sábado, 1 de agosto de 2009

Errante!



Definitivamente aquele dia tinha iniciado mal. Seu abdômen estava inchado e doía, a boca seca ansiava por água, precisava muito de água, mas os pensamentos não se ordenavam. Não sabia exatamente onde se encontrava. Os olhos semi-cerrados procuravam obstruir a entrada da luz que causava uma dor contundente nas têmporas. A princípio não sentiu os pés. Tossiu com dificuldade e buscou apoio nos cotovelos para erguer o corpo e sentar-se. Reconheceu a marquise do banheiro público da praça onde abrigava-se das intempéries do tempo.A visão ainda borrada não localizou o saco com o que arrecadara na tarde-noite anterior. Alguém roubara. Tinha que se cuidar dos companheiros, pois naquela vida na rua não podia confiar em ninguém.
Ultimamente aquele pessoal generoso da zona norte havia diminuido a doação em dinheiro e lhe davam apenas pão, comida, roupas e remédio, o que era uma merda, pois não conseguia promover nenhuma orgia etílica. Ficava à mercê da boa vontade dos companheiros para beber.
Não estava bem. Durante o resto do dia se arrastou perambulando nas residências que ficavam nas redondezas em busca de alguém que lhe desse algum. Precisava de cachaça para pensar melhor e segurar a tremedeira que lhe tomava o corpo. Exalava um cheiro fétido e sabia disso, pois tinha defecado na roupa involuntariamente. Precisava banhar-se e trocar as roupas, mas o problema é que teria de caminhar umas quatro quadras até o asilo onde guardava seus poucos pertences e esporadicamente pernoitava e estava muito debilitado. Desistiu do intento e se atirou na sarjeta.
A noite se aproximava e com um esforço enorme, conseguiu cambaleante retornar até a marquise do banheiro da praça. Desabou junto à porta já fechada.
Não perdeu a consciência com a forte pancada do piso gelado na cabeça. Vaso ruim não quebra muitas vezes lhe disseram. Não havia encontrado o homem e a mulher que geralmente lhe acompanhavam naquela espécie de perambulação sem rota, regada a bebida e que geralmente resultava em brigas. Pelo menos tinha companhia. Quanto tempo estava nessa situação? Já não lembrava mais datas e nem se importava com isso, aliás talvez nada mais importasse a ele. Havia chegada naquela cidade a muito tempo com a esperança de encontrar vida digna e trabalhar em alguma das indústrias, sonho que se revelou intangível. Sua pouca instrução e a falta de "contatos" e conhecimento o empurrou para uma rotina de viver de "bicos", o último que lembrava além de catar papéis era a venda de verduras. Acabou vendo a cidade que lhe acenou com a possibilidade de trabalho minguar e ver suas fábricas aos poucos irem fechando suas portas e centenas de pessoas ficarem desempregadas e terem de ir embora, deixando aquela terra que embora não tivesse nascido ali, nunca encontrara povo mais acolhedor.
Estava encrencado. Tinha certeza disso. Aquela madrugada prometia ser a mais fria dos últimos tempos. O porém é que seu corpo não reagia e não havia onde ir buscar energia para se mexer. O único movimento que conseguia era com as órbitas oculares, que presenciavam a noite ameaçadora chegar. Talvez a ronda dos assitentes sociais o encontrasse ali. Eles haviam alertado todos cerca de três dias antes que um frio quase glacial se aproximava, mas ele ignorou completamente. Estava obcecado em recuperar a mulher, já estava ate disposto a dividi-lá com o outro. Talvez ela desse para ele, talvez conseguisse uma ereção, coisa rara nos últimos tempos. Sabia que se não conseguisse sair dali morreria de frio, pois não estava com roupas quentes e seus calçados haviam desaparecido.
Um tremor que começou tímido foi gradualmente aumentando e se tornou um violento sacolejar. Sentiu algo partindo ou desmanchando dentro do abdômen. Um gosto de fel invadiu a boca e a respiração foi se tornando esparsa. Irônicamente o frio foi desaparecendo e ele foi sugado para dentro de um túnel escuro do qual tinha certeza que não voltaria...

20 comentários:

Fábio Escorpião disse...

Um conto perturbador, as sensações são transmitidas de modo muito eloquente. Muito bom, mesmo.

Faça apenas uma pequena revisão ortográfica, há umas quatro ou cinco coisas pequenas à corrigir.

No mais, parabéns.

Junior disse...

Vc é Católico?

João Bahea disse...

Uau...

Mto bom mesmo...

Estou impressionado!

Jonathan Ribas disse...

Caracaaaa meo, eu já senti isso na noite e posso dizer que é quase a mesma coisa, graças a Deus me encontraram e eu pude voltar para a casa, mas é horrível, muito horrível, até mais horrível que este texto nos faz sentir

Samira Lima disse...

Ótimo conto. Me lembrou a música "Insetos Interiores", do Teatro Mágico. Faça apenas uma pequena revisão ortográfica [2].
Adorei o blog, parabéns mesmo!

abraço

Léo disse...

Ual seu texto é tão envolvente que nem vi os tais erros ortograficos que alguns disseram, erros podem existir mas o que realmente importa é a tua genialidade!

Parabens Amigão

http://listen18.blogspot.com/

o juninho disse...

Muito bom amigão!
muito bom mesmo1 Um texto envolvente... ótimo.

já tive uma idéia assim de fazer um blog-livro, em que postaria os capítulos... mas agora estou dedicando meu tempo com um blog - o primeiro - que acabei de lançar, se puder dar uma forcinha lah:

http://ojuninhoblog.blogspot.com/

se posível comente, rsrs

abraços e parabens dnovo

Anônimo disse...

