quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O início do fim!




O padre Ramon caminhou manquitolando até a grande árvore que ficava junto ao cotiguaçu e com dificuldade sentou-se em uma grande ramificação na raíz da centenária árvore.Era um hábito de muitos anos ficar ali após o almoço,tendo uma ampla visão de toda a movimentação da redução.
Naquele dia particularmente seu peito era um verdadeiro turbilhão de angústia e ansiedade.
Tomara consciência que a velhice chegara.Estava com sessenta e um anos, mas aparentava muito mais. Com certeza o sentimento de debilidade e impotência iniciou a partir do fatídico aviso de desocupação da redução.
Era um total desprezo ao trabalho abnegado dos irmãos da Companhia de Jesus.Haviam sacrificado suas confortáveis vidas na Europa para desbravarem esse inóspito território ao sul da América,fazendo seu trabalho catequizador, enfrentando feras, pestes e índios selvagens.Haviam superado todas as dificuldades e eregido aquele sonho utópico.
Os índios finalmente entenderam, e melhor, acostumaram-se à proposta dos padres. Alguns tinham um talento impressionante com as mãos e produziam peças fantásticas,com um detalhe curioso-os santos tinham os traços indiáticos. Outros se revelarem músicos talentosos, reproduzindo fielmente grandes composições da música clássica.
Estavam domados.. A promiscuidade inicial havia sido banida a pajelança idem,embora fosse praticamente impossível extirpar certas superstições deles.Eram por demais místicos.O padre deu um suspiro profundo e alto,chamando a atenção de um grupo de jovens índias que por ali passavam, o que resultou em risadinhas e cutucões.
O que seria daquela gente agora que sua essência primitiva lhe havia sido arrancada?
Será que todo o hercúleo esforço dos padres para humanizar aquelas longinquas paisagens iria acabar com um retumbante fracasso? Que tinham eles a ver com as escusas tramóias entre Espanha e Portugal?
O prazo havia sido estipulado, as ameaças não foram nem um pouco veladas. Alguns padres mais jovens e voluntariosos andavam de conluio com os líderes indígenas a fomentar idéias bélicas de resistência.Sacrilégio!! Eles,os homens escolhidos para levar a palavra de Deus aos homens,pensando em táticas de guerrilha.Era o fim do mundo.
Um indiozinho o puxava insistente pela batina,o rostinho moreno aparentava uma serenidade a muito esquecida pelo padre.Queria ouvir uma história.
-Venha cá menino,padre Ramon vai contar uma história muito antiga.A história de Davi e Golias...
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* Para os visitantes de outros estados,moro em Santo Ângelo, região das Missões, parte noroeste do Rio Grande do Sul e próximo à divisa com a Argentina. Minha cidade foi a última redução das sete eregidas pelos padres da Companhia de Jesus no no processo de demarcação de território pela Espanha e catequização dos indíos guaranis,reais donos desse território em meados do Século XVIII.No século XVIII a região estava sob disputa entre Espanha e Portugal. O Tratado de Madri de 1750 havia posto a área à disposição de Portugal em troca da Colônia do Sacramento, e a saída dos Jesuítas espanhóis ali ficou decretada. Mas este Tratado gerou conflitos: nem padres nem índios queriam abandonar suas reduções, nem os portugueses queriam abandonar Sacramento. Houve uma série de confrontos armados que culminaram na Guerra Guaranítica, que deixou um rastro de destruição e sangue,um verdadeiro massacre visto da disparidade de forças entre as tropas armadas e os índios e padres com lanças e flechas.
Os Sete Povos fazem parte de um importante capítulo da história do Rio Grande do Sul. Deram origem a cidades, auxiliaram na delimitação de fronteiras, e foram tema para a formação de um grande folclore regionalista de tom heróico em torno das figuras dos padres e dos índios, dentre os quais em especial Sepé Tiaraju. A cultura desenvolvida nestes centros chegou a alto nível de complexidade em termos de arte, urbanismo e harmonia social, e suas relíquias ainda podem ser vistas nos sítios arqueológicos e nos museus regionais. Sua importância é tamanha que foi digna da atenção da UNESCO, e o acervo de estatuária que se preservou e está espalhado em coleções privadas e públicas é hoje patrimônio nacional tombado pela UNESCO.

9 comentários:

Anônimo disse...

Lá atrás no tempo, entre os séculos XVII e XVIII, índios e jesuítas protagonizaram um dos feitos mais importantes da humanidade. Nesse período foram implantadas no sul da América, nas fronteiras dos impérios coloniais de Portugal e espanha, as Missões jesuítico-Guarani. Quase 30 reduções foram fundadas em território hj pertencente ao brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Durante um século e meio, cerca de 150 mil índios seguiram os princípios humanísticos e cultivaram o verdadeiro espírito da coletividade. As leis eram determinadas pela união e pelo cumprimento das suas obrigações, além da arte que registraria a saga desse diversificado universo. A fusão das culturas guarani e europeia deu origem a uma sociedade que surpreenderia o mundo com seu sistema social cooperativo e com o seu alto nível de desenvolvimento cultural e tecnológico. Durante o seu apogeu, a sociedade missioneira foi alvo das políticas expansionistas das cortes ibéricas e teve seu final decretado com a Guerra Guaranítica e a expulsão dos jesuítas do continente (1767/68).

Em 1983, o sítio arqueológico de São Miguel das Missões, bem como a estatuária hoje exposta no Museu das Missões, foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, e hj é considerado um dos mais importantes legados políticos e sociais do mundo. O IPHAN é o órgão responsável pela manutenção e preservação do patrimônio.

Anelise disse...

A preservação é fundamental para que fatos tão importantes não se percam.

Pobre esponja disse...

Estou do lado dos índios; é difícil comentar com mais requinte sem estar totalmente por dentro.

abç
Pobre Esponja

Adriano Viana disse...

Não conhecia esses fatos!!

Janis Lyn disse...

parabens pelo blog...muito interessante!


bjs
http://diariodeumafocaemcrise.blogspot.com/

Naya Rangel disse...

Não concordo com o que aconteceu no passado, e com certas coisas que acontecem hoje com os índios! Quem sabe um dia vamos preservar toda essa cultura ...

Abraços!

roberyk disse...

Não comentarei a história das reduções. Comentarei sobre a maneira como você, maravilhosamente, em poucas palavras conseguiu unir história, humanismo, existencialismo, filosofia, política e religião. Fantástico. E que final, que mensagem. Esse é um texto que merece várias releituras. Parabéns.

Anônimo disse...

Bah Fábio! Gostei muito deste texto! Acho até que já te falei isso uma vez, mas unir fatos históricos com ficção sempre é uma baita pedida!

Forte abraço!

*Em tempo: A melhor trilha sonora da blogsfera tá aqui!

Gabriela disse...

A Naya disse tudo o que eu gostaria de dizer!

Não concordo com o que aconteceu no passado, e com certas coisas que acontecem hoje com os índios! Quem sabe um dia vamos preservar toda essa cultura ...

http://britsource.blogspot.com/