sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Lutador!



O supercílio direito estava aberto e o sangue tornava o olho esquerdo praticamente sem função. Achava que havia fraturado o nariz, pois sentia algo solto cada vez que puxava o ar. Que bela imagem teriam pela manhã os fregueses das barras de gelo.
O rosto estava tomado de equimoses devido aos socos. Aquele mestiço que vinha representando São Borja o havia castigado enormemente. Tinha quase dois metros de altura e era surpreendentemente rápido para o tamanho. Quando sua esquerda passava pela guarda causava um grande estrago. Diziam que treinava o dia todo em uma academia montada em uma fazenda de um dos Vargas, que o tiraram dos brutais trabalhos da lida campeira e investido em seu potencial. O que não era seu caso.
Trabalhava durante o dia entregando barras de gelo.Começava cinco da manhã saindo da fábrica que ficava no extremo sul com a carroça abarrotada de entregas para a cidade inteira. Seu condicionamento era descarregar as enormes barras para as geladeiras dos lares santoangelenses.
A figura corpulenta e simpática o tornaram querido por todos os cantos do município.
Quem descobriu seu talento para a luta foi um capitão carioca que ficara impressionado com o porte físico avantajado e a grande força para aquele serviço braçal. Convidou-o a treinar junto com militares e pouco tempo após pegar as técnicas básicas do boxer já era temido pela potência dos golpes. Quando conseguia encaixar sua direita em um golpe justo dificilmente o adversário ficava em pé.
Logo já representava Santo Ângelo em lutas que se realizavam em ringues montados junto ao Cine Apollo, nos Clubes Gaúcho e 28 de Maio.
A luta daquele dia não estava transcorrendo do jeito que esperava. Acordara as três da manhã e já não se sentia muito bem. Talvez fosse um princípio de resfriado. Os últimos dias vinham sendo de preocupação em razão da proximidade do aniversário do filho de oito anos. O menino dócil e educado nunca reclamara presentes antes. Geralmente ganhava algum agrado em sua data e sempre mostrava-se feliz, fosse qualquer coisa. Desta vez tinha sido diferente. Uma semana antes havia lhe pedido uma réplica de ônibus que era construída por um marceneiro que só construia sob encomenda. O preço era elevado para seus ganhos e despesas com a casa. Era privilégio de meninos abastados. O que o sensibilizara era a determinação do garoto que anunciou resoluto que seria motorista de ônibus, como ele próprio fora há anos.
Aquela luta que definiria o campeão missioneiro talvez possibilitasse a extravagância
da compra da réplica. Não havia falado para esposa. Ela seria contra com certeza. Mas ele sabia da importância daquilo, para o filho e para si próprio.
O que não imaginara era que enfrentaria um lutador profissional e muito bem preparado. Havia apanhado desde o primeiro round. Procurou ziguezaguear e fugir da temível canhota do mestiço, mas em duas oportunidades fora atingido em cheio.
Só ficara em pé por milagre. Sentira uma frouxidão nas penas e sentiu o mundo girar,o gosto de sangue inundando a boca. O supercílio abrira em um talho obsceno e inchara imediatamente, deixando-o somente o olho direito para se esquivar da saraivada de golpes. Sentia vontade de vomitar.
O tempo de descanso o salvou.
Retornou procurando manter uma distância segura do punho esquerdo do mestiço, mas sua mobilidade já não era a mesma. A imagem do filho com o brinquedo na mão e o rostinho de felicidade veio em sua mente. O punho do oponente fez vento perto de sua cabeça. Concentrou. Manter a distância e especular um contra-ataque era sua única chance diante daquela máquina de bater. Quanto mesmo ganharia com a luta? O cérebro já estava ficando confuso e ele sabia que tinha pouco tempo.
O adversário parecia irritado por seus golpes não estarem entrando e descuidava cada vez mais da guarda. Sentia uma dor rascante em uma das costelas. Precisava concentrar e achar o momento certo.
Conseguiu mesmo com o rosto deformado esboçar um sorriso matreiro para o mestiço, que com os olhos inflamados de indignação lançou-se em um ataque desarvorado, desferindo golpes a esmo. Então ela apareceu. Vislumbrou a brecha não muito grande mas suficiente para Domingão penetrar com sua poderosa direita, que entrou de baixo para cima, encontrando a ponta do queixo do mestiço, que tentou firmar as pernas, retrocedeu dois passos, vergou os joelhos e desabou seus cento e dez quilos sobre a lona...
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*Esse conto é muito especial para mim, pois o sr. Domingos de Oliveira Fortes era natural de São Luiz Gonzaga, como eu, e também adotou Santo Ângelo como como cidade do coração. Em seu histórico como lutador registra-se cerca de 38 lutas oficiais da quais perdeu 6, empatou 2 e venceu 30, sendo reconhecido o campeão missioneiro de boxe. Talvez nessas minhas maquinações eu tenha encontrado uma das figuras mais interessantes e emblemáticas da história da cidade. Foi motorista de ônibus e posteriormente entregador de barras de gelo. Seu filho,o menino do texto e meu amigo "seu" Adão Fortes, motorista aposentado da linha Santo Ângelo-Porto Alegre detém o título de Motorista Padrão do Sul do Brasil e hoje desenvolve um abnegado serviço social de conscientização por um trânsito mais seguro.
Domingão, como era conhecido, nasceu em São Luiz Gonzaga em 1913, mas há controvérsias em relação à data.Faleceu em 06/02/1993.