Achei o texto muito bom. Ao longo da leitura concegue se sentir o niilísmo que os moradores de rua acabam caindo, a sensação de que tanto faz estar vivo como estar morto. Acho que no texto, a morte do mendigo representa uma espécie de vida, por mais paradoxal que pareça, pois a sua vida era uma espécie de morte.
Abraço!

Anônimo disse...

Parabéns, sem dúvidas você conseguiu com que qualquer um leia o texto até o fim sem que perceba. Além da mar de sensações que nos traz.
Muito bom mesmo!

theabil.blogspot.com

Guttwein disse...

Cara, merece até continuação de tão bom que ficou! Esse choque que é passado a quem lê, se faz necessário... para as pessoas repararem um pouco mais ao seu redor! ; )

Anônimo disse...

um conto perturbador...

www.texticulosdemoda.wordpress.com

moda e design em foco.

entrem e comentem.

- disse...

nossa fiquei impressionada com a ekoquencia.
texto forte e pertubardor msmo =x

http://delicadamenteexagerada.blogspot.com/

Diogo C. Scooby disse...

Ja cansei de ver pessoas em situações assim, tanto que já acostumei e , se vejo alguém sendo sugado pelo abismo, simplesmente finjo que essa a coisa mais natural do mundo.

Mas peraí...Não é mesmo?

Camila Oaquim disse...

Parabeeeeeéns, texto excelente!
Intensidade na escrita e na leitura.
BjãoO té a proxima!

CAMILA de Araujo disse...

ótimo texto!
A gente não consegue parar de ler.Quer smp saber o que vai acontecer.

www.teoria-do-playmobil.blogspot.com

Remo Yaconi Urrutia disse...

Muito forte o texto,
mais realmente muito bom.

mas cuide um pouco com expressoes como Merda, ou coisas do genero.

fora isso

otimo!

parabens

http://remoyaconi.blogspot.com/

Lucas Alves disse...

muito, mas realmente, muitoo bom!

uma forma muito interessante de passar as sensações...
narrativa bem construída!

parabens!

veja tbm
www.ovolumeunico.blogspot.com

Eduardo Matzembacher Frizzo disse...

Acredito há algum tempo que os moradores de rua são o inconsciente das cidades. Trago essa crença de alguns textos da Marcia Tiburi. Desenvolvendo ela, percebi que eles são verdadeiramente isso porque vivem no impasse espaço público/espaço privado, visto que se eles fazem do espaço público seu espaço privado, na verdade eles vivem numa mescla de liberdade/prisão, já que adstritos à liberdade do espaço público mas presos a essa liberdade como se ela fosse seu espaço privado. Trazendo essa realidade para o contexto de Santo Ângelo, vejo que a moralidade santoangelense normalmente condena tais pessoas. Esses dias li em um dos jornais da cidade que os comerciantes estavam se sentindo importunados com os moradores de rua. Concordo que muitas vezes, por trás de um olhar mendicante, existe um senso avaro e nada acolhedor. Entretanto, como costumo ser um hermeneuta das questões sociais, ainda que em fase amadora, vejo que se existe esse olhar e se ele está posto em pessoas que vivem no impasse do espaço público/espaço privado, considerando-se também que essas pessoas consistem no inconsciente das cidades, esse olhar nada mais é do que nosso próprio olhar defasado das vestes da socialidade. Quem sabe devêssemos ver nessas pessoas não pontos de fuga para qualquer solidarismo analgésico, mas sim pontos de contato com uma sociedade que, nos moldes atuais, perpassado por um imediatismo ferrenho dominado pela Lógica do Carpe Diem, certamente não subsistirá por muito tempo. Alguns poderiam dizer que a culpa é do sistema e que o sistema procede mas precede as pessoas. Contudo, partindo do fato de que temos liberdade no espaço público e não necessitamos viver no impasse dos moradores de rua nesse mesmo espaço público, nada nos impede de formular juízos e padrões de análise verdadeiramente condignos com essa situação. Acredito que as políticas governamentais de auxílio social são uma boa saída, mas não a única saída, já que consistem, no mais, em medidas paliativas. Enquanto não superarmos, ao menos na nossa região, a estagnação econômica propiciada pela elevadíssima concentração de renda nas mãos de poucos, o que impede a circulação dessa mesma renda, nada mudará nesse quadro. Precisamos de um cenário desenvolvimentista ciente das agruras que nos assolam, sejam elas pintadas de ouro ou de simples lata velha. Somente pensar ou agitar revoluções a partir do sofá da sala de nada adianta. E tentar conscientizar as pessoas dos problemas do mundo também não adianta nada, já que perpetuaríamos a mesma falácia do próprio sistema no qual estamos inclusos e do qual invariavelmente fazemos parte. Devemos, pois, discutir e nos instruir a partir do diálogo claro e aberto a todas as questões que talvez possam mudar esse cenário. Longe disso, esse desconhecido de alcunha Perereca, será apenas mais um número na porcentagem de indigentes que todos os dias morrem pelas ruas do mundo e pelos rincões do Rio Grande. Um grande abraço, Eduardo.

Kelly Christi disse...

Cara, adorei o modo como vc. retratou uma realidade nossa, esquecida...
meus parabéns

bjitos

http://www.pequenosdeleites.blogspot.com

adriano disse...

é como diz o camarada de cima: os moradores de rua são o incosciente das grandes cidades.

seu retrato é o nosso retrato por dentro, eles são como realmente somos, só que não mostramos, pq estamos escondidos em nossos ternos de zuarte...