fui, deixei apenas um breve bilhete explicando que estava partindo em busca do meu futuro. Nunca mais entrei em contato com eles e não sei se ainda estão vivos. Isso era a parte ruim.

Hoje, depois de muitos anos, finalmente sou o senhor que me acompanha desde muito tempo.

7 comentários:

Karine Lima disse...

eu sou chamada de "senhora" desde o os dezessete ( professora infantil)
kkkkkkkkkkk

Paulo Sousa disse...

Curti a historia ta de parabéns...também não gostaria de ser chamado de senhor aos 20 anos de idade =p

Anônimo disse...

A descrição dessa cidade, a dinamica com q tudo acontece, me parece bem familiar a uma cidade missioneira que amo de paixão, mas que infelizmente é burguesa...Adorei...

Anônimo disse...

Baita texto, Fábio! Franco e direto. Muito bem finalizado. Fechadinho!

Abraço!

Lou Marciano James disse...

Salve Fábio!
Há uma verossimilhança entre sua estória c/ a minha história.
Saí de casa aos vinte e me chamam de 'senhor' desde os vinte e três.
Mas, eu gosto. Sempre quis me parecer sendo muito mais velho do que a cronologia de minhas primaveras realmente contam.
Li como se fosse p/ o senhor que me acompanha há muito tempo.
Abrç.

Thiago Brito disse...

Parabéns pelo Blog, muito bom mesmo, uma sensibilidade incrível e agradável, bons textos e muito a ensinar-nos.
Estou a seguir-te.
Quando puder, passa lá no meu também e vê o que acha...

http://essenciaego.blogspot.com/

abraço apertado.

Cacá Motta disse...

rsrssrsrs, que foda...

vi que você já segue o blog do Guilherme Sakuma - e ele também segue o seu. Agora ele está colaborando no meu (blog); é bem legal também, tem algumas histórias cabeludas e tal, rs.

Estou te seguindo, se puder, me segue por lá também!

Beijo *