25 comentários:

Anônimo disse...

Gosto muito da sua proposta de nos mostrar através de sua escrita elementos tão importantes para sua prosa quanto para sua cidade, sua formação. É realmente uma bela história Fábio.

Abraços!

http://tempo-horario.blogspot.com/

http://twitter.com/brunobaxter

Anônimo disse...

A história de muitos brasileiros!
De luta!

*Teta de Nêga* disse...

Muito bom!!!

Unknown disse...

pelos historico dele...o cara era bom hem...

Yoshi disse...

Gosto muito de escrever e ler coisas por ai, gostei muito do blog.
Você tira os textos da onde?
ou você que escreve?


se quizer:
http://twitter.com/jessyromel

Camaleão disse...

Histórias de superação e luta são incríveis. Me lembra até do clássico Rocky, o lutador, uma obra prima do cinema.

Marcelo Augusto disse...

Original e inspirador. Gostei da narrativa, dos momentos reflexivos, da descrição da cena da luta. Parabens!

Keisy Oliveira disse...

Nossa, muito boa a historia.. Excelente texto, sério... Lembrou o Rocky mesmo...

roberyk disse...

Fabio, já falei anteriormente mas irei repetir. A maestria com que resgata a história em teus textos é incomparável. parabéns.

Uvirgilio disse...

Cara que homenagem bonita, poucos dedicariam o espaço que você está dedicando a personagens que te marcaram de alguma forma.

Anônimo disse...

muito bem poscionada a sua narrativa, gostei muito, e ler ao som de neil young! espetacular.

Portal Cidade do Sol disse...

Adorei seu blog, é muito legal mesmo, adorei muito, parabéns continua assim, postando coisas legais, adorei mesmo, quando de da uma olhada no meu ta!
Ah to seguindo seu blog! http://henrique199.blogspot.com/

Paulo Giovanni disse...

Esse cara tem um cartel de lutas realmente muito bom.
Adorei a História.

Fabíola disse...

Adoooooooooooooooro sempre suas narrativas. São smepre muito coerentese bem feitas. Amo mesmo.

Anônimo disse...

Nossa ótimo post me lembrou as lutas de antigamente saudades

Inez disse...

Gostei bastante do seu texto, me parece ser uma hsitória real colocada de forma clara, uma bela homenagem.

Marcelo Augusto disse...

cadê a continuação ? sinto falta de mais textos, ja tinha vindo aqui antes!

abraços.

Unknown disse...

Realmente muiito boa a história!
Mas por fim ele largou a carreira? foram muiiitas lutas :O
e nunca ouvi falar da cidade :/
Mas parecer ser mesmo muito especial
Parabéns pelo post
Até

Anônimo disse...

Crônica de mão cheia!

Hugo Henrique disse...

Nhaa, que chato! Mas eu só consigo vir aqui pra te elogiaar? kkkkkkkk

Cara, pouco conheço sobre seus textos mas já arrisco dizer que sou fã deles!

Eu só não entendo uma coisa: porque você não lança livros? Acho que se eu escrevesse tão bem quanto já teria lançado algum... Tenho certeza que o que você lançar vira sucessO!

Vou até fixar seu blog na minha lista de blogs lidos! É realmente muito bom! Parabéns!

Com relação ao texto:
Televisão é uma janela. teatro é uma janela. Uma janela em que ficamos espiando o que tá acontecendo lá dentro. É interessante olhar essas janelas porque sempre acontecem coisas legais. Mas, nosso bairro, a história dele, acontecimentos, nossa vida, nossa estória... são apenas janelas, com coisas super interessantes passando!

abraçO!

Daniel A. S. disse...

Muito bom seu texto, uma narração muito bem desenvolvida. É muito interessante Ler boas narrativas como essa sua a cerca de esportes. Parabéns pelo texto!

http://daniel.a.s.zip.net

Neuro-Musical disse...

Magnifico!
Isso mostra que pode ter quantos obstaculos for em nossa vida, mas se tivermos determinação e coragem a oportunidade virá

http://cerebro-musical.blogspot.com

É Dura a Vida no Campo disse...

Excelente, parabéns!

Luiz Scalercio disse...

bellissimo texto
prbns vc merece
belo blog.

William Dutra disse...

Parabens!!!

seu textto me prendeu até o fim

Otimo