terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Em carne viva!





Tic-tac.Tic-tac. O relógio era uma companhia cruel. Era daqueles enormes,com pêndulo, ocupando um espaço considerável na parede. Artigo de luxo em meio à rústica mobília. Coisa do tio Xirú que foi relojoeiro na cidade.
Quando ele morreu, não lembro quando nem de quê, o relógio, poucos dias depois, apresentou defeito. Meu pai andou ansioso vários dias, pois antes de qualquer atividade que fosse empreender, conferia o objeto. Fez uma viagem à Cruz Alta especialmente para resolver a situação. Ainda lembro dele sofrendo com a enorme caixa.
Quando o relógio retornou houve reclamação, tanto de mamãe, quanto das visitas. O tic-tac estava mais fraco. Não! É só impressão, dizia papai. Deve ser a graxa, própria para lubrificar a engrenagem que o deixou menos barulhento. Tudo bem. Afinal, que diferença faria? Nenhuma. Logo eu teria que atrelar os cavalos e assim que clareasse o dia, ir até à sede buscar a leprosa.
Essa terrível missão foi imposta por meu pai. Política da boa vizinhança, dizia ele. Polozzi, o marido da enferma, havia quebrado a roda da carroça. Papai solícito como sempre, ofereceu carona.
Nos últimos meses o pânico havia se espalhado pela vila. Que raios de médico teria liberado a mulher do leprosário de Porto Alegre? Ou teria fugido? Bem, se ela já estivesse boa, por que os filhos foram removidos para a casa dos tios?
Polozzi, muito vermelho da bebida, apareceu na tarde anterior na ferraria, para confirmar a viagem. Achava que não iria chover, escutou na Guaíba. Diante disso tudo a chuva é o menor dos meus problemas. A devastação que a terrível doença pode trazer à nossa comunidade, isso sim, é aterrador.
Cecília, a leprosa, é uma mãe exemplar de três filhos. Dois meninos e uma mocinha. Bonita, de compleição robusta, era o motivo dos rubores entre nossa turma de amigos nos piqueniques à beira da cascata. O vislumbre dos tornozelos da esposa do bolicheiro Antônio Polozzi durante suas graciosas incursões na água, inflamava nossa imaginação. Ainda mais que o homem bebe tanto vinho, que lá pelas tantas, após o almoço, se embretava mato adentro com um velho pelego e adormecia profundamente, despertando somente pouco tempo antes de as famílias começarem a recolher suas coisas.
Eram nesses momentos que Cecília se liberava. Brincalhona e também solta pelo vinho, brincava com todos e contava piadas maliciosas que causavam certo constrangimento entre as senhoras. Pode ser bobagem, mas acho que no final de cada frase, seus olhares recaiam sobre mim.
Os primeiros boatos coincidiram com o sumiço de dona Cecília do atendimento no estabelecimento dos Polozzi. Angela, a filha, era a encarregada, na ausència do pai.
Em uma pequena comunidade como a nossa é como um rastro de pólvora. Logo era o assunto em toda parte. A mulher de Polozzi estava leprosa. Verdade ou mentira? Ninguém tinha certeza, mas o fato do mutismo do doutor Braatz em relação ao assunto, levou seu Érico a transferir a quermesse. Não queria arriscar. Talvez ela até levasse seus pães para vender.
Pouco tempo depois, tivemos a confirmação. O mal estava instalado no seio da nossa comunidade. O próprio doutor Braatz, veio para levá-la e encaminhar sua internação no leprosário da capital.
Dois meses e agora, ela estava voltando. A doença não tinha cura, diziam os velhos. E eu tinha que ir buscá-la. Meu pai não sabe dizer não. Que Deus me ajude.


* Este conto foi baseado em uma carta que faz parte do acervo municipal.O fato ocorreu no distrito do Comandaí,interior de Santo Ângelo,na década de 50,do século passado.Fiquei conhecendo através do ótimo blog da amiga Eunísia Killian.Confiram.
O link é http://meuseuseseus.blogspot.com/ .
Agredeço também ao polivalente Darlan Marchi,que desempenha funções junto ao Arquivo Público Municipal,pelo valioso relato colhido junto a pessoas ainda vivas,de suas relações familiares e que residiam no distrito, à época,e que forneceram detalhes minuciosos e dramáticos sobre o caso.

37 comentários:

Isa. disse...

Que ótimo texto!
é de sua autoria?
bem cheio de detalhes, uma crônica que prende o leitor!

http://semtravasnalingua.blogspot.com/

beijos

Ana Ferreira disse...

Um bom conto. Gostei da forma que escreveste.

kbritovb disse...

num entendi que relogio tem a ver com o texto

Augusto Bier disse...

Deu um viés bem curioso. Imagino o cara mordendo um naco de pão da mulher e ficando com um dedo indicador no canto da boca...
Sobre as novelas missioneiras, me diz alguma coisa. Vale a pena encarar?

Débora Cattani disse...

A cada tic-tac do relógio, o coração do moço batia mais depressa...chegava o momento de buscar a mulher leprosa...medo!!!
Mesmo te conhecendo tanto, não deixo de ficar impressionada com teu talento pra dar um toque inusitado e transformar uma simples ideia em um conto, capaz de transpassar a tua vis'ao,e transportar o leitor a um universo de sensa;oes e imagina;'oes...Amei...bjo

Rodrigo disse...

mto boa crônica, parabéns!
entre em http://naveguero.blogspot.com/
abçs!

Naya Rangel disse...

Ótimo conto ... como sempre muito detalhista e envolvente! Baseado em fatos reais? *Medo*

Abraços!

Wellington Johnny disse...

Gostei muito do seu conto. Bastante reflexivo. Valeu.

Léo disse...

Fábio vc podia dar continuação a esse conto, que acha?

Adorei Brother sempre que venho aqui saio encantando com os seus textos.

Abraço Fábio.

Sequelanet disse...

Gostei do texto. Bem instigante e cheio de detalhes, e gostei do jeito que tu escreve, super bem.
abs

ibere disse...

seus textos sao mutio bons, tem uma qualidade superior e voce sabe disso, sempre bom passar por aqui... gostei do crescendo do texto, no incio parecia uma reportagem da eliane brum ( sua conterranea) mas depois foi parecendo mais uma novela, assumindo um ar mais dramatico.. e psicologico tambem...

paraens pelo sempre otimo blog
Ibere
ps: caso tenha tempo estou começando uma novelinha no meu blog, seria um prazer ter sua visita

Anônimo disse...

Eu devia ler essas coisas depois do meio-dia. No me gusta imaginar a carne do almoço depois disso.

Bleh!

roberyk disse...

Cara, gostei muito da retomada às origens do blog. Gostei muito do texto, principalmente o "vislumbre dos tornozelos" que nos remonta a um tempo onde a vida era simplesmente igual ao que transcreveste, cheia de imaginações, de conceitos e pré conceitos. Ótimo texto, realmente daria uma excelente novela.
Parabéns. E vejo que conseguiste finalmente libertar-se de alguns grilhões.

Macaco Pipi disse...

parece carne viva
realidade nua e crua

Carolina Tenório disse...

Nossa, muito bom o texto; cheio de detalhes :)
você escreve tão bem que é capaz de fazer qualquer um ficar grudado aqui :0
amei amei mesmo :D

Minerva disse...

Otimo texto
Muitos detalhes ADOROOOOO

Eunisia disse...

Fábio,
que bom vê- lo interagindo novamente e parabéns pelo belíssimo blog!
Sei que história da leprosa foi inspirada no texto postado no blog:http://meuseuseseus.blogspot.com e senti um pouco do Charles Kiefer em " O Pêndulo do Relógio". Quem não ouviu um tic tac do relógio de parede? Lembrou um pouco da minha infância em Três de Maio.
Abs,

Anônimo disse...

Punk... você escreve muito bem... valeu!!!

Jim Anderson disse...

o cara texto bacana, vou te seguir daqui por diante

Michelle disse...

Me fez voltar aos tempos que passei no Sul ... o modo como escreve prende na leitura e faz aflorar na mente a representação da história.

ibere disse...

Caro Fabio,

eu sou paulista, mas fico feliz em ser homonimo de um grande gaucho !
abraços
Ibere

Cacah Make Up disse...

texto bem interessante...gosto do modo envolvente como escreve e descreve os detalhes...parabéns...
voltarei sempre q possivel pois é sempre interessante ler boas histórias...bjus

Thiago Nardi disse...

gostei do título

Thiago Nardi disse...

acredite cara, parece muito algo baseado em fatos reais
tem o dom pra fazer cronica velho

Aninha disse...

Mt boa a crônica , vc tem talento.
Parabéns!

palavras ao vento disse...

ter um relogio como cia deve ser cruel...so aquele barulho...deve ser uma tortura...gostei do texto..

William Correa disse...

Ola Fabio muito bom visitar seu blog assim como voce sempre faz ótimos comentarios no meu aqui estou eu...
QUanto ao conto muito bom aqui na biblioteca municpal da minha cidade soube que existem textos antigos de qualidade logo logo darei uma garimpada ,abraço
www.ruivosuburbano.blogspot.com

Gutt e Ariane disse...

Rumores e rubores a cerca do tornozelo da moçoila casada... já pensou? Como a malícia e o sexo estão banalizados hoje em dia!! E a de se considerar, que não passou-se tanto tempo assim para que as coisas perdessem o rumo dessa maneira...
Interessante tbm o desconhecimento ( do tratamento), e por isso o pré-conceito a cerca da "lepra".

Mas hoje em dia, vejo os moradores de rua como sendo os atuais leprosos da sociedade. Expostos na imensidão leprosária que são os grandes centros urbanos. As pessoas pisam nessa gente desamparada, mas não dão um humilde e simplório bom dia... impossível não fazer tal relação, tristemente impossível...

Esther Saldanha disse...

Lepra, no passado, era pena de morte e o pior é que era contagioso. Leproso eram piores que ratos, baratas ou qualque praga.

Adorei o modo que o texto foi escrito, muito rico em detalhes o que o torna ainda mais interessante. Parabéns.

Unknown disse...

Zen!

Tá muito 10... O lance de criar um link com a realidade é muito bom!... Dá consistência as asas do imaginário... A construção é sólida sem deixar de ser lúdica, poética...

Agorá, a crítica... Tem que ser mais sintético... Lembra aquele conto a três mãos?... Obra de arte, carinha!... Mas perdeu densidade nos brocados escrevinhatórios... Te liga...

PS: Não descarte a possibilidade que este ranço tpdp seja só inveja minha... Dia desses tentamos um atentado "a quatro mãos"... Seria 10 duas gerações contado junto, né?

Abção,

JFabrício

Carolina Tenório disse...

UAU, que ótimo texto :D
você escreve absurdamente bem, fez um texto cheio de detalhes que fazem a gente ficar aqui e não sair mais :)
MUITO, MUITO BOM MESMO :D

seguindo :)

beijos:**

Karine Smith disse...

Eu adoro contos e mais ainda cartas, elas dão pano pra manga e para construção de várias histórias legais !

' Aℓℓɑɳ ɗɑѵiɗ disse...

nossa q belo texto
vc q criou?
está muito legal

Anônimo disse...

Acho que o pessoal aih de cima leu o texto , mas não leu sua observação dizendo que o texto é baseando em fatos reais. rs

Cara, muito interessante o conto e seu blog está ótimo!!

Sucesso pra vc, amigo.

bjo

Branca

Anônimo disse...

Ei Fábio! Recém agora li o teu texto. Ainda não li nada do Pimenta Zen, por pura falta de tempo, mas achei o blog super interessante. Sobre o texo, achei super legal, mas acho que cabe uma continuação. =))

Abraços!

Pobre esponja disse...

A Lepra é uma coisa triste...
Sei de uma espécie de colônia que não me lembro aonde fica, e um pessoal espírita (não o sou, mas acredito no amor ao próximo) ia lá visitar, e na hora agá não fui... fiquei meio triste e sem graça...num fui...
Você domina muito bem a escrita, parabéns.

abç
Pobre Esponja

Angélica Nunes disse...

Nossa! Incrivel esse conto!
Adorei!