segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O inverno que não acabou!



O inverno de 1965 ainda me acompanha.
Eu tinha vinte anos, era solteiro e minha última namorada havia me trocado por um militar nortista que havia sentado praça no Batalhão de Santo Ângelo. Me senti aliviado, pois a moça apesar de ser de boa família, não era muito bonita e tinha um temperamento difícil, mas no fim havia ficado um sentimento de perda.
No meio de julho acabei sendo demitido da fábrica de móveis por não levar jeito algum com as ferramentas. Várias unhas roxas devido à falta de pontaria com o martelo e o seu Andrade, proprietário e um exemplo de pessoa pacienciosa resolveu me mandar para casa antes que eu decepasse minha mão. Na verdade, eu só trabalhei nisso por pura insistência de meu pai, que não queria um “poeta sonhador” vadiando em casa com seus escritos. Uma injustiça da parte dele visto que eu era absolutamente incapaz de produzir uma estrofe ou rima por mais primária que fosse. Meu negócio eram ácidas crônicas dos quais os protagonistas eram figuras conhecidas da sociedade santo-angelense, claro, sempre com nomes fictícios. Poucos tinham acesso a esses escritos, entre eles estava meu amigo de infância, Pedrinho, que dava belas gargalhadoas fazendo comigo uma espécie de jogo de adivinhação sobre a identidade dos anti-herois, uma que outra namoradinha, e meu avô que sempre me incentivava a escrever mais e mais... mas aquele inverno o roubou de mim no início de agosto, aos oitenta anos. Perdi o chão, pois era para a casa dele que eu recorria após os desentendimentos com meu pai.
Naquela gelada noite de agosto, fui me deitar mais cedo que o costume e deixei meus pais na sala escutando no rádio A Voz do Brasil,pois estava deprimido e sem vontade de conversar.Sentia muita falta do meu avô e já questionava hostilmente aquele Deus que tornara, aquele inverno, o mais cinzento que eu já vivera. Perguntava-me o que mais poderia dar errado até a chegada da primavera em setembro. Desafiei Ele cobrando algo que suplantasse aquela sequência de fatos negativos e pelo menos levantasse um pouco meu ânimo.
Demorei até pegar no sono. Dormi muito mal e fui assombrado por antigos fantasmas, em um sono muito agitado. Às três e meia da madrugada levantei para ir ao banheiro, e pela vidraça da sala, notei que uma forte garoa caía insistente. Um frio penetrante invadia meus ossos. Após me aliviar, corri novamente para o quarto e como que, para me proteger do mundo, cobri até a cabeça com as pesadas cobertas.
Fui acordado com os gritos de minha mãe e da vizinha. Não entendi exatamente o que falaram, mas senti que era algo sério acontecendo. Rapidamente, calcei as chinelas e corri para a sala. A porta estava entreaberta e havia uma luminosidade incomum para aquele horário. A torneira da cozinha fazia um forte barulho devido ao forte jorro de água que minha mãe não fechara.
Devido ao pijama, coloquei apenas a cabeça no vão da porta, para verificar o que acontecia e me deparei com o deboche D´ele. Vislumbrei a mais fantástica imagem que meus olhos já presenciaram. Um véu de brancura começava a cobrir todo nosso jardim e a rua. Os carros já estavam cobertos por uma grossa camada de gelo e flocos de neve quase do tamanho de pétalas de flores se precipitavam sobre a manhã de Santo Ângelo. Minha mãe estava imóvel, de casaco de lã e o inseparável avental, olhando embasbacada, junto a uma tagarelante mulher que provavelmente passava na rua e parara para comentar o fenômeno. Como uma fênix ressurgida das cinzas, aquele inverno lançou em minha memória uma maravilhosa imagem, que até hoje mora no meu imaginário...

*Em agosto de 1965, ocorreu um fenômeno raríssimo. Nevou em Santo Ângelo das 07 hs e 30 min até às 13hs e 30 min do dia 20 de agosto. As casas, árvores e carros ficaram totalmente cobertos pela neve tornando as ruas da cidade uma paisagem européia. Para quem viveu aquele momento, foi inesquecível, e para os mais jovens, ficam as fotos como a que ilustra este post.

8 comentários:

Rafa disse...

muito boa a ideia do blog, gostei do texto!

http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/

Rafa disse...

gostei muito do blog

http://cemiteriodaspalavrasperdidas.blogspot.com/

Erich Pontoldio disse...

Deve ter sido uma imagem única e inesquecível.
Ótimo texto e excelente narrativa

Unknown disse...

Tenho muita vontade de ver neve. Parabéns pela emocionante narração.

Cidadão das nuvens

Daniel Silva disse...

Um dia ainda irei visitar a cidade de vocês.

Abraço

Rodox disse...

Narração peculiar faz com que a gente tenha vontade de continuar lendo isso aeee!

Vi disse...

me lembrei da primeira vez que eu vi neve em Londres, simplesmente perfeito aqueles flocos caindo em minha cabeça e eu tentando pegar com a língua

Neurotic StrangerBlood disse...

Pensei que seria alguma coisa sobre a maldição do inverno sem fim..tipo As Crônicas de Narnia!