sábado, 10 de outubro de 2009

O homem do sapato 38!




Havia comprado na liquidação. Último par. Trinta e nove reais e noventa e nove centavos. Baita negócio, principalmente na situação em que se encontrava. Mesmo que fosse um número menor do que calçava.
Ao mesmo tempo em que parecia mais radiante e o sol fustigava com força, as coisas pareciam mais vivas, as cores chegavam a doer nos olhos.Não estava mais acostumado com aquele movimento alucinado do Dezembro pré-Natal. Ao passar pela frente do empório, lá estava ele, da cor do sangue em inicio de coagulação. Droga! Já havia trabalhado em um laboratório recolhendo o liquido que muitas vezes esguichava rubro,outras quase preto e desde então sempre que se deparava com algo avermelhado associava, inclusive gostava de carne mal-passada,mas não olhava ao levar à boca.
Os doze anos preso o levaram a um processo de interiorização grande. Primeiro uma enorme depressão, perdeu dez quilos, o resto da pouca inocência que ainda lhe restava e ganhara um enorme cicatriz que começava no canto da boca e ia até a orelha. Coisa feita com precisão cirúrgica por um homicida encarcerado há muito, muito tempo com um estoque de dez centímetros. Mostrar quem manda ou coisa do gênero. Dois dias na enfermaria, três dentes quebrados e a volta à rotina da cela.
Bem, havia saído pelo beneficio do indulto de Natal e ali estava. Ruas estavam pequenas para o grande fluxo de pessoas, casais de namorados, crianças fazendo um barulho tremendo diante das parafernálias e estratégias das lojas para atrair a atenção dos consumidores. Estava com fome e dispunha de dez reais. Comeria um xis e tomaria uma cerveja. E daí que fosse todo o dinheiro? Merecia esse luxo. Respirava o ar que para muitos era impuro devido aos carros com uma avidez de quem passara muito tempo com o cheiro de excrementos impregnado na própria alma.
As visitas na prisão se resumiam a um velho tio que ajudara a criá-lo. A família, o pai, a mulher e os filhos nunca apareceram. Ele havia pedido por carta que não o vissem naquela situação. Eles respeitaram, para sua tristeza. Imaginara que não seguissem sua orientação e mesmo assim fossem vê-lo.
Doze longos anos e uma estada no inferno. Conhecera muita gente, alguns realmente criminosos irrecuperáveis,outros pareceram que acabaram ali por incapacidade e despreparo para atender as ânsias de uma sociedade autofágica.
O estômago que aguentasse. Iria descer até o bairro.Precisava pelo menos visualizar os filhos e a mulher. Os pés doíam muito , o sapato era realmente muito apertado, fôrma pequena. Vinte quarteirões de suplício. Tirava os sapatos? Não. Se alguém o reconhecesse com aquela barba pelo menos estava com um sapato novo. Que idade teria o mais velho? Dezoito ou dezenove? Não tinha certeza. A caminhada era uma legítima via crucis e parava a cada dez ou quinze passos. Recontava mentalmente quanto ainda faltava. Agora oito quadras. Sete e meia. Quem sabe parava um pouco,tirava os sapatos um pouco e depois retomava a caminhada. Não! Quem sabe aquele sofrimento todo não fosse parte daquele processo que havia começado quando o tio lhe trouxera em mãos o primeiro livro que lia desde os anos de primário.Ai começou, outros vieram. Um projeto social que levava livros a prisões, orfanatos e asilos ajudou a tomar conhecimento de autores de nomes complicados e que a princípio pareciam não escrever nada com nada. O tempo foi seu aliado e não teve pressa. Quando acabava a obra, reiniciava com total abnegação. Aquelas palavras tinham de ter sentido. Tinham que representar algo. Eles foram sua companhia durante todo aquele tempo.
Agora a volta. Estava no quarteirão em que a rústica casa de madeira crua ficava. Eram dez horas da manhã de sábado. A vizinhança havia mudado um pouco. Algumas casas novas foram construídas. Haviam feito calçamento na rua central. Muitos cães soltos em meio à rua. O pequeno boteco de seu Silas ainda com muitos desocupados bebendo cachaça. O número 888 apareceu impactante em uma conexão rápida entre cérebro e batimentos cardíacos. Os pés amassados. O coração saltando pela boca. Doze anos. O mundo estava ali, mas muito diferente. As pessoas pareciam mais atarefadas nas casas. O menor teve meningite o tio havia contado há tempos. A mulher estava em uma indústria têxtil. O que diria? Se apresentaria como o esposo e pai? Um pária encarcerado doze anos a fio que não contribuíra para a criação das crianças, não estivera ali quando haviam adoecido, não os vira crescer. Deixara a mulher desesperada quando se envolvera naquele mundo das aparentes facilidades que resultaram naquele desastre. O barulho era de alegria dentro da casa. Música alta, gargalhadas. Parou. Não iria chorar. Havia perdido essa capacidade dentro da prisão.
Precisava daquilo, voltar e á partir dali decidir o que fazer. Colocou a mão no portão e a manteve por um tempo que não saberia dizer.Será que precisaria se livrar daquela parte do passado para ser novamente livre? Respirou fundo, retirou a mão do metal frio e seguiu adiante...

13 comentários:

Anônimo disse...

Escrever é uma (difícil) arte... você está indo por um caminho que considero superinteressante: o seu. Aplausos.

Uvirgilio disse...

Adorei essa crônica, deu para sentir no texto todas as emoções que norteiam esse homem, o medo de rever a família que deixou por ir para o caminho que o fez parar na prisão, mais ainda a emoçao de estar solto e ver o mundo de fora. muito interessante, gostei e parece que vai ter continuação.

Francis Martin disse...

Muitas vezes já fiz isso. Ter algo importante para fazer e durante o caminho de tanto conjecturar acabar desistindo.

KGeo disse...

boa historia uma coisa boa de sapato apertado é quando vc tira ele vc tem um segundo de paraíso

LM Pizzato disse...

Belo texto amigo, realmente belo. BOa divagação sobre a condição do homem, agora, livre. Realmente interessante e profundo.

Anônimo disse...

Também gostei do que vc escreveu! Parabéns! Continue nesse caminho!

iMarty Turbo disse...

não entendi a mensagem do fim... mas o texto é bom

Vini e Carol disse...

A mistura do cansaço com a cachaça só pdoe dar nisso.
Muito boa a história.
Abraço.

Furdunço disse...

mto bacana a cronica,continue escrevendo que vocÊ escvreve mto bem!!

Losterh disse...

E por mais que eu desacredite,

sim, todos merecem uma segunda chance.
Boa sorte pro camarada aí.

roberyk disse...

Trate de escrever a segunda parte. Não se faz isso com o leitor e eu odeio interpretação de texto, rsrs.
Afinal, ele fez o quê? Continuou com o sapato e partiu para outra vida? Retirou o sapato e entrou?
Não sacaneia.
Parabéns.

Érico Pena disse...

Um belo texto com a ilustração da foto do filme UM SONHO DE LIBERDADE. Parabéns mais uma vez fábio e se quiser pode divulgar o seu blog na minha comunidade tbém ok!endereço é: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=95107537&refresh=1 entra lá é participe dos fóruns, vc Grande abraço do amigo Érico cinemeiro

Camila Oaquim disse...

PERFEITO! prende a atenção, dá vontade de ler e um gostinho de quero mais ;*