
(Partida da Coluna Prestes,na Rua 25 de Julho, outubro de 1924.)
Não conseguiu dormir. Não foi aquele fato em si. Aquela era apenas mais uma das muitas desfeitas que o pai e toda a vila vinham lhe direcionando há algum tempo. No início sofreu muito, mas já cansara disso. Afinal, que mal tinha em gostar de ler e não ter aptidão para o trabalho braçal?
Adorava Machado de Assis e sua Capitu com os olhos de ressaca, na obra de Aluísio de Azevedo identificou-se com o personagem principal de "O Mulato". Que ironia, ele branco que nem papel solidarizando-se com um negro, ou mulato, sabe-se lá. Aliás, qual era diferença entre um negro e um mulato? Só sabia que eram perfeitos para o trabalho brutal. Mas e ele? Não era isso que toda a colônia esperava dele? Que fosse praticamente um animal de tração?
Seus pais quase sempre o ignoravam, a não ser para corrigi-lo ou apontar seus defeitos. O pior que essa perseguição que começara ali, na própria casa, já havia se estendido pelas redondezas. Quase todos já o tratavam como uma espécie de bobo da corte, com brincadeiras de mau-gosto, chacotas a respeito de sua virgindade e o pior, o pouco caso que a filha do padeiro Jurchen e da Frau Elfriede, a graciosa Helga dedicava a ele.
Seu irmão mais velho era o esteio da família. Forte como um touro, os trabalhos na terra eram brincadeira para ele, que manuseava as ferramentas usadas no plantio com grande destreza. Como ele nascera naquela família de plantadores de batatas? Os livros eram sua fuga daquele mundo de pessoas embrutecidas pela labuta de sol a sol.
A maior felicidade de sua desgraçada vida foi sem dúvida tomar para si a amizade do professor Paulus, este vendo seu interesse pela leitura, coisa rara entre as crianças da colônia que mais se interessavam pelas operações matemáticas básicas, o incentivou a entrar em contato com obras clássicas da literatura brasileira e mais, emprestava suas valiosas obras para ele se deleitar à tênue luz dos tocos de vela. Muitas vezes só parava de ler quando a vela se desmanchava por completo, lutando contra o sono e o corpo dolorido.
A devoção quase religiosa ao trabalho era uma virtude de sua raça. Definitivamente era a ovelha fora do rebanho. O corpo magro e franzino, os cabelos loiros desgrenhados e a barba rala e escura, destoavam dos avantajados descendentes de alemães que ha muito haviam se fixado no local.
Estava farto. Tinha certeza que seu intelecto era superior a todos ali, mas como fazer para se redimir perante essa gente? Um ato heróico e talvez Helga voltasse a cumprimentá-lo. Sim, mas o que? Quem sabe uma briga na quermesse ou algo do tipo. Não. As chances de ser massacrado em um duelo assim eram enormes, além disso, odiava violência.
Quando seu primo Ilo comentou em um almoço na sua casa que no dia seguinte sairia da Viação Férrea de Santo Ângelo uma espécie de expedição revolucionária comandadas por um tal capitão Prestis ou Prestes, com o objetivo de arregimentar militantes para confrontar o Presidente Artur Bernardes e seu famigerado republicanismo oligárquico. Segundo Ilo, os voluntários que se encontravam na cidade eram uma horda de bandidos e saqueadores, alguns inclusive criminosos fugidos da Argentina. Ele particularmente não acreditava nisso, pois não ouvira nada a respeito de saques em Santo Ângelo.
O problema era que o pai não o deixaria seguir em uma aventura dessas. Aliás, o pai não o deixaria se aventurar em nada que o fizesse ser feliz. Milhares de vezes imaginara ser a voz definitiva nas quastões da família, todos o abordando e respeitosamente saber sua opinião. Mas ali estava, sofrendo na plantação de batatas. Nem na cidade o pai e o irmão o levavam mais. Era o retrato da derrota. O pai dera o golpe final. Quando pedira a ele para interceder junto ao padeiro Jurchen para atar compromisso com Helga, o pai caíra na risada. Com tantos alemães fortes e trabalhadores, com certeza não seria ele que a moça escolheria, ele que se enxergasse.
Precisava reagir e mostrar que tinha brio. Iria junto com esse que já começava a ser chamado "Cavaleiro da Esperança" nessa tal marcha. Quando voltasse (e se não voltasse?) toda colônia o olharia como um verdadeiro herói de guerra. Pois que seja! Iria em busca de respeito!
Naquela madrugada de ar frio de outubro de 1924, juntou meia dúzia de roupas, um bom número de salsichas, uma cuca inteira, enrolou tudo em um grande pedaço de tecido que lhe servia de coberta e atou. Buscando não fazer nenhum barulho no assoalho barulhento da casa pulou a janela. Iria precisar de um dos cavalos que selou e montou. Em um trotear lento para não alvoroçar a bicharada, pensou em olhar para trás, mas desistiu. Sua redenção estava em Santo Ângelo e na figura enigmática do Capitão Luis Carlos Prestes